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ATO MÉDICO: VISÕES E REAÇÕES

IV – MEDIANDO O DEBATE ENTRE OS ATORES

4. Interferência na Autonomia Profissional: como os atores percebem?

A autonomia é considerada um dos pilares da profissionalização. Ela se configura quando o trabalhador, lançando mão dos conhecimentos adquiridos ao longo de sua formação, controla a realização de seu próprio trabalho, a despeito da organização administrativa em que está inserido. Logo, podemos dizer o grau de autonomia de uma ocupação está diretamente relacionada à posição que ocupa dentro de uma divisão do trabalho e ao valor que recebe dentro do mercado de trabalho.

Neste sentido, passaremos a análise das percepções dos depoentes a respeito de possíveis interferências, mesmo ou conseqüências, da regulamentação do ato médico na sua autonomia e/ou na de outros profissionais.

De maneira geral, os médicos-defensores avaliam que a regulamentação do ato

médico não interfere na práticas das demais profissões de saúde. Para o ex-Senador Geraldo Althoff, não existe interferência porque as outras atividades já possuem suas atribuições e competências definidas em Lei. O depoente explica que a proposta apenas pretende atribuir ao médico suas próprias competências, não interferir na prática dos outros

profissionais: “ – Então, aquilo que já existe das outras profissões vai continuar existindo, tanto é que na discussão do ato médico não tem nenhuma proposta de alteração das legislações específicas de cada atividade profissional”268.

Já Mauro Brandão explica que não há interferência, porque todas as profissões de saúde regulamentadas possuem seu próprio núcleo de competência, ou seja, cada categoria profissional conquistou exclusividade sobre o exercício de um determinado conjunto de atribuições. Por isso, o depoente argumenta que a proposta do ato médico define o diagnóstico de doenças e a prescrição terapêutica, atribuições estas que não são exclusivas de nenhuma delas: “– Não existe em nenhuma Lei de nenhuma dessas outras profissões da área da saúde tal regulamentação, portanto, é um núcleo de competência exclusivo da Medicina e não interfere em nada com a atividade outros profissionais”269.

Segundo Brandão, a regulamentação do ato médico tem relação com a qualidade da assistência em saúde que vem sendo oferecida às classes pobres. Ele explica que os gestores públicos, de forma deliberada, vêm excluindo o médico das equipes de saúde, e oferecendo à população um arremedo de assistência à saúde. Nas suas palavras:

“– A Medicina sem médico é um engano para a população; ela é uma espécie de “medicina de pobre para gente pobre”. Por quê que não fazem isso na classe média e na classe mais abastada, eles não levam os filhos deles para serem tratados pelo Auxiliar de Enfermagem, eles procuram médicos?”270.

Neste sentido, Mauro Brandão ressalta a importância da presença do médico na equipe de saúde. Declara que a proposta do ato médico defende, por um lado, a existência de equipes de saúde completas, onde cada profissional executa o que é sua atribuição e, de outro, defende a idéia de que a população deve ser informada com clareza sobre o que cada profissional faz dentro da equipe. No seu entendimento, sem isso, o que se tem é “uma ‘assistência médica de segunda para gente de segunda’, que são justamente os menos favorecidos, os mais pobres”271.

Estas declarações sugerem o entendimento, por parte do depoente, de que é o médico quem vem sofrendo interferências em sua prática profissional e perdendo privilégios que, anteriormente, não eram questionados. Interessante é notar que a exclusão da equipe e a invasão das fronteiras de competência são consideradas fruto de políticas

268 Entrevista realizada com Geraldo Althoff, em 12/07/2004, em Florianópolis/Santa Catarina. 269 Entrevista realizada com Mauro Brandão, em 16/08/2004, no Rio de Janeiro.

270 Ibidem.

estatais que prejudicam não só o profissional médico mas igualmente a população mais pobre. Neste sentido, o Estado aparece podendo fazer o papel de aliado ou de adversário dos interesses corporativos. Diante disso, podemos dizer que a proposta do ato médico, de um lado, reafirma o papel de mediador das disputas entre profissões desempenhado pelo Estado brasileiro. E, de outro, indica que a medicina, embora seja hegemônica no campo da saúde, não pode prescindir de uma regulamentação formal que garanta os seus privilégios.

Apresentando posição diametralmente oposta à de Mauro Brandão, o enfermeiro- crítico Gilberto Linhares não tem dúvidas quanto à interferência do ato médico na Enfermagem. O depoente avalia que se a indicação terapêutica das doenças for considerada atribuição exclusiva da Medicina, todos os profissionais dependerão dos médicos para exercerem suas funções. “– Então, o que é um curativo? Nada mais é que uma indicação terapêutica. E eu só poderei fazer um curativo se o médico indicar, ou seja, subordina. No momento em que esta palavra “privativo” permanecer ali, todos estaremos dependendo dele”272.

