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A peste tornou-se companheira da vida do ser humano entre os séculos XIV e XVIII. O medo da morte suscitou na humanidade medieval o medo da condenação eterna. A terrível morte, especialmente pela peste, aguçava ainda mais o imaginário de um Deus terrível. A religião tornou-se uma “matemática da salvação do eu”, em detrimento da caridade, do amor ao próximo. Por causa da “matemática da salvação do eu”, Lutero tornou-se monge para “merecer a salvação”. Contudo, a redescoberta evangélica o leva a interpretar a peste na perspectiva de lei e evangelho. Segundo Lutero, a ameaça da morte pela peste se apresenta como punição de Deus pelo pecado humano. Ela é expressão da lei. Mas é lei que move para o evangelho, para a boa- -nova. Em meio à realidade da morte, pela fé, o ser humano é liberto do egoísmo para tornar-se um pequeno Cristo para o seu próximo. Na pessoa doente, Cristo é encon- trado. Na pessoa enferma, Cristo é servido. Por essa razão, em seus escritos, em par- ticular em Se é permitido fugir diante da ameaça de morte, Lutero não apresenta uma solução moralista e maniqueísta: permanecer e cuidar de pessoas infectadas ou fugir e preservar a própria vida. Para Lutero, vida e cuidado da vida de pessoas enfermas não podem ser contrapostos. Tanto a preservação da própria vida quanto a preservação e cuidado da vida de pessoas enfermas são imperativas. O que define uma ou outra é o chamado. Pessoas que têm a função do cuidado e da assistência a pessoas doentes devem assumir o compromisso com pessoas enfermas. As demais devem se preservar. Conjugadas “evangelicamente”, ambas apontam para uma mesma direção: A VIDA!

67 BRECHT, 1987, p. 252.

68 LUTHER, Martin. An Wenzeslaus Link. 26. Oktober 1539. In: ALAND, Kurt (Hrsg.). Gesammelte Werke.

Bd. 10, p. 278; BRECHT, 1987, p. 252-253; JUNGHANS, 2001, p. 178.

69 LUTHER, Martin. Vorlesung über den Römerbrief (1515/1516). In: ALAND, Kurt (Hrsg.). Gesammelte

Werke. Bd. 1, p. 173. “Die Kirche ist eine Herberge und Krankenhaus für Kranke und Pflegebedürtige.

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http://dx.doi.org/10.22351/et.v60i2.4074

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De mortalitate: Cyprian of Carthage and the pandemic of the third century

José Mário Gonçalves2 Resumo: O artigo apresenta a obra De mortalitate, de Cipriano de Cartago (+258), à luz do seu pano de fundo histórico, a saber, a pandemia conhecida como “Praga de Cipriano”, que atingiu o Império Romano na segunda metade do século III, deixando um considerável saldo de mortos e afligindo tanto pessoas pagãs como cristãs. Analisam-se os principais argumentos do bispo cartaginense que procura exortar seus fiéis diante da tragédia. Discutem-se as teses de Rodney Stark sobre o papel das epidemias no crescimento do cristianismo e procura-se refletir criticamente sobre como as crenças e atitudes defendidas por Cipriano podem nos ajudar diante da atual pandemia de Covid-19.

Palavras-chave: Cipriano de Cartago. Pandemia. História do cristianismo.

Abstract: This paper presents the work De mortalitate by Cyprian of Carthage (+258) in the light of its historical background, namely the pandemic known as “Plague of Cyprian”, that struck the Roman Empire in the second half of the 3rd century leaving a considerable number of dead, both pagans and Christians. It analyzes the main arguments of the Carthaginian bishop who seeks to exhort his faithful in the face of tragedy. Rodney Stark’s theses on the role of epidemics in the growth of Christianity are discussed and we seek to reflect critically on how the beliefs and attitudes advocated by Cyprian can help us in the face of the Covid-19 pandemic.

Keywords: Cyprian of Carthage. Pandemic. History of Christianity.

