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Os homens livres e sem trabalho significaram um seguimento social importante na sociedade do Brasil Imperial. O século XIX representa, em certa medida, um momento de construção do controle dessa parcela da população, para garantia do sossego público e, através da vigilância destes, reter qualquer ação que comprometesse a soberania do Estado imperial.

A vida insegura do Império clamava por ordem e, nessa perspectiva, o controle da “escória da população” ou dos “ferozes, sem moral, sem religião, sem instrução” classificava e excluía boa parte da população brasileira. Excluídos, os homens livres e pobres encontravam, muitas vezes, na contravenção, uma saída para a sua sobrevivência. A marginalização e a situação de pobreza a que ficaram relegados, acabaram por impor, estratégias de sobrevivência que incluíam o roubo, o furto e as associações na formação de milícias particulares que serviam às autoridades locais.

A interpretação das estruturas punitivas do Império do Brasil e a pobreza dos municípios se refletem na carência de espaços de trabalho. Esses fatores são identificáveis quando se avalia as posturas municipais e os seus artigos sobre comércio, feira, pesos e medidas. No caso de Rio de Contas a análise da sua Postura Municipal nos permitiu delinear hábitos cotidianos da vila e a sua pequena estrutura econômica dedicada policultura, comércio e organização da área urbana.

Os autos sobre os crimes de furto nos possibilitaram não só identificar os percursos de sobrevivência dos livres, mas também, estabelecer um perfil da ação dos legisladores locais na composição de milícias particulares para exercício do seu poder e da manutenção da ordem. Juízes de Paz, Padres e Capitães, utilizavam homens livres e sem recursos na formação de milícias particulares, para imposição de regras pessoais e controle social em benefício próprio. Esse tipo de trabalho temporário representava uma via de acesso à sobrevivência muito comum na referida vila durante quase todo o século XIX. A utilização dos recursos da violência, e uso da valentia eram componentes da dominação que pela coerção estabelecia o “respeito” pelo medo e obrigava à submissão à uma hierarquia que dividia “poderosos” e “pobres”, mas que ao mesmo tempo, e em algumas circunstâncias, os unia em propósitos distintos: um de comandar e o outro de

sobreviver, respectivamente. Nesse flagrante momento, é possível se temer tanto a autoridade de um padre quanto a valentia de seu sequaz, mesmo que este nada tenha além da sua “coragem”.

Os arquivos da justiça, principalmente os processos-crime e posturas representam fontes riquíssimas que possibilitaram identificar características de comércio local, de hábitos cotidianos, dos níveis de salubridade, das políticas do bem-viver, das estruturas de poder regulamentadas pelas autoridades locais, enfim, da identificação das forças que compõem a ordem e que opera a violência em seu favor. Dentro dessas estruturas sociais, circulava de forma representativa esses lavradores.

A vila das Minas do Rio de Contas passou, no século XIX, a enfrentar um processo de desestruturação econômica, frente à impossibilidade de retomada do seu eixo produtivo centrado na extração de ouro, passando, a basear a seu alicerce produtivo na pequena lavoura, na criação de gado, em um comércio local dedicado à venda de víveres.

O comércio de matalotagem, os pequenos ofícios, como alfaiate, sapateiro e a pequena lavoura não garantiam espaços de trabalho para todos os braços livres que circulavam pela vila e seus distritos, e acabaram por deixar à margem uma parte expressiva da população livre que, passou a encontrar no crime contra a propriedade, uma alternativa para garantir a sua sobrevida.

Os limitados espaços de trabalho, no pequeno comércio de gado e gêneros para as Lavras Diamantinas ou na lavoura, acabavam por conduzir esse segmento livre e pobre para a prestação de serviços às autoridades locais, como uma espécie de recurso para garantir respeitabilidade, adquirida pela imposição da ordem e pela violência.

Os processos-crime revelaram também, um número significativo de trabalhadores da pequena lavoura, que representavam quase 80% da população que vivia nos distritos e termos pertencentes à Vila das Minas do Rio das Contas, a grande maioria estava classificada como parda, o que possivelmente, nos revela que esta parcela, excluída dos meios produtivos, encontrava na agricultura um recurso para produzir bens de consumo para si e para sua unidade familiar, sendo por várias vezes classificados como pobres ou como “inúteis para a sociedade”.

Havia uma carência material que cercava a vida dura dos homens pobres e livres que circulavam pela Vila de Rio de Contas sem perspectivas de trabalho. Eram estas possibilidades mínimas, assentadas na pequena lavoura, no comércio de gado e no furto

e roubo como expedientes para lograr a pobreza, e garantir para si alguns réis, escapando momentaneamente de um estado de penúria material.

Os processos de furto de gado nos demonstram uma engrenagem criada para facilitar este tipo de furto: as associações entre livres, que formavam pequenos grupos de ladrões que agiam nas cercanias da vila, em locais ermos, e que praticavam o delito sem sentirem-se ameaçados pela lei e pelos seus representantes. Nos locais mais afastados, os ladrões de gado não só se escondiam como também criavam espaços clandestinos de abate e secagem da carne e do couro, destinados ao comércio nas feiras próximas dos pontos de mineração de diamantes, como por exemplo, Lençóis, Mucugê, Campos de São João, Seabra e Brotas de Macaúbas e na Vila das Minas do Rio das Contas.

Além do furto de gados, a “tirada” de escravos era um recurso comum dos homens pobres e sem trabalho nas teias da sobrevivência. O comércio de escravos mostrou-se como uma forma de enriquecimento fácil. Em tempos de escassez, como o século XIX para a Vila das Minas do Rio das Contas, os escravos representavam mão- de-obra necessária e imprescindível às pequenas propriedades. Nesse momento identificamos o roubo, ou a “tirada” como um crime cuja punição o diferenciava dos demais, na medida em que estabelecia-se penalidades mais duras, visto que o escravo era um bem mais valioso que moedas de ouro, panos, gados e muares. O Código Criminal atento para esse crime traz um destaque a sua legislação dando ênfase às diferenças entre furto e roubo. Levamos em conta também, as dificuldades criadas pela proibição do trafico em 1850 e as novas demandas de mão-de-obra que as Lavras Diamantinas requeriam em meados do século XIX, destinadas à recente exploração de diamantes.

Em períodos de escassez de mão-de-obra, muitas funções eram acumuladas pelo escravo e acabavam por fazê-lo trafegar com muita facilidade pela vila e suas cercanias, facilitando, as fugas e os roubos. A circulação sem muita vigilância do escravo pela vila e arredores, permitia não só a sua fuga, como também a articulação dos livres pobres no processo de construção e execução do “plano de fuga”, nesse momento, o livre pobre garante para si mais uma alternativa de sobrevida.

Ao levarmos em consideração os esses percursos realizados em busca da sobrevivência, identificamos os homens livres e suas trajetórias, seus ofícios, e uma rede de relações que o permitiu transitar, entre vários segmentos sociais e articular a sua

ação de acordo com as necessidades de quem vive uma vida de intensas oscilações materiais.