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A contenda sobre a concessão de liberdade ao carapina Manoel não foi o único motivo que colocou em lados opostos José de Campos Penteado e Cândido José da Silva Serra. Antes mesmo que esta demanda tivesse um desfecho – que como vimos foi favorável ao primeiro – os dois senhores se engalfinharam novamente na justiça, desta vez em um libelo civil proposto por José de Campos Penteado em 1838. Entre outras alegações, José de Campos Penteado exigia que seu genro entregasse para a colação dos bens de sua finada mulher, entre outras coisas, o valor dos serviços dos escravos carpinteiros que haviam trabalhado na edificação da casa daquele na ocasião de seu casamento com Maria Eleutéria de Campos, filha do casal. Cândido da Silva Serra, por sua vez, argumentava que o valor dos serviços desses carpinteiros – entre eles dos africanos Manoel e Sebastião – já havia sido pago quando administrou os bens de seu sogro pelo espaço de 10 meses sem ganhar remuneração alguma na ocasião. Ou seja, alegava que os serviços dos carpinteiros já haviam sido quitados por meio de seu próprio trabalho como administrador dos bens de seu sogro1.

No libelo, embora Manoel e seus companheiros de ofício tenham figurado novamente como personagens principais, as liberdades condicionais prometidas a ele e ao africano Sebastião pelos senhores José de Campos Penteado e Cândido da Silva Serra não foram sequer mencionadas no processo. Isso nos permite retomar uma hipótese lançada no início deste trabalho de que essas promessas de liberdade foram, na verdade, estratégias das partes para poder ficar com os escravos mais valiosos da herança da finada dona Rita Antônia da Silva Serra.

No entanto, acreditamos que muito embora José de Campos Penteado e Cândido da Silva Serra estivessem lutando em defesa do direito de posse de escravos valiosos como Manoel e seus companheiros de ofício, as promessas de liberdades feitas por eles não podem ser apenas interpretadas como “engodo” seja frente aos seus próprios escravos –

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Libelo Civil, 1838. Arquivo do Centro de Memória da Unicamp (ACMU), Fundo do Tribunal de Justiça de Campinas (TJC), 1º. Ofício, Cx. 80, Processo nº. 1924.

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incutindo neles uma imagem de senhor paternal que premiava os escravos com a liberdade – ou mesmo frente à própria justiça – que deveria favorecer a liberdade em detrimento da escravidão. Se assim interpretássemos, estaríamos anulando o local em que essas promessas foram feitas - a própria justiça – e principalmente, minimizando a ação dos outros sujeitos sociais, sobretudo os escravos, neste processo.

Muito embora José de Campos Penteado e provavelmente muitos outros senhores de escravos no Brasil do século XIX, interpretasse que a justiça deveria atuar como instrumento de reafirmação de sua hegemonia de classe, é inegável que concediam a ela papel importante para deliberar questões delicadas a época, como, por exemplo, a liberdade. Mesmo interpretando que a liberdade estava restrita a sua autoridade, ao domínio do privado, esses senhores utilizaram a justiça como um instrumento importante que deveria, segundo suas percepções, legitimar suas vontades.

No entanto, como procuramos argumentar em todo este trabalho, a alforria – bem como a própria justiça2 – não deve ser interpretada como o resultado exclusivo da vontade senhorial unilateralmente imposta de cima para baixo, que visava, em última instância, a reiteração de seu poder e conseqüentemente a perpetuação da ordem escravista. Como já destacamos, interpretar a alforria como dádiva senhorial é deslegitimar as ações dos múltiplos sujeitos históricos no processo de luta e transformações sociais da sociedade escravista brasileira do século XIX3. A alforria do carapina Manoel assim como todas as demais liberdades destacadas neste trabalho, foi interpretada como um processo contínuo de luta, mediado pelas experiências e tradições culturais compartilhadas pelos mais díspares sujeitos sociais, que se transformou no tempo e no espaço, ganhando significados múltiplos para os diferentes agentes que dela participaram.

Foi a partir deste viés que procuramos perceber como escravos e senhores interpretaram a prática da alforria na cidade de Campinas em dois recortes temporais divididos pelo importante marco do fim do tráfico atlântico de escravos (1836-1845 e 1860-

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THOMPSON, E P.. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 3

LARA, Sílvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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1871). Para isso, procuramos abordar o fenômeno da alforria a partir de múltiplos ângulos, ou seja, por meio do exame e cruzamento de diferentes fontes: inventários post-mortem, testamentos, autos de prestação de verbas testamentárias, cartas de alforria e ações de liberdade.

