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As primeiras discussões de Deleuze com a psicanálise se organizam em torno da demonstração de que o sadismo e o masoquismo possuem diferenças radicais e irredutíveis. Deleuze retoma os procedimentos literários das obras de Sade e de Masoch para mostrar que os argumentos de Freud, cujas análises reforçam a existência de uma estrutura sadomasoquista, repousam em um pressuposto absolutamente questionável: o privilégio do patriarcado e do poder superior masculino como princípio das interpretações psicanalíticas. O falocentrismo implícito nas concepções psicanalíticas impediria a compreensão tanto do masoquismo quanto do feminino. Assim, podemos assinalar um primeiro ponto de crítica à psicanálise, fruto de um exercício filosófico que Deleuze nomeia de “crítica e clínica”.

Por outro lado, esta crítica inicial recai sobre a teoria das pulsões. Em “De Sacher- Masoch au masochisme” (1961), Deleuze critica Freud por ter baseado suas análises em pulsões que se deixam combinar de qualquer maneira, pautando-se em uma teoria que não impede de dar aos acontecimentos interpretações arbitrárias e envoltas em preconceitos, como no caso do masoquismo. Apoiando-se em Jung, Deleuze propõe assimilar as noções de símbolo, arquétipo e imagem primordial à noção de instinto. Nesta perspectiva, propõe um

192 conceito de instinto ou pulsão que, enquanto elemento último e irredutível do inconsciente, não se deixa compor nem representar; ao mesmo tempo, sugere que este conceito deve ultrapassar a esfera psíquica-individual e o campo da experiência do sujeito, remetendo a um inconsciente impessoal e surreal.

Em Apresentação de Sacher-Masoch (1967), a crítica à psicanálise dirige-se exatamente para os mesmos aspectos – a unidade sadomasoquista e o primado falocêntrico – e também recai em uma crítica à teoria das pulsões, mas desta vez Deleuze propõe outra solução para o problema das pulsões que se deixam combinar de qualquer maneira – solução independente da anterior, embora seja possível restituir algumas linhas de continuidade entre ambas46. Deleuze baseia-se em um argumento transcendental para propor a distinção entre instinto e pulsão na teoria freudiana. Neste sentido, entende-se que os instintos, Eros e Tânatos, são princípios transcendentais puros e qualitativamente distintos, que não se misturam segundo a economia das pulsões eróticas e destrutivas. As pulsões, por sua vez, são redefinidas como apresentações empíricas dos instintos; elas são parciais, complementares e passíveis de variadas combinações e transformações segundo o princípio de prazer.

Ao promover uma reflexão transcendental sobre os princípios organizadores da vida psíquica, Deleuze deixa de referir-se à Freud somente em termos de críticas e contrapropostas e passa a considerá-lo como um aliado para o questionamento filosófico. Vimos que a sugestão freudiana, de que há um funcionamento inconsciente que, além de ser independente do princípio de prazer, é condição para a efetividade deste princípio, será mantida por Deleuze em suas concepções futuras acerca do inconsciente transcendental. Considerando que o princípio de prazer delimita o registro do psicológico e do empírico, Deleuze retoma a noção freudiana de que há uma atividade de ligação e uma compulsão à repetição originárias e independentes do princípio de prazer e passa a considerá-las como “sínteses transcendentais”. Tais sínteses agem segundo Tânatos, “repetição-borracha que apaga”, princípio de desligamento; ou agem segundo Eros e a atividade de ligação primordial, “repetição-laço” que opera sobre Tânatos e que constitui o funcionamento psíquico segundo o princípio do prazer.

Acontece que neste processo de constituição do princípio do prazer, neste “enlaçamento” de Tânatos por Eros, Eros não domina Tânatos, mas o arrasta consigo, em suas próprias entranhas, assim preenchendo a vida psíquica com composições variadas de pulsões eróticas e destrutivas. Daí o caráter ambíguo da compulsão à repetição, tal como foi enunciado por Freud a partir de suas experiências clínicas: a repetição tanto se mostra a

46 Conforme foi desenvolvido no primeiro capítulo desta pesquisa, seguimos a hipótese de que Deleuze apropria- se de elementos extraídos de Bergson e Jung para inserir o instinto em uma perspectiva transcendental.

193 serviço da superação do sintoma, da dor e do sofrimento, como se fecha em um ciclo doentio e mortal de dor e sofrimento. Mas Deleuze ressalta que, mesmo nas perturbações mais graves, a repetição encontra-se subordinada ao princípio de prazer – diferentemente da repetição enquanto síntese transcendental, que precede o princípio de prazer.