Introdução

Em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi caracterizada pela Organização Mun- dial da Saúde (OMS) como uma pandemia, isto é, como uma doença cujo contágio

1 O artigo foi recebido em 21 de julho de 2020 e aprovado em 12 de outubro de 2020 com base nas avaliações

dos pareceristas ad hoc.

se espalhou por várias regiões geográficas.3 Até 24 de julho, a OMS contabilizava

15.296.926 casos de Covid-19, 628.903 mortes em todo o mundo.4 De acordo com

o Ministério da Saúde do Brasil, em 27 de julho de 2002, 2.419.091 brasileiros já haviam sido infectados e o número de mortos pelo novo coronavírus era de 87.004

pessoas.5 Esses números são alarmantes por si, sem entrar no mérito das possíveis

subnotificações, que, se contabilizadas, elevariam consideravelmente essa estatísti-

ca.6 Trata-se de uma das piores tragédias humanitárias de nossa história recente e

as igrejas cristãs (bem como outras comunidades de fé) foram desafiadas a repensar suas crenças e suas práticas à luz dessa nova situação. Não é a primeira vez que isso acontece na história e o caso que apresentaremos aqui pode nos ajudar nessa reflexão. Entre o século I e o século IV d.C., cinco grandes pragas atingiram o Império Romano: a primeira foi em 79, depois da erupção do Vesúvio, quando uma epidemia, provavelmente de malária, atingiu toda a região da Campagna; a segunda, no ano de 125, conhecida como “Praga de Orosius”, por ter sido narrada por esse historiador, deve ter sido provocada pela peste bubônica; a terceira aconteceu ente 164-180 e é chamada “Praga dos Antoninos”, que começa nas fronteiras orientais do império e chega a Roma em 166, matando milhares de pessoas, entre elas o imperador Marco Aurélio. Essa praga pode ter sido de varíola ou tifo. A quarta é conhecida como a “Praga de Cipriano” e ocorreu entre 251-266 e pode ter sido causada por sarampo ou varíola, e também provocou uma imensa mortandade; e a quinta ocorreu em 312,

talvez de varíola, sobre a qual pouco sabemos.7

A “Praga de Cipriano”8, que nos interessa neste artigo, tem esse nome porque

ela aconteceu durante a vida e o ministério desse famoso bispo e mártir norte-africano. Cipriano foi bispo em Cartago, África do Norte, de 249 a 258, quando sofreu o mar-

tírio no tempo do imperador Valeriano.9 Ele é uma das fontes antigas sobre a praga,

tendo escrito em 253 a obra De mortalitate (“A mortalidade”) para encorajar e exortar

a comunidade cristã a se manter firme na fé durante a terrível pandemia.10 Nela se

3 WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on

COVID-19-11 March 2020. Disponível em: <https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-

s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020>. Acesso em: 27 jul. 2020.

4 ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE SAÚDE. Folha informativa – COVID-19. Disponível em:

<https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Item id=875>. Acesso em: 27 jul. 2020.

5 BRASIL. Ministério da Saúde. Coronavírus Brasil – Painel Coronavírus. Disponível em: <https://covid.

saude.gov.br/>. Acesso em: 27 jul. 2020.

6 Para uma análise dessa subnotificação, veja-se PRADO, Marcelo Freitas do et al. Análise da subnotificação

de COVID-19 no Brasil. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, v. 32, n. 2, p. 224-228, 2020.

7 BRAY, Robert Stow. Armies of pestilence: the impact of disease on history. New York: Barnes & Noble,

2000. p. 12-13. A indefinição sobre a natureza exata de cada uma dessas epidemias ou pandemias deve-se à escassez das fontes bem como aos limites de conhecimento dos autores que as descreveram à época.

8 No texto de Cipriano, as palavras mortalitas, pestilentia, malorum, pestis e plagis são usadas para descrever

a pandemia.

9 SAXER, Victor. Cipriano de Cartago. In: BERARDINO, A. (Org.). Dicionário patrístico e de antiguidades

cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 292.

10 MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. História da literatura cristã antiga grega e latina I: de

encontra uma descrição dos sintomas da doença que assolava o império: febre, ulce- ração, vômito contínuo, ardor nos olhos, putrefação de membros (que precisam ser

amputados), paralisia das juntas, surdez e cegueira.11 Nas páginas a seguir, (1) fare-

mos uma breve análise dessa obra de Cipriano, destacando seus principais temas, (2) consideraremos o texto à luz das teses de Rodney Stark sobre o papel das epidemias no crescimento do cristianismo e (3) tentaremos apontar alguns caminhos que podem nos ajudar em nossa presente situação.