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PONDERADO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

4.5 MÍNIMO VITAL: DIGNIDADE MATERIAL E DIGNIDADE ESPIRITUAL

Este tópico se propõe a registrar algumas idéias intuitivas acerca das necessidades básicas do ser humano, materiais e espirituais, para seu pleno e livre desenvolvimento pessoal, em harmonia com o valor da dignidade, defendido aqui como fundamental. Tais observações podem ser consideradas como uma espécie de introdução às considerações finais desta pesquisa e poderiam ser de grande utilidade para uma futura pesquisa acerca de uma lista de liberdades básicas fundamentais, dentro da idéia rawlsiana de justiça política, adaptada ao auditório universal do Estado socioambiental e democrático de direito contemporâneo.

Entende-se que, sem as condições materiais mínimas necessárias para uma vida digna, tais como moradia e alimentação adequada, um ser humano não possui a possibilidade de desenvolver sua liberdade plenamente. Em uma sociedade que se tornou extremamente desigual, um contingente cada vez maior de pessoas não possui supridas tais necessidades, que são o ponto de partida da noção de dignidade que ora se apresenta.

Uma moradia digna pode ser compreendida como um espaço físico inviolável, em condições adequadas de saneamento básico, com a garantia de um espaço que possibilite a privacidade e o desenvolvimento da individualidade de cada ser humano. Como alimentação adequada, pode-se compreender o aceso a alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos e de substâncias nocivas, em uma quantidade suficiente para a boa formação e o pleno desenvolvimento do organismo.

Uma vez supridas as mínimas necessidades materiais acima expostas – que não são apenas de sobrevivência, mas de uma vivência digna – necessita o ser humano de condições de desenvolvimento espiritual. Tal desenvolvimento deve ser livre, mas – defende-se aqui – há também um mínimo vital que deve ser resguardado por um Estado democrático de direito efetivamente comprometido em concretizar o valor que o dá fundamento, o que se dá, basicamente, através do acesso igualitário da totalidade da população a uma educação de qualidade, que estimule a transdisciplinaridade (mostrando, desde cedo, que o conhecimento humano é constituído de complexidade e de incertezas157), que não se resuma a uma mera preparação para a selvagem competição darwinista no mercado de trabalho.

Numa sociedade ideal, os meios de produção devem ser de propriedade social. No entanto, parece razoável que, na medida em que as presentes proposições se pretendem possíveis em uma sociedade real, deve-se, através do processo educacional, buscar a superação do conceito capitalista de trabalho e a sua substituição por uma idéia de cooperação mútua e trabalho solidário. Deve ser assegurado também o livre acesso à informação.

É também importante que os indivíduos possuam condições de interação com o meio ambiente e que possam livremente participar das decisões importantes acerca dos rumos a serem tomados pela sociedade em que vivem, através de uma democracia direta ou participativa, que preserve sempre os direitos das minorias e a diversidade cultural e étnica, em condições de igualdade material. A arte deve ser estimulada desde cedo e as diferentes formas de manifestação cultural devem ser preservadas e incentivadas.

157 Ver, entre outros, PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. São Paulo: Unesp, 1996; MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2006.

A liberdade de consciência política, moral, religiosa ou filosófica, deve ser assegurada, desde que o exercício de tal liberdade não acarrete em nenhuma violação à liberdade de outrem nem cause danos desnecessários ao meio ambiente ou banalize o sofrimento dos animais sensitivos não humanos. O exercício de uma liberdade deve estar sempre em consonância com o valor fundamental do sistema e não pode, de maneira alguma, acarretar em uma violação aos direitos assegurados pela idéia de dignidade, tida como uma ponderação dialética argumentativamente ponderada entre as dimensões de direitos fundamentais.

A igualdade de oportunidades deve ser buscada (mesmo em se tratando de uma sociedade capitalista real), fazendo-se, para tanto, necessário que os serviços básicos de educação, saúde e transporte sejam oferecidos pelo Estado exclusivamente e que todos os indivíduos possuam igual acesso aos mesmos. O princípio da função social da propriedade158 deve ser amplamente aplicado e interpretado sempre à luz do valor fundamental da dignidade, no intuito de se distribuir terras e riquezas, diminuindo-se as desigualdades existentes.