Demonstramos que esta leitura de Deleuze é bastante coerente com a metapsicologia freudiana, embora Freud jamais tenha elaborado seus conceitos em uma perspectiva transcendental. Também demonstramos que a introdução do conceito de pulsão de morte na obra de Freud produziu alguns impasses e contradições que podem ser diluídos nesta inserção do inconsciente psicanalítico em uma discussão transcendental. Assim, neste momento de seu percurso filosófico, Deleuze oferece uma continuidade pertinente às teses psicanalíticas, ao mesmo tempo em que expande seus limites em direção à filosofia.

Um ponto a ser destacado nesta interlocução entre filosofia e psicanálise é uma nova maneira de se considerar a relação entre a repetição e o princípio de prazer. Se a perversão, segundo o sadismo e o masoquismo, é uma categoria privilegiada nesta investigação transcendental, não é porque estas configurações ignoram o princípio de prazer ou porque elas testemunhariam o instinto de morte em sua forma pura. Deleuze é bem claro a este respeito: “nunca Tânatos é dado, nunca ele fala; sempre a vida se acha preenchida pelo princípio empírico de prazer e pelas combinações que lhe são submetidas – se bem que a fórmula da combinação varie singularmente” (DELEUZE, 1967, p.126). Ou seja, mesmo no sadismo e no masoquismo, a repetição deve ser compreendida em relação ao princípio de prazer.

Parece, no entanto, que tal resultado é decepcionante, e se reduz à ideia de que a repetição causa prazer... Mas quanto mistério no bis repetita. Sob os tambores sádico e masoquista, está a repetição como força terrível. O que mudou é a relação repetição-prazer. Ao invés de viver a repetição como uma conduta que considera um prazer obtido ou a se obter, ao invés da repetição ser comandada pela ideia de um prazer a reencontrar ou a obter, eis que a repetição se desencadeia [se déchaîne], tornou-se independente de qualquer prazer prévio. Foi ela que se tornou ideia, ideal. E foi o prazer que se tornou uma conduta que considera a repetição, é ele que acompanha e agora segue a repetição como terrível força independente. O prazer e a repetição trocaram então os seus papeis: eis o efeito do salto in loco, quer dizer, do duplo processo de dessexualização e de ressexualização. Entre os dois, parecia que o instinto de morte ia falar; mas porque o salto se dá in loco, como que num instante, é ainda o princípio de prazer que mantem a palavra. (DELEUZE, 1967, p.129). Esta longa citação é necessária para evidenciarmos a originalidade de Deleuze ao se apropriar das noções psicanalíticas. O que interessa ao filósofo é esta relação singular entre a repetição e o prazer que as configurações perversas do masoquismo e do sadismo revelam. A perversão é então definida por Deleuze através de uma operação específica que se segue à dessexualização: a ressexualização fria e gélida de Tânatos, que no sádico se expressa pela

194 frieza das ideias e do pensamento, e que no masoquista se expressa pelo gelo dos ideais e da imaginação. Este seria um modo distinto, tanto das neuroses quanto das sublimações, de captar o instinto de morte na repetição, “especulativo e analítico” no sadismo, “mítico e imaginário” no masoquismo. A repetição, neste caso, já não persegue o prazer, mas é o prazer que persegue a repetição; assim, a dor não visa o prazer, mas vincula-se à repetição tornada ideia ou ideal e isto acaba por tornar possível o prazer.

Mas, a despeito do que se elabora como uma possível metapsicologia das perversões, encontra-se aí o delineamento de uma questão filosófica importante, que diz respeito ao vínculo entre a repetição, a imposição do princípio de prazer e a imposição da temporalidade na vida psíquica. Afinal, é devido a uma certa organização temporal que a repetição passa a se manifestar em função de um prazer passado ou futuro. O que seria, então, a repetição como “terrível força independente” do prazer e da temporalidade psicológica? Esta questão, extraída da metapsicologia freudiana, leva Deleuze a homenagear a genialidade de Freud e inspira-o a elaborar as “sínteses transcendentais do tempo” que, em última instância, são formas de repetição além do princípio de prazer.

