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Para mim, a descoberta dos princípios fundamentais da encenação só pode ter um ponto de partida; a Rítmica foi decisiva sobre a direção que eu devia tomar. Através dela, eu me libertei dos entraves que mantêm uma obra de arte aprisionada a certos limites.

(APPIA apud BABLET; BABLET, 1982, p. 81)

Penso que não poderia encontrar depoimento mais contundente e profícuo sobre a legitimidade das conexões entre Rítmica e encenação. Sobretudo tendo partido de Appia, que teve uma ascendência marcante sobre uma geração de encenadores atuantes em várias partes do mundo, num momento em que a encenação estava se definindo como linguagem artística.

A participação de fatores musicais nos fundamentos teatrais independe de origem, ocorrendo em todos os contextos culturais. Recursos metodológicos colaboram na articulação de fatores musicais por atores de uma maneira diferenciada. Quando isto acontece da mesma forma que com músicos, isto é, movimentando parâmetros musicais para e na cena de forma independente da presença física da música, é ainda mais enriquecedor. Essa possibilidade encontra farta quantidade de estímulos de trabalho, e apoio teórico no desdobramento da Rítmica com Princípio Formativo, que não entende os parâmetros musicais integrados à voz e aos movimentos corporais ortodoxamente, mas fundamenta suas construções na expressão de movimentações de naturezas diversas. Isto permite redimensionar qualitativamente o enfoque dado ao conteúdo musical sob o conceito de “fenômeno acústico temporal”.

Em ambientes de artes cênicas são bastante freqüentes idéias, noções e afirmações que mencionam de alguma forma aspectos pertinentes às qualidades do som como anteriormente delineado, enfatizando que o acontecimento musical oferece facetas e possibilidades que, na aprendizagem e realização em artes cênicas, viabiliza um enriquecimento mútuo, pois oferece uma diversidade de soluções estéticas e criativas evidenciando o caráter polissêmico da encenação.

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Ao propor que “música é movimento, e movimento é música”, Dalcroze atribui uma dimensão visual para o som e uma sonora para o movimento, o que salienta as potencialidades cênicas de ambos, ou melhor, da resultante de sua integração. De acordo com sua pesquisa, o movimento e o corpo são inseparavelmente integrados ao fazer musical e, por extensão, ao fazer artístico. Reflexões e pesquisas desta ordem contribuíram na construção do corpo, do pensamento e de uma visão modernas, ressaltando a noção de que o que nós registramos na cabeça é sempre uma informação sobre uma experiência; é a experiência corporal que forma a consciência. Buscar uma disponibilidade corporal e espiritual – este foi o legado de Dalcroze, que tomou vulto a partir de Hellerau: “Ritmo é ordem e movimento, a expressão da necessidade mais íntima, da aspiração mais secreta. Espiritualizar o que é corporal e encarnar o que é espiritual”.

Apesar da importância histórica da Rítmica, sua institucionalização como área de conhecimento e disseminação de suas práticas, de forma a perder de vista sua origem, não é raro entre nós constatar atores e atrizes com dificuldades de articulação dos elementos de que tratamos nesta dissertação. Na parte em que discutimos algumas experiências práticas, algumas dessas limitações foram evidenciadas. Do ponto de vista da integração de parâmetros musicais cenicamente, contudo, o saldo dos experimentos me pareceu positivo. Dificuldades iniciais, declaradas pelos próprios participantes, foram relativamente bem solucionadas, sobretudo se levarmos em conta as condições de realização das abordagens, em especial o pouco tempo para o amadurecimento dos processos, muito mais do que o escasso conhecimento musical prévio. Mesmo porque este não é, necessariamente, um pressuposto do trabalho com a Rítmica neste contexto. Não que conhecimento musical seja preterível, mas não é uma condição essencial. Realizar um texto com uma movimentação determinada e com uma gesticulação rítmica precisa não é tarefa simples nem para músicos experientes.

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Aliás, gestual, movimento e texto, que, de qualquer forma, contêm elementos musicais, pertencem, de fato, muito mais ao campo de ação de profissionais da cena. Como vimos, isso faz com que as ofertas de atividades da Rítmica possam enriquecer especialmente o desempenho desses últimos. Porém, num sentido profundo, a Rítmica como Princípio Formativo implica uma contribuição recíproca entre quem propõe e para quem é proposto, bem como em que situação, quando e com que objetivo as propostas são feitas. Por isso, a mistura com diferentes técnicas é bem-vinda, porém, relativizada como solução estética, uma vez que, no contexto da Rítmica, os dados em jogo podem levar a desenlaces por trilhas inexploradas. Portanto, a obediência estrita a determinada técnica pode comprometer o desenrolar intrínseco do jogo, tornando-o estéril.

Do meu ponto de vista, esta última consideração coloca a especificidade e o avanço da perspectiva da Rítmica como Princípio Formativo em relação à sua fonte de origem. Para aquela, desde que seus princípios sejam respeitados, pode-se operar o tipo de modificação ou inclusão que for considerado propício, como aconteceu com a elementarização do método de Dalcroze.

Essa maneira de agir pode ocasionar uma diluição ainda maior do que a que tem acontecido até o presente, alvo de críticas daqueles que sugerem uma maior definição dos campos de atuação e homogeneidade da Rítmica. De fato, a formação neste campo de conhecimento requer especificidades, como conhecimentos da linguagem musical, certo domínio na execução de um instrumento, desenvolvimento vocal, capacidade de articulação corporal, bem como formação específica nesta área, noções de fisiologia, informação pedagógica, conhecimentos da linguagem cênica, entre outros.

Porém, o que considero o foco do exercício profissional nessa área é a habilidade de transitar entre as várias linguagens artísticas sem perder de vista as possibilidades de intersecção e integração: “a Rítmica é um canal que conduz a todas as artes”. E o teatro é o

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lugar onde todas as artes podem ser integradas, cumprindo o projeto de boa parte dos encenadores do começo do século 20 e, talvez da própria arte teatral.

Rítmica e artes cênicas possuem mais do que um vínculo histórico datado e circunscrito. Ambas se pertencem e fazem parte de uma construção cultural que transcende espaço e tempo!

No Brasil esta ligação é ainda confusa, difusa e pouco esclarecida. Ela existe, mas sem uma consciência clara de como, do que, dos motivos, dos objetivos, dos limites e das trocas entre as duas áreas. E já que caminhar é uma constante no cotidiano de ambas, fica a intenção de que este trabalho seja um pequeno trecho do caminho a ser percorrido nesta direção.

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