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DO DESRESPEITO A SUPERIOR E A SÍMBOLO NACIONAL OU A FARDA

10. Considerações finais

O esforço de dissertar sobre um assunto, na verdade, não tem um fim. Dessa forma, busco, nessa parte, apenas ressaltar pontos e reflexões importantes dessa investigação. Claramente, a discussão sobre masculinidade e heteronormatividade no CBMMG poderia ser estendida ad

infinitum. A temática pode ser refletida por diversos ângulos e campos dos saberes. Assim,

acredito que os apontamentos aqui discutidos possam servir de ponto de partida para alimentar futuros debates e, também, para incitar novos inquietamentos.

Partindo da pergunta de pesquisa: “como a heteronormatividade e a masculinidade são vivenciadas em trajetórias laborais de homossexuais no Corpo de Bombeiros Militar?”, busquei no plano discursivo investigar como se dão normas sociais sobre a sexualidade no dia a dia de bombeiros gays do CBMMG. Para tanto, entrevistei 10 bombeiros militares, identifiquei documentos e reportagens acerca da temática que me dessem pistas de como (res)surgem esses discursos, seu campo de coexistência e os efeitos de verdades que recaem sobre os sujeitos..

Dessa forma, destaco a fala de um entrevistado que deu nome a essa dissertação: “apruma o corpo e bata continência como homem!”. Essa fala traz os principais elementos que busquei costurar ao longo do estudo. Numa simples frase é exigido pelo superior (poder) que o soldado aprume o corpo (norma) e bata a continência (disciplina) como um homem (heteronormatividade/masculinidade). Fica claro, também, que os seus subordinados estão sob um exame e expostos a sanções normatizadoras, ou seja, numa atividade rotineira dos bombeiros, é possível garimpar elementos simbólicos de poder-norma-disciplina-sexualidade que estão altamente naturalizados dentro da instituição. A fala evidencia, também, como a heteronormatividade e a masculinidade são vivenciadas pelos bombeiros.

É importante destacar que não pretendi, de maneira alguma, encontrar relação linear e causal entre os discursos e as práticas dos sujeitos, assim como, também, assevero que muito dos discursos se apresentaram de maneira desconexa e anacrônica. O campo se mostrou

altamente complexo, composto de relatos conflitantes e, até mesmo, contraditórios. Entretanto, esses discursos são importantes por suas singularidades e localização no tempo e no espaço, (re)criando verdades sobre heteronormatividade e masculinidades no CBMMG, e não por uma suposta lógica.

Ressalto a importância do livro institucional do CBMMG, Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais: 100 anos de história e reflexão, de Aquino e Marçal (2013), feito na ocasião dos seus 100 anos, para o desenvolvimento dessa pesquisa. Foi por meio desse livro que pude, de maneira quase artesanal, garimpar discursos antigos e atuais que, direta ou indiretamente, repercutem na vivência da sexualidade desses bombeiros. O livro conta com uma coletânea dos principais documentos e fotos da instituição desde a sua fundação e, por isso, apresenta-se como um documento essencial para entender a organização dos bombeiros em Minas Gerais.

Vale destacar que o esforço se concentrou na desnaturalização de regras, costumes, símbolos e discursos que impactam a maneira de ser e perceber o mundo por uma lente heteronormativa e máscula. O esforço se concentrou no exercício de descortinar uma série de discursos, símbolos e práticas que carregam consigo normas sociais internalizadas e pouco percebidas e com o poder de direcionar os corpos para um comportamento heteronormativo e másculo. Assim, a discussão pode causar certo incômodo ao revelar acontecimentos pouco perceptíveis por sujeitos que estão inseridos nesse contexto.Em relação ao primeiro objetivo específico, identificação e análise de discursos e práticas heteronormativas e da valorização de uma masculinidade hegemônica, busquei trazer à baila uma série de normativas, regimentos, discursos e notícias que traziam consigo mensagens com tons de verdades. Algumas normas aqui discutidas, mesmo que de maneira indireta, informam aos bombeiros o conceito de família entendido como legítimo; informam como o corpo deve se portar (sempre ereto, intimidador, másculo e disciplinado); como proceder de maneira disciplinada e atenta aos sinais dos superiores; a importância do entendimento e respeito (quase irracional) da hierarquia dos cargos.

Percebemos, ao longo do trabalho, discursos dos próprios bombeiros gays que acreditam que “a única coisa de errado comigo é ser gay” e, logo, “mas eu me comporto como homem” como uma espécie de compensação. Discursos nesse sentido revelam a centralidade e a proporção que o comportamento másculo e heteronormativo apresenta na vida desses bombeiros. Discursos institucionais também revelam esse fenômeno, por exemplo o edital aqui

discutido, em que a masculinidade fazia parte das exigências para a aprovação do concurso para bombeiro.