Assim, em Diferença e Repetição (1968), Freud é considerado muito mais como um companheiro para a exploração do “além do princípio de prazer” do que como um adversário. Deleuze apreende algumas noções psicanalíticas em uma perspectiva filosófica para referir-se a este momento constitutivo em que se encontra a repetição insubordinada a um prazer obtido ou a se obter, a repetição enquanto “sínteses transcendentais do tempo”. Trata-se de defender a tese de que a repetição não é a reprodução de algo prévio, nem mera repetição do passado no presente, mas é produção do novo e fabricação do tempo. O presente, o passado e o futuro dizem respeito a sínteses constitutivas do inconsciente pela repetição, fora das determinações empíricas ou psicológicas; tais sínteses, portanto, são transcendentais e passivas, ou seja, não são feitas pelo psiquismo, pelo sujeito ou por um Eu – mesmo que transcendental –, mas se fazem neles e assim os constitui. Elas não dependem, portanto, da memória, da reflexão ou do entendimento, embora tornem estas faculdades possíveis ao se tornarem ativas.

Demonstramos que Deleuze se apoiou em uma composição entre noções psicanalíticas e filosóficas para elaborar cada uma destas sínteses. Assim, na concepção da primeira síntese, Deleuze estabelece uma continuidade entre as noções de Freud e de Hume, na medida em que ambos pressupõem a imaginação como solo da razão e do entendimento, concebendo a gênese do entendimento como um processo natural e independente da consciência do sujeito. Mas do que dependeria esta gênese? Do princípio de prazer em um caso, do hábito em outro. Tendo

195 aprendido com Freud que o princípio de prazer depende, ele próprio, da repetição e da atividade de ligação, Deleuze retoma a noção de hábito em Hume segundo a perspectiva de um “além do princípio de prazer”, para dela fazer uma síntese transcendental de ligação.

Deleuze critica a investigação filosófica sobre o hábito, que tende a compreendê-lo como subordinado ao prazer. Assim, o hábito passa a ser compreendido como síntese passiva de ligação, que precede o princípio de prazer e o torna possível; a ideia de prazer deriva dele, assim como o passado (memória) e o futuro (expectativa) derivam do presente vivo. Assim, demonstramos como Deleuze assimila a categoria humeana de hábito à atividade de ligação desenvolvida por Freud – a repetição-laço que já havia sido mencionada em Apresentação de

Sacher-Masoch (1967) – para propor uma teoria da constituição do eu no tempo; vimos também que permanecer no registro do transcendental exige ultrapassar a noção de eu passivo e compreender que cada hábito ou cada ligação formam um eu. Mais correto, portanto é falar em “múltiplos eus, larvares e locais”.

Estes “múltiplos eus larvares” são correlatos dos objetos virtuais que designam a segunda síntese transcendental do tempo, o passado puro. De uma combinação entre noções de Bergson a respeito do virtual e os objetos parciais na teoria psicanalítica, Deleuze extrai a noção de objeto virtual e a concepção de uma memória transcendental. O passado puro, totalidade que transcende a individualidade, coexiste com o presente segundo as leis complexas da repetição. Trata-se da aliança entre Mnemósina e Eros, que mostra como a memória é erotizada: as sínteses passivas de ligação no presente repetem a totalidade indivisa e confusa do passado puro e operam sobre os objetos reais com uma potência de diferença e disfarce. Simultaneamente à instauração das faculdades ativas do entendimento – que instaura o passado sob a forma de lembranças do objeto e o futuro sob a forma da expectativa de reencontro com o objeto “real” e totalizado – as sínteses passivas do passado puro operam sobre objetos virtuais parciais destacados da experiência, desenvolvendo-se independentemente do princípio de prazer e de realidade.

É nestes termos que Deleuze traz para o debate filosófico o problema psicanalítico de como a pulsão – definida anteriormente como “excitação ligada” ou como hábito – reporta-se aos objetos. Deleuze investiga então se a pulsão sexual pode investir objetos sem se submeter à lógica do princípio de prazer e desenvolve a hipótese de que os objetos parciais, enunciados por Freud, Klein, Lacan e Winnicott, na medida em que se constituem como objetos independentes e não mais identificados com a totalidade de que foram extraídos, dão provas de um investimento erótico sem ter o prazer como finalidade, povoando a memória

196 transcendental de objetos singulares, “estranhos” e não totalizáveis, fragmentos de diferença pura.

Considerando que o tema psicanalítico dos objetos parciais está atrelado à produção fantasmática que acompanha a experiência real e a sua significação, Deleuze assimila o fantasmático à sua leitura do virtual bergsoniano para formular uma dimensão diferenciada da realidade, o transcendental como face virtual da experiência real. Contudo, diferentemente da psicanálise kleiniana, entende-se que os objetos parciais não se fazem acompanhar de fantasias a respeito de sua intencionalidade boa ou má, mas que eles assumem a forma do problemático, das questões e dos problemas.

