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O Estado democrático de direito pressupõe que haja um poder discricionário inerente à atividade judicial. Não há como haver um sistema jurídico sem qualquer margem de livre apreciação por parte do juiz, na medida em que interpretar normas, princípios, valores e casos concretos implica na realização de escolhas. Não há como separar-se, em absoluto, como queriam os racionalistas, o sujeito do seu objeto de análise. Ambos relacionam-se e interagem mutuamente.

Deste modo, o positivismo jurídico, apresentado como alternativa à discricionariedade judicial, transfere uma parte significativa do poder discricionário do juiz para o poder legislativo, mas não a retira completamente. Além do mais, as leis e procedimentos formais, quando aplicados isoladamente – sem uma compreensão do sistema de justiça como totalidade – a um determinado caso concreto, não raro entram em contradição com os valores fundamentais deste sistema e acabam, assim, obstruindo a concretização da idéia de justiça vigente.

A função ideal do Estado democrático direito é a de concretizar uma concepção de justiça compartilhada por uma determinada comunidade ética, respeitar as diferenças (e diferentes) e priorizar os direitos construídos historicamente pelos seus membros. Nesse sentido, o direito é um instrumento para a concretização da justiça. A interpretação que assemelha direito e lei deixa de lado a principal função do sistema de justiça e tende a servir aos interesses dos indivíduos que possuem acesso à elaboração das leis, seja por influência política, econômica ou de qualquer sorte.

A hipótese que parece mais razoável, no que concerne às possíveis formas de interpretação do direito, é a de que o juiz deve, em sua atividade de julgar, buscar, através de um pensamento sistemático, uma compreensão do sistema como totalidade, no sentido de que, ao tomar uma decisão, deve estar aplicando toda uma concepção de justiça ao caso concreto.

Assim, deve buscar uma aproximação entre os valores que fundamentam o sistema (que devem ser justos) e a realidade objetiva, afastando leis e procedimentos que obstruam esse fim. No entanto, para que se evite a possibilidade de uma sociedade reconhecer constitucionalmente valores injustos, opressores e que configurem ameaças à autonomia de outras concepções morais, o pensamento sistemático necessita de uma teoria da justiça para fundamentar os limites de uma razão pública razoável.

Estes limites podem ser encontrados nos dois princípios políticos de justiça desenvolvidos por John Rawls, em sua teoria da justiça como eqüidade, cuja fundamentação filosófica baseia-se em um artifício de representação, onde as pessoas são tidas como livres e iguais. Tais princípios possuem a função de preservar a prioridade de um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais para todos, além de uma igualdade eqüitativa de oportunidades e do princípio da diferença, segundo o qual as desigualdades existentes devem ser justificadas por uma melhoria nas condições dos indivíduos menos favorecidos da sociedade.

A teoria de Rawls merece algumas considerações (seria muito pretensioso falar em correções): os indivíduos na posição original não devem ser influenciados por valores, portanto, a noção de racionalidade proposta pelo autor como ponto de partida – por tratar-se de uma concepção individualista, contingente, a qual não pode ser universalizada – condiciona o mesmo a aceitar a possibilidade de sua teoria ser aplicada a uma sociedade capitalista, o que parece contraditório.

Parece plausível que indivíduos livres e iguais desenvolveriam, na posição original, princípios eqüitativos e justos. Nesse sentido, jamais aceitariam a possibilidade de que se consagre um modo de produção que pressupõe o lucro de uns privilegiados às custas do trabalho de outros. Há razões suficientemente fortes para estas pessoas rejeitarem, já na posição original, o modo de produção capitalista.

O princípio da diferença, por sua vez, não pode jamais justificar violações a direitos fundamentais (Rawls concordaria com esta afirmação). Porém, ao considerar-se a garantia de não propriedade privada dos meios de produção e dos recursos naturais como um direito fundamental, algumas desigualdades aceitas por Rawls ficam injustificáveis.