A possibilidade de realização destas necessidades básicas, materiais e espirituais (as quais, por seu caráter eminentemente intuitivo, não se apresentam como taxativas), constitui, segundo o entendimento aqui defendido, um mínimo vital, sem o qual não se pode falar em liberdade. A partir deste mínimo vital, a liberdade do ser humano possui condições de realizar-se plenamente, tendo como limites apenas a garantia da manutenção do mínimo vital necessário para o desenvolvimento de todos os demais seres humanos e a garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, visando a manutenção da vida, de um modo geral, e das bases que a sustentam (direitos fundamentais de terceira dimensão). Entende-se que a liberdade de um indivíduo só existirá plenamente se todos os demais indivíduos também forem, da mesma forma, livres

Tais necessidades básicas fundamentais são facilmente justificáveis, uma vez que, sem as mínimas condições de alimentação adequada, o cérebro de uma criança não se

desenvolve adequadamente159. Além disso, a personalidade de um indivíduo forma-se, principalmente, na infância e na adolescência, justificando-se a necessidade de uma educação voltada para a vida em harmonia, que abandone a lógica capitalista voltada para a competição individualista e adote princípios de solidariedade, fraternidade, amor ao próximo e ao meio-ambiente.

A idéia aqui trabalhada de mínimo vital se relaciona intimamente a uma leitura do Estado democrático de direito, orientada axiologicamente pela idéia de dignidade desenvolvida no decorrer deste estudo, que resulta da interação dialética, argumentativamente ponderada, entre as dimensões de direitos fundamentais. Apresenta-se, assim, uma interpretação possível do que se pode fazer a partir do existente poder discricionário dos juízes, no contexto do Estado socioambiental e democrático de direito. Uma simples leitura. Utópica, até certo ponto. Mas axiologicamente fundamentada no sistema já existente. Para aplicá-la, não é necessário que se faça qualquer modificação legal (exceto no que diz respeito à propriedade dos meios de produção, em se tratando de uma sociedade ideal). Necessita-se, mais do que tudo, de pessoas interessadas em colaborar.

159 De acordo com pesquisadores do Laboratório de Fisiologia da Nutrição da Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE), “Para o cérebro funcionar eficientemente na vida adulta, requer-se, como condição fundamental, que ele tenha se desenvolvido de forma adequada no início da vida. Nos mamíferos, o desenvolvimento do cérebro começa já na embriogênese e continua durante uma fase relativamente curta da vida pós-natal. Essa fase, em seres humanos, termina ao final dos primeiros dois a quatro anos de vida. No rato albino, o mamífero mais usado para estudos experimentais sobre o tema, tal fase compreende as três primeiras semanas da vida pós-natal, ou seja, o período do aleitamento. Nesse período, o cérebro é mais vulnerável às agressões do ambiente, inclusive às nutricionais, devido ao fato de que nessa fase os processos implicados no desenvolvimento cerebral ocorrem com muita rapidez. Esses processos compreendem sobretudo a hiperplasia (aumento da quantidade de células nervosas), a hipertrofia (aumento do seu tamanho), a mielinização (formação, nas fibras nervosas, de um envoltório de material lipídico - a mielina, fundamental para a transmissão eficiente dos impulsos elétricos neuronais) e a organização das sinapses (pontos de comunicação entre os neurônios). A deficiência de um ou mais nutrientes na alimentação diária pode, sem dúvida, perturbar a organização estrutural (histológica) e bioquímica de um ou mais dos processos acima descritos, levando, geralmente, a repercussões sobre as suas funções. Dependendo da intensidade e da duração das alterações nutricionais, as conseqüências terão impacto maior ou menor sobre todo o organismo. Funções neurais básicas, como o processamento de informações sensoriais (por meio dos nossos cinco órgãos dos sentidos) e a percepção das sensações correspondentes, bem como a execução de tarefas motoras (produção de movimentos, resultantes da ativação dos músculos pelo sistema nervoso) podem ser afetadas em extensões variadas e de forma diretamente proporcional à intensidade e à duração das deficiências nutricionais. Isto também se aplica no caso de funções neurais mais elaboradas, como aquelas envolvendo cognição, consciência, emoção, aprendizado e memória, processos cuja perturbação na infância pode levar a condições patológicas importantes para a vida adulta, tanto no que se refere à qualidade da vida do indivíduo, como à da sua contribuição para a sociedade em que vive.” GUEDES, Rubem Carlos Araújo, ROCHA-DE-MELO, Ana Paula and TEODOSIO, Naíde Regueira. Nutrição adequada: a base do funcionamento cerebral. Cienc. Cult., Jan./Mar. 2004, vol.56, no.1, p.32-35. ISSN 0009-6725, p. 32-35.