Demonstramos que Deleuze é atraído pelas teorias psicanalíticas sobre a primeira infância, na medida em que estas exploram certas modalidades primitivas de relação objetal que não prescindem de um sujeito constituído nem dependem de um Eu organizado e coerente, mas que o constitui. Deleuze retoma estes modos particulares de relação objetal para elaborar os objetos virtuais do passado puro e compor as suas sínteses passivas e transcendentais do inconsciente, em que não se encontra um Eu constituído, mas “pequenos eus larvares”.

Deleuze busca na teoria psicanalítica certos elementos para sustentar a sua concepção de “diferença pura” em relação com a “repetição complexa”. Tais elementos, como vimos, correspondem ao funcionamento inconsciente independente do princípio do prazer – a repetição e a atividade de ligação (Eros enquanto princípio transcendental) –, aos objetos parciais, às teorias metapsicológicas acerca da constituição das instâncias psíquicas na primeira infância e à produção fantasmática. Porém, a despeito destas noções estarem à favor de sua filosofia da diferença, Deleuze mostra que a psicanálise, assim como a filosofia da representação, sustentam uma concepção negativa da repetição graças a uma concepção simplista e ingênua do tempo.

Assim, a psicanálise é criticada por compreender o passado como “um presente que passou”, um passado onde se encontram, por exemplo, os fundamentos originais e causais do sintoma. De acordo com esta perspectiva, o “antigo presente” fornece o elemento bruto a ser repetido, que devido à ação do recalque, deve emergir disfarçado e dissimulado; a repetição passa então a ser compreendida como uma “perturbação” no trabalho psíquico de elaboração, cuja consequência é um sujeito preso no passado traumático, impossibilitado de estabelecer conexões atuais fora das vias sintomáticas da repetição.

197 Porém, ao mesmo tempo em que critica esta interpretação negativa da repetição pela psicanálise – que a relaciona com uma insuficiência do conceito e de seus concomitantes representativos – Deleuze indica como Freud teria “se aproximado ao máximo de uma razão positiva interna da repetição”. Neste sentido, demonstramos que Deleuze mostra-se um leitor atento da metapsicologia, quando encontra duas concepções distintas sobre a repetição na teoria psicanalítica. De fato, demonstramos que é possível distinguir entre a repetição empírica e sintomática, efeito do recalque, tal como se apresenta no artigo “Recordar, repetir, elaborar” (FREUD, 1914b), e a repetição metapsicológica que é condição para a instauração do princípio do prazer, e evidentemente, condição do recalque, tal como é desenvolvida em

Além do princípio de prazer (1920). Além disso, Deleuze reconhece que estas duas formas de repetição não são independentes; portanto, não se trata de suprimir ou denunciar um erro de concepção na teoria psicanalítica da repetição, mas de reposicioná-la ao explicitar sua dimensão transcendental, demonstrando que a teoria comporta ambas as concepções de repetição, em que uma é apenas o efeito abstrato da outra, mais profunda.

Demonstramos que a noção psicanalítica de recalque primordial também é reformulada em uma perspectiva transcendental, para referir-se a um passado puro que nunca foi presente, mas que com ele coexiste sob a forma de disfarces e deslocamentos. Assim, ao invés de o recalque e a repetição serem compreendidos somente segundo uma forma negativa e psicológica – definindo-se pela insuficiência da representação –, eles podem ser compreendidos de uma perspectiva positiva e transcendental – definindo-se por um excesso de ideias ou como campo problemático.

Quando Deleuze apresenta as sínteses transcendentais e passivas do presente e do passado, ele também demonstra como estas sínteses tornam-se ativas ao se submeterem ao princípio de prazer e à organização psicológica do Eu. Este não será o caso da terceira síntese passiva, que jamais se submete ao princípio de prazer e que tem o poder de destituí-lo. A síntese transcendental do futuro é aquela que garante o funcionamento passivo das outras, garantindo igualmente a atuação do tempo em sua forma pura. Logo, esta síntese é chamada de instinto de morte, em partes porque Deleuze retoma os avanços sobre a “repetição- borracha” de Apresentação de Sacher-Masoch (1967) para dizer desta síntese que anula o poder das sínteses ativas e que inibe a aplicação do princípio de prazer; mas também porque Deleuze quer fazer da morte um protótipo para designar a produção do pensamento e a criação do absolutamente novo pelo inconsciente. Nesta perspectiva, Deleuze define que o ato de pensar é engendrado sob o efeito de uma violência, o que corresponde a uma experiência

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