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Afirmamos que profissão é um conceito sociológico, mas também histórico. Não é possível falar de profissão sem abordar o processo sócio-histórico que a constitui. Ao longo deste processo – denominado profissionalização – os trabalhadores se organizam para conquistar legitimidade e serem reconhecidos como profissionais dentro de uma divisão do trabalho. Para tanto, faz-se necessário que estes profissiona is dominem um determinado conjunto de conhecimentos específicos e aplicáveis (expertise), organizem-se em torno de interesses comuns, sejam capazes de controlar a formação, o treinamento e a realização de seu trabalho, bem como consigam resguardar seus interesses por meio da regulamentação legal formalizada pelo Estado. Estas são algumas das exigências para que uma profissão consiga monopolizar uma parte do mercado de trabalho e conquistar privilégios que a coloquem em vantagem em relação à concorrência.

Graças ao domínio de uma expertise exclusiva e reconhecida, uma profissão se torna capaz de monopolizar a realização de um determinado conjunto de tarefas, estabelecendo fronteiras de competência e uma autoridade hierárquica no seio da divisão do trabalho em que se insere (autoridade da expertise). Este é o caso da profissão médica que, pelo fato de deter uma expertise consagrada – que resolve problemas práticos e alivia o sofrimento humano –, conquistou e hegemonizou o campo da saúde. Apesar disso, pudemos observar ao longo do presente trabalho que esta hegemonia vem sendo criticada.

Nos últimos anos, com a expansão dos conhecimentos científicos e tecnológicos, uma série de novas áreas de atuação emergiram no campo da saúde, possibilitando a aproximação entre fronteiras de competência. Em outras palavras: Graças ao domínio de conhecimentos mais complexos, profissões mais recentes passaram a exercer atividades que anteriormente eram exclusivas dos médicos. Neste sentido, a existência de fronteiras muito próximas e mal delimitadas entre áreas afins vem promovendo disputas e conflitos. A participação do Estado na regulamentação do exercício profissional privativo ou exclusivo se configura como uma solução para estes problemas.

Uma vez que estas transformações igualmente afetam a profissão médica, podemos afirmar que a proposição de um projeto de lei que pretende definir todos os procedimentos realizados na assistência à saúde como atos médicos é uma reação a tudo isso.

Desde sua apresentação ao Senado Federal, o denominado “Projeto de Lei do ato

médico” criou um campo de disputas pela preservação e ampliação de privilégios, reconhecimento social e hegemonia entre as corporações profissionais que compõem o setor saúde. Neste campo, em que há diferentes interesses em jogo, identificamos entre os representantes corporativos entrevistados três possibilidades de posicionamento em relação à regulamentação do ato médico. Como em todo conflito, existem os que se posicionam a favor (médicos), os que se opõem e criticam (enfermeiros e psicólogos) e os que, mesmo sem se posicionarem contra ou a favor, são de alguma forma afetados pela discussão (gestor de saúde pública).

Cabe mencionar que, quando chamados a debater a questão da Casa de Parto, estes depoentes mudaram de posicionamento. Em outras palavras: os médicos que defenderam o

ato médico, durante a discussão sobre a Casa de Parto, ocuparam a posição de críticos do modelo. Os enfermeiros que criticaram o ato médico, nesta discussão, passaram a defensores. O médico-mediador e gestor público de saúde que, na discussão do ato médico, se apresentou como o ponto de equilíbrio, no debate sobre a Casa de Parto assumiu uma postura de defesa deste modelo assistencial. Neste sentido, podemos perceber que, de acordo com os interesses que estão em jogo, os atores sociais assumem posições diferentes.

No debate que realizamos entre as idéias destes representantes corporativos, observamos que os conflitos estão presentes no desenrolar do processo de

profissionalização. Cada depoente ofereceu os melhores argumentos para defender sua posição. De maneira geral, os médicos-críticos, baseados na autoridade da expertise, buscaram persuadir a sociedade de que somente os profissionais médicos detêm a formação mais completa e uma expertise com maior resolutibilidade e aplicabilidade que as demais profissões do campo da saúde. Com este argumento, pretenderam justificar a manutenção da hierarquia dentro da equipe de saúde, na qual o médico possui posição privilegiada e hegemônica. Por outro lado, divergiram no que diz respeito à responsabilidade pela intromissão de outros profissionais nas atividades médicas. Para Aloísio Tibiriçá, a responsabilidade deveria ser atribuída aos próprios médicos que, por ação ou omissão, transferem para outros profissionais a responsabilidade pelo ato médico. Para Mauro Brandão, os médicos não são responsáveis, mas sim as autoridades que, deliberadamente, permitem este tipo de prática quando incentivam a realização do ato