Desta forma, o presente trabalho adota os princípios da justiça de Rawls, com a observação de que em uma sociedade justa, a garantia de não existência de qualquer propriedade privada dos meios de produção e recursos naturais deve ser tratada como um direito fundamental, desenvolvido na posição original.

Uma vez estabelecidos os limites de uma razão pública, e reconhecendo-se que a melhor interpretação do direito é aquela que o aproxima dos valores aceitos por uma sociedade concreta, a idéia de auditório universal parece adequar-se plenamente para justificar a fundamentação axiológica de um sistema de justiça. Através de uma lógica jurídica, argumenta-se diante de um auditório ideal, histórico, buscando-se o razoável, imperfeito, mas tido como justo. Nesse sentido, parece plausível um diálogo entre as teorias de Rawls e Perelman.

Algumas críticas às idéias de Perelman também se fazem importantes: o recurso à ficção, utilizado pelo autor para afastar a aplicação de uma lei injusta, parece estar em contradição com a sua teoria, uma vez que o autor sugere o entendimento de que o juiz só aplica uma lei injusta se quiser. Outro ponto a ser criticado é a sua posição em relação à equiparação que faz entre justiça material (eqüidade) e justiça formal (segurança jurídica), a qual parece estar em dissonância com a sua teoria como um todo, na medida em que esta dá preferência à imperfeição do razoável, do argumentativo, em detrimento da aparente perfeição da forma.

Assim, fica bastante clara a idéia de que um Estado democrático de direito é fundamentado em valores e que o juiz de direito deve deixar de aplicar uma lei injusta ou manifestamente contrária à totalidade do sistema. O poder discricionário dos juízes não pode ser ignorado. Deve ser utilizado para concretizar os valores fundamentais do sistema.

Em se tratando do sistema brasileiro especificamente, parece razoável que tal valor fundamental seja resultado de uma interação dialética entre os direitos fundamentais. A idéia de dignidade, concebida aqui como sendo este valor fundamental deste sistema, diferencia-se do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e é formalmente resguardada pelo preâmbulo do texto constitucional.

Muitas das idéias desenvolvidas ao longo desta pesquisa não puderam ser devidamente aprofundadas, mas o resultado do entendimento obtido ao longo de todo o

trabalho permitiu que se indicasse, mesmo contando com elementos intuitivos, alguns dos possíveis caminhos a serem trabalhados em pesquisas futuras.

No primeiro capítulo, encontram-se diversos aspectos interessantes para novas pesquisas. Cada tópico abordado (a crítica à teoria pura do direito, a discussão em torno da função de um sistema de direito, a aproximação entre direito e moral e o pensamento sistemático) poderia motivar uma pesquisa específica. As idéias desenvolvidas neste trabalho podem servir de base para um raciocínio. Um ponto de partida.

Da mesma forma, as críticas dirigidas às teorias de Rawls e Perelman poderiam ser mais aprofundadas em pesquisas futuras, em função da relevância destes dois autores. A discussão em torno da necessária socialização dos meios de produção a partir da teoria de Rawls pode revelar-se extremamente proveitosa.

Por fim, cada uma das idéias trabalhadas no último capítulo poderia ser mais profundamente desenvolvida em um momento futuro. São elas: a evolução histórica dos direitos fundamentais, a concepção de dignidade como resultado da interação dialética entre os direitos fundamentais, o conceito de imperativo argumentativo, a possibilidade de se buscar o fundamento material do sistema no preâmbulo da constituição e a idéia intuitiva de um mínimo vital que assegure a concretização da idéia de dignidade.

O importante é que, utilizando-se as idéias desenvolvidas, pode-se fundamentar uma possível leitura do sistema vigente. Trata-se de uma visão, que não ambiciona a neutralidade, uma vez que assume sua incondicional motivação pela busca de idéias que possam tornar este mundo mais justo.