Vimos que a própria escolha na utilização dos diversos meios pelos quais o escravo transformava-se em liberto indica os diferentes entendimentos políticos dos sujeitos que dela participaram. Em outras palavras, alforriar por meio de uma carta de alforria ou utilizando do testamento para isso significou maneiras distintas de interpretar o fenômeno da alforria no Brasil do século XIX.

Sugerimos que alto índice de liberdades incondicionais verificado nos testamentos campineiros nos dois períodos abordados é resultado da própria peculiaridade deste tipo de fonte, de dimensões simbólicas e públicas. Da mesma forma, a desconexão de nossos dados com outros estudos sobre a alforria no Brasil que utilizaram as cartas de alforria como fonte principal e destacaram o predomínio das liberdades condicionais, pode indicar, igualmente, uma supervalorização dessas últimas uma vez que o registro delas nos cartórios pelos escravos ou mesmo por seus senhores significaria uma garantia a mais ao cumprimento das condições impostas. Neste sentido, procuramos argumentar que a maneira como os escravos eram alforriados – por meio de cartas de alforria ou através dos processos de herança – pode ter influenciado no tipo de alforria que eles recebiam.

Igualmente, buscamos destacar que o registro nos cartórios de Campinas das liberdades observadas nos processos de herança nos dois períodos avaliados estava também ligado às próprias percepções políticas dos escravos e seus senhores quanto à escravidão e à liberdade no Brasil do XIX4. Ao encontrar um índice de registro mínimo delas nos cartórios da cidade, argumentamos que essa cifra foi determinada não apenas pelas diversas percepções políticas destes sujeitos quanto à escravidão e a liberdade, mas também pela

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LIBBY, Douglas C. e GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. “Reconstruindo a liberdade: Alforrias e forros na Freguesia de São José do Rio das Mortes, 1750-1850”. Vária História, Belo Horizonte, 30, Jul/03, pp. 112-151; LIBBY, Douglas C. “À procura de alforrias e libertos na freguesia de São José do Rio de

Mortes, c. 1750 - c. 1850”, paper apresentado no seminário de Linha de Pesquisa II (História Social da

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própria natureza dessas fontes – sobretudo a partir das verbas testamentárias que tinham a função jurídica de legitimar as disposições testamentais, como a liberdade - bem como pelo reconhecimento social por parte da sociedade da nova condição social desses libertos5. Argumentamos que o conjunto dessas três hipóteses pode explicar os baixos índices de registro das liberdades nos cartórios de Campinas nos períodos estudados.

Da mesma maneira, pontuamos que as transformações observadas no perfil dos libertos e nos tipos de liberdades que receberam no período 1860-1871 em relação ao decênio 1836-1835 – o aumento, em números, absolutos dos homens e das alforrias condicionais - foram resultados de uma mudança necessária das estratégias senhoriais de domínio dos senhores campineiros neste período bem como das próprias estratégias empregadas pelos escravos na luta por suas liberdades6. Em outras palavras, as interpretações em relação ao futuro do escravismo no Brasil pelos senhores campineiros assim como pelos seus escravos podem ter se alterado já na década de 1860, e conseqüentemente, a adoção de novas políticas de alforria e estratégias escravas fizeram parte desse jogo.

Especificamente no exame das trajetórias dos pretos Francisco Ferreira de Souza Marques e Caetano Lopes Vianna, objetivamos enfatizar que além da escravidão e liberdade possuírem múltiplos significados para eles, elas assinalam para as múltiplas formas de luta dos escravos pela liberdade no Brasil do século XIX, sendo a arena jurídica, um dos palcos cada vez mais utilizado por estes sujeitos para alcançarem este fim.

O que ainda não foi realizado neste e nem entre os estudos pioneiros e os trabalhos recentes sobre a alforria no Brasil, é o deslocamento da questão da alforria para além das fazendas, dos centros urbanos ou das unidades domésticas. Ou seja: quais teriam sido as funções políticas e sociais que senhores e escravos teriam assumido durante parte de suas

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DAMASIO, Adauto. Alforrias e Ações de Liberdade em Campinas na primeira metade do século XIX. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Estadual de Campinas, 1995; GUEDES, Roberto.

Egressos do Cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social. (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c.

1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008; MATTOS [de Castro], Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste Escravista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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MACHADO, Maria H. P. T. O Plano e o Pânico, op. cit.; ver também: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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vidas e qual teria sido a relação dessas experiências com suas interpretações sobre o fenômeno da alforria naquele Brasil do XIX? Mas este é um dos temas que irá compor uma outra história.

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