Em consonância, a Prof.ª Maria Tyrrell ressalta que a proposta do ato médico surgiu de uma forma inadequada, “num momento que não é mais de autoritarismo”273. A depoente entende que os médicos não consideraram direitos constitucionais, pois não discutiram a questão com as outras profissões de saúde, nem “sequer os enfermeiros que são os que mais trabalham de mãos dadas com eles”274. Por isso, na sua opinião, os médicos cometeram “um ato... autocrático, corporativo, inclusive, contra o espírito democrático e constitucional que reina”275 no Brasil. Diante disso, a Prof.ª Maria Tyrrell considera que há interferência na prática não só dos enfermeiros, mas de todos os profissionais de saúde, porque:

“– desde o surgimento desse projeto, nós temos tido moções de protesto, de repúdio, não contra a necessidade de eles se regulamentarem, mas sim na forma como o fizeram e na descrição dos artigos que aboliam qualquer autonomia e proficiência das profissões liberais da área da saúde, como a Nutrição, Psicologia, a Enfermagem mesmo que será a mais atingida, etc., etc. Então, eu acho que isso é um ato muito violento, muito hegemônico mesmo”276.

272 Entrevista realizada com Gilberto Linhares, em 06/07/2004, no Rio de Janeiro. 273 Entrevista realizada com Maria Antonieta Tyrrell, em 23/07/2004, no Rio de Janeiro. 274 Ibidem.

275 Ibidem.

Para os enfermeiros-críticos, portanto, a proposta do ato médico interfere diretamente na autonomia dos profissionais de saúde, em especial na do enfermeiro.

Nesse ponto, cabe fazer uma reflexão sobre as posições de médicos e enfermeiros. De acordo com as declarações, ambos destacam a equipe de saúde como locus de conflitos interprofissionais. De um lado, os médicos se vêem excluídos da equipe e substituídos por outros profissionais de saúde. De outro, os enfermeiros se sentem excluídos da discussão do ato médico e, por isso, entendem que a proposta dos médicos visa a torná-los dependentes. Diante disso, podemos dizer que, de maneiras diferentes, ambos percebem a exclusão e a perda de autonomia.

Para os médicos, a exclusão é fruto de uma política econômica estatal que objetiva reduzir os custos da assistência à saúde. Neste objetivo, os responsáveis pela gerência da saúde, ao atribuírem competências a profissionais não-qualificados, estariam institucionalizando a intromissão no ato profissional do médico. Ou seja, profissionais não habilitados estariam exercendo competências médicas para prestar uma assistência mais barata. Como conseqüência disso, o médico perderia o controle sobre o seu trabalho por estar sendo excluído da equipe de saúde.

Os enfermeiros demonstram descontentamento com a falta de discussão sobre o ato

médico. Podemos dizer que o estranhamento é fruto de um sentimento de exclusão da equipe de saúde, visto que ambos, médicos e enfermeiros, fazem parte dela. Neste sentido, diferentemente dos médicos, os enfermeiros não se sentem substituídos por outro profissional. No entanto, avaliam que a proposta do ato médico tem o intuito de subordinar, não só os enfermeiros, mas todos os profissionais que compõem a equipe de saúde. Diante disso, os profissionais somente exerceriam suas atribuições com a autorização do médico. Em outras palavras, perderiam o livre-arbítrio sobre o seu próprio trabalho, devendo cumprir as determinações dos médicos.

Já a psicóloga Margarete considera que é difícil avaliar a interferência na atuação do psicólogo de maneira geral, mas identifica várias instâncias onde a questão poderia se apresentar: Centros de Testagem e Acompanhamento (CTAs), os serviços em que é realizado o planejamento familiar, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os convênios de planos de saúde.

Utilizando a sua experiência, a depoente aponta os Centros de Testagem e Acompanhamento (CTAs) como possíveis locais de conflito. Nos CTAs, a presença do

médico não é obrigatória, haja visto que o serviço objetiva dar conhecimento da condição sorológica aos sujeitos que se submetem à testagem sangüínea para identificação da existência do HIV. A depoente explica que muitos destes CTAs não possuem profissionais médicos, mas, geralmente, são integrados por equipes constituídas por enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais.

A respeito dos serviços voltados para o planejamento familiar, observa que poderão sofrer conseqüências. Explica que estes serviços preconizam uma ação educativa com mulheres e seus parceiros no que se refere à escolha de métodos contraceptivos. Geralmente, poucos deles contam com a participação do profissional médico. Neste sentido, entende que se as pessoas não puderem ter autonomia para desenvolver essas práticas, elas não poderão mais ser realizadas na rede pública.