De outro lado, enfermeiros e psicólogos criticaram a forma como foi apresentada a proposta de regulamentação do ato médico. Na opinião dos enfermeiros-críticos, o ato

médico representa um ataque direto às conquistas profissionais desta categoria no que diz respeito à realização de atividades que anteriormente eram exclusivas dos médicos, tais como a prescrição de medicamentos e a solicitação de exames complementares. Uma vez que a enfermagem, desde sua origem, ficou subordinada à hegemonia medicina, podemos inferir que este ganho de autonomia por parte dos enfermeiros represente uma ameaça aos interesses da corporação médica. Ao mesmo tempo significa, para os enfermeiros, a possibilidade sair do lugar de subordinado para exercer controle sobre seu trabalho. Um exemplo disso é a recente adoção do modelo assistencial preconizado pela denominadas

Casas de Parto. No entanto, os enfermeiros divergiram acerca da existência de relação entre ato médico e a Casa de Parto. Segundo Gilberto Linhares, a relação entre o ato

médico e a implantação das Casas de Parto se estabelece em decorrência da necessidade de reservar de mercado e da postura corporativista de alguns dirigentes de entidades médicas. Para a Prof.ª Maria Tyrrell, não haveria relação entre um tema e outro, mas considera que a regulamentação do ato médico encontra sustentação numa luta corporativa de caráter econômico.

Já as psicólogas-críticas propõem um entendimento mais amplo da questão do ato

médico. Ambas consideram que esta questão tem relevância social, ao mesmo tempo julgam que representa uma visão reducionista do conceito de saúde. Por outro lado, embora considerem importante a defesa dos interesses corporativos, apresentam graduações diferentes quando falam sobre o assunto. Para Margarete Paiva, a defesa dos interesses corporativos não deve ser encarada como disputas entre categorias profissionais. Neste sentido, exalta a importância do trabalho em equipe para a construção de um trabalho de assistência que atenda às necessidades da população. Já a opinião de Diva Conde, quando comparada à de Margarete Paiva, apresenta uma ênfase maior na defesa dos interesses corporativos. Isso se evidencia quando ela assevera que, em respeito ao Código de Ética profissional dos psicólogos, não abrirá mão de seu conhecimento nem ocupará o lugar de outras áreas do saber. Contudo, permitirá que ocupem o seu espaço no campo profissional.

A respeito do mediador, podemos dizer que, embora seja médico, Marcos Dias se posicionou à distância do processo de regulamentação do ato médico, afirmando não tê-lo acompanhado. Apesar disso, na sua opinião, o ato médico é uma iniciativa caracterizada

pela disputa de mercado, estando divorciada de um conceito mais amplo de saúde. Quanto à discussão sobre a Casa de Parto, Marcos Dias, no papel de gestor público de saúde e responsável pela implantação deste modelo assistencial, assumiu a postura de defensor. Na sua opinião, a proposta da Casa de Parto não traz prejuízos para a prática do médico, mas, em certa medida, admite que esta proposta assistencial possa trazer benefício para os enfermeiros. Segundo ele, o enfermeiro resgataria a integralidade da assistência.

Cabe dizer que esta investigação não teve pretensão de estabelecer certezas sobre o

ato médico, tampouco defendê-lo, acusá-lo, ou mesmo recusá-lo. Ao recuperarmos as opiniões destes atores sociais, mostrando como se posicionam em relação à regulamentação do ato médico e à implantação de Casas de Parto, objetivamos rastrear os conflitos e os interesses presentes nas relações entre profissões de saúde no Brasil contemporâneo. Esta empreitada não foi feita de forma neutra: o historiador também tem suas próprias visões e reações a respeito do tema. Neste sentido, as conclusões a que chegamos são parciais, assim como são parciais as visões dos depoentes analisados. No entanto, nossa proposta tem como objetivo provocar, questionar, produzir sentidos – ainda que provisórios – para que as disputas entre profissões não se tornem dispositivos legitimadores de práticas naturalizadas (e naturalizantes) que segregam, subordinam e limitam.