Ainda em relação a esse objetivo pude, por meio das entrevistas, filtrar pequenas práticas, conscientes ou não, que buscam um alinhamento com o comportamento padrão, tais como: engrossar a voz no telefone e no atendimento aos cidadãos, a autovigilância para não dar pinta, o esforço em manter a vida particular em segredo etc.

Em relação ao segundo objetivo, que consistiu em resgatar a trajetória laboral de bombeiros militares dentro de suas respectivas corporações, busquei destacar práticas de microrresistência vivenciadas por bombeiros gays. Essas práticas, mesmo que num plano microfísico (FOUCAULT,1977), são formas eficientes de subverter a ordem e permitir aos sujeitos a vivência de suas sexualidades. O exemplo mais emblemático discutido é o do grupo de comunicação via telefone móvel, que permite aos bombeiros trocar informações, assim como se organizarem para burlar situações inconvenientes.

Vale destaque o fato de que a discussão sobre as resistências no CBMMG por parte de bombeiros gays comprova que os sujeitos não estão presos. Por meio da existência de possibilidades de escapatória, esses sujeitos resistem, ressignificam e escapam de uma “vida determinada”, ou seja, uma série de resistências individuais e coletivas permite aos sujeitos burlar normas e vivenciar suas verdadeiras sexualidades.

Nesse sentido, destaco que as teias de poder encontradas permitem a extração de sentidos, significados e positividades. Assim, busquei, ao longo do trabalho, não cair na romantização de um poder opressor e puramente negativo. Trata-se de um poder que, ao mesmo tempo em que disciplina e restringe, também produz subjetividades e comportamentos. Os bombeiros gays, apesar das verdades criadas em torno deles próprios, conseguem enxergar valor na farda, orgulhar-se de sua vida profissional, constituírem-se como bombeiros eficientes e dignos de admiração.

O terceiro objetivo, sobre símbolos de masculinidade e heteronormatividade, concentrou- se na discussão sobre a farda e seus significados para os sujeitos. Busquei descortinar a simbologia que é materializada na farda e como esse apetrecho é, na verdade, parte da constituição dos sujeitos como bombeiros. A farda traz consigo, também, a ideia e um imaginário de heroísmo e, consequentemente, de masculinidade e heteronormatividade.

O discurso sobre a farda emergiu de maneira recorrente nas entrevistas e, por isso, o esforço foi direcionado a buscar documentos e pistas que possibilitassem entender melhor como essa ferramenta de serviço se apresenta como essencial. Os pontos de contato entre farda e masculinidade foram tamanhos que, assim como Rosa (2007), nesse estudo identificamos que a farda é uma “segunda pele” para os bombeiros e representa a posição de um homem-herói másculo e heteronormativo. Essa “segunda pele” está de acordo com as normas da instituição e, por isso, é necessário “respeitar a farda” e principalmente “ tem que ser homem pra usar a

farda, não pode desrespeitar”. Desse modo, a farda é, ao mesmo tempo, uma ferramenta de

trabalho e de controle dos corpos, da sexualidade, dos comportamentos.

Assim, chamo atenção para o fato de que os discursos heteronormativos e de masculinidade contam com um campo de coexistência para além do campo discursivo. O zelo com a farda, com o corte de cabelo e com a postura de um militar faz parte de um “conjunto ideal” do que deve ser um bombeiro. A farda como segunda pele (ROSA,2007) é, praticamente, a materialização da masculinidade e heteronormatividade a que esses sujeitos tentam se adequar. O esforço realizado por meio de entrevistas e do levantamento de documentos antigos e atuais permitiu o entendimento de um campo de coexistência e do surgimento de discursos heteronormativos e de masculinidade que recaem sobre os bombeiros gays.

Para além desses objetivos, ressalto a contribuição desse trabalho para as ciências administrativas e, principalmente, o campo dos Estudos Organizacionais, que caminha para uma maior abertura sobre a temática (CAPELLE, 2006). O estudo também é uma possibilidade de maior discussão integrada entre administração e ciências militares que, segundo Schmitt, Costa e Moretto (2012), carece de mais investigações em conjunto. Para pesquisas futuras, indico maiores mergulhos na discussão sobre uma possível homonorma em ambientes militares, a presença feminina no CBMMG e, até mesmo, discussões sobre implicações psicológicas de sujeitos gays em ambientes militares.

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