Quanto ao setor de Saúde Mental, Margarete Paiva aponta que, atualmente, existem muitos serviços voltados para este campo dirigidos por psicólogos. No seu entendimento, por conta do trabalho em equipe, o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial não sofreria danos.

“– Onde esse trabalho de equipe se instituiu como uma forma melhor de trabalho, eu acho que não retrocede. Não é simplesmente a Lei que muda, até porque tem um monte de Lei que não é cump rida. Acho que ela pode ser mais uma – em alguns aspectos – que também não seja, pela própria defesa e militância de posições contrárias pelos próprios profissionais de saúde mental. O Congresso de CAPS de São Paulo tira um documento contrário ao PL 25/02 e apoiado pelos psiquiatras que lá estavam presentes”277.

A depoente julga que a aprovação do PLS n.º 25/02 criaria conflitos na medida em que o psicólogo, para receber um paciente para tratamento, deveria ter encaminhamento de um médico. Caso contrário, poderia ser questionado. Neste sentido, podemos dizer que, embora não seja uma legislação que diga respeito aos psicólogos, interfere na autonomia deste profissional. Conseqüentemente, observa a depoente, isso afetaria os atendimentos conveniados a planos de saúde e, em certa medida, desautorizaria o profissional psicólogo: “– Os convênios certamente passariam a exigir, antes de uma pessoa procurar psicoterapia, uma avaliação médica. Ele vai encarecer. Eu acho que isso iria, se aprovado, criar uma...

desautorização do profissional psicólogo numa série de instâncias e que ferem a autonomia do psicólogo”278.

Corroborando com o entendimento de Margarete Paiva, Diva Conde lamenta a prerrogativa, trazida pela proposição do ato médico, que cria a necessidade de um diagnóstico médico para que se proceda a um atendimento psicológico. A depoente destaca uma série de aspectos que devem ser considerados na condução de um atendimento psicológico, enfatizando que somente o psicólogo pode avaliar qual o melhor caminho a ser seguido. Neste sentido, podemos dizer que é necessário realizar a distinção entre diagnóstico médico e diagnóstico psicológico, pois nem toda investigação conduzida por entrevistas é de competência do médico. Diante disso, a depoente defende as prerrogativas do psicólogo:

“– Ele é quem deve conduzir uma análise e conduzir o retorno. Se aquela pessoa não precisa, cabe ao psicólogo conduzir isso. Se a pessoa precisa de um tipo de terapêutica, um tipo, uma linha... a Psicologia tem essa característica. Existem linhas que podem ser linhas mais aplicáveis a determinado tipo de problema. Nós ainda trabalhamos se a melhor pessoa para ser o terapeuta é um homem ou uma mulher. Nós ainda temos um trabalho da quantidade do número de atendimentos da proposição terapêutica que se faz. As linhas diversas em relação ao tamanho do tratamento. Então, apenas um psicólogo pode fazer esse diagnóstico. Como é que o médico vai dizer se a pessoa tem direito...? A não ser que ele faça um curso de Psicologia, porque, se ele fizer um curso de Psicologia, ser interventor... é privativo do psicólogo. Eu falo da pessoa que fez os cinco anos de Psicologia. (...) Eu não vejo como uma pessoa não sendo psicólogo vai fazer essa indicação. Não é possível! Eu diria: Não é possível!”279.

De maneira geral, podem ser percebidas, no posicionamento das psicólogas, preocupações tanto com questões de ordem corporativa, quanto com questões de ordem social. No primeiro aspecto, apontam os efeitos do ato médico na autonomia do psicólogo; no segundo, levam em conta a qualidade da assistência oferecida à população.

Além disso, foi apontado que muitos serviços de saúde não contam com a presença do médico. Podemos supor em primeiro lugar que, de fato, a ausência deste profissional esteja relacionada a uma política de exclusão do Governo, com vistas ao barateamento da assistência. Em segundo, podemos supor que, pela localização e/ou pela baixa remuneração, os médicos não procurem atuar ou não consigam se fixar nestes serviços. Em terceiro, podemos supor que, pelo fato de receber uma formação que privilegia a utilização de aparatos tecnológicos e técnicos em detrimento da relação humanizada com a clientela,

278 Entrevista realizada com Margarete Paiva, em 19/07/2004, no Rio de Janeiro. 279 Entrevista realizada com Diva Conde, em 18/08/2004, no Rio de Janeiro.

o médico não esteja atendendo ao perfil definido como ideal para atuar em alguns destes programas assistenciais.