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Este trabalho apresentou uma explicação entre a ordem e a violência, mediada pelas práticas de regulação no bairro de Moravia, de Medellín. A primeira parte diz respeito à violência derivada do conflito armado nacional, que invoca uma certa forma de ver uma ordem social que coexiste com outras práticas de ordenamento na qual a violência armada urbana, distinta à violência institucional, opera como princípio de organização social num contexto de condição histórica de violência, como é o caso de Moravia e, em geral, da cidade de Medellín. Em Moravia, essa “outra ordem” tomou impulso com o domínio dos diferentes grupos armados, que liberaram estratégias de relacionamento com a população — cooperação, tensão, cooptação —, para inserir no seio da vida social a necessidade do ordenamento como forma de bem-estar social. Em Medellín, a violência armada urbana inseriu-se nos processos de configuração histórica, o que lhe tem planteado desafios na forma de entender suas relações democráticas, que passam por reconhecer as possibilidades de fazer cidade num contexto onde as relações violentas têm sido protagonistas. A crise institucional de justiça e a debilidade dos governos locais, vistos como causas da continuidade da violência armada, consolida a visão de que a única possibilidade de organização social seja a proposta pelo poder do Estado, restringindo outras formas de organização e de participação nas decisões políticas das comunidades localizadas, principalmente, nas zonas periféricas da cidade. No caso de Moravia, cuja luta pela reivindicação de seu território tem estado ligada a práticas consideradas não legais, em várias esferas da vida social, possibilitou-se posicionar de forma favorável no contexto da cidade, reconhecendo sua própria violência e dali gerando formas de regulação que terminam por inserir sentidos de ação coletiva. O desafio que talvez se apresente à cidade é este: ampliar a sua concepção de democracia reconhecendo essas outras formas de relação social.

A presença de atores armados em Moravia ainda persiste e persistirá por um longo período. Por suas características singulares, o que a diferencia de outros bairros, como, por exemplo, a alta dinâmica nas atividades econômicas que envolvem a

necessidade de se manter num lugar estratégico como Moravia, central e de alta potencialidade para o desenvolvimento da cidade. A dinâmica de organização de seu próprio espaço, produto da relação histórica com a cidade, na qual tem predominado a mesma gestão conforme suas próprias capacidades e recursos, foi dada pela mesma contingência de morar num lugar que, por décadas, esteve excluído da cidade, mas que logrou, por meio de suas possibilidades de organização e de ação, gerar uma percepção de comunidade a fim de resolver suas necessidades mais predominantes.

Assim como os atores armados persistirão no espaço social de Moravia, como em outros bairros da cidade, a regulação como prática que produz efeitos de variação da própria violência também persistirá como prática cotidiana de resolução dos conflitos. A participação das organizações sociais em Moravia na gestão de seu espaço tem sido histórica e permanente; essa gestão inclui necessariamente a gestão de seus conflitos, assim como a gestão das relações entre os distintos atores armados e não armados que confluem em Moravia.

Não se trata de desconhecer o caráter generalizado da violência urbana e suas implicações nas formas de relacionar-se na cidade. As interações, estratégias e dinâmicas dos atores em torno das ações do narcotráfico vão configurando certas condições que consolidam a permanência do acionamento armado e o posicionamento de fortes estruturas criminais. Mas, precisamente, reconhecer o caráter autônomo da violência urbana permite não só ir nas causas que a originam, mas também entender as interações sociais que dela se desprendem e que geram regularidades de ação, produzindo e reproduzindo formas de vida que não são compreendidas desde a institucionalidade.

Moravia há tempos que se encontra vivenciando repertórios de confrontação (TARROW, 1994, p. 51), ou seja, a circularidade da violência armada urbana presente por mais de três décadas tem inserido rotinas de ação coletiva que não se podem desconhecer; a expressão da violência dos distintos atores armados que chegaram a Moravia tem acumulado, nas relações com a população, uma reserva de formas familiares de ação em distintos períodos, conhecidas tanto pelos atores armados

se convertem em aspectos habituais de sua interação, seguindo o que Tarrow (1994) assinala:

Si aceptamos el supuesto de que los individuos disponen de información sobre la historia y los resultados obtenidos en el pasado por las diferentes formas de acción colectiva en sus sociedades, veremos que los líderes proponen algo más que la abstracción de la <<acción colectiva>> y que los individuos responden a ello. Son atraídos también hacia un repertorio conocido de formas concretas de acción colectiva (p. 51).

A existência de grupos armados em Moravia e os momentos de confrontação que se repetem pelo controle do território transcendem, em primeiro lugar, as questões ideológicas que os grupos podem professar desde uma intencionalidade política, o qual pode limitar a configuração da violência coletiva como um assunto público, desviando a atenção na forma de ver a violência como mera questão instrumental usada pelos atores armados em função de dominar os territórios. Visto assim, o problema da violência armada urbana resolver-se-ia com o simples fato de criminalizar seus atores, sempre e quando existisse um aparato de justiça efetivo. Não obstante, ao analisar os distintos períodos em que aparecem os atores armados em disputa, supostamente com ideologias diferentes e que representam momentos de alta ou baixa intensidade da violência em Moravia, pode-se ver que, principalmente, a maioria dos participantes eram jovens provenientes do mesmo setor de Moravia onde, embora a ideologia pudesse operar como gancho inicial para a participação nos grupos armados, não era sua principal fonte. Ou seja, a maioria dos participantes estavam ali motivados por um discurso de melhoramento do bem-estar do bairro, por efeito dos discursos insurgentes ou contrainsurgentes que as Milícias ou os Paramilitares expressavam; de todo modo, os participantes eram parte desse entorno, e sua participação obedecia de certa forma à possibilidade de resolver sua situação de trabalho e recompensar, assim, uma precariedade econômica.

Em segundo lugar, a penetração dos distintos grupos armados implicou sempre a aceitação da população em torno do problema da segurança e do ordenamento do bairro. Dessa forma, operou-se o discurso ideológico dos atores armados, o que facilitou em certa medida a relação com a população e outros atores estratégicos, como o caso dos atores econômicos. Mas, além do oferecimento de um serviço de segurança privada, o que é relevante e que aparece de modo frequente nas falas dos

entrevistados é a possibilidade de contar com uma fonte de organização do bairro, isto é, de contar com certa autoridade que permitisse as distintas atividades sociais, especialmente as econômicas, de forma tranquila.

A regulação da violência armada urbana, como sugere o começo deste trabalho, desprende-se do exercício de poder que diferentes atores — armados e não armados — em Moravia têm sobre a variação da violência e sua incidência no processo de ordenação. No caso de Moravia, onde a dinâmica social tem estado vinculada a formas de expressão de violência armada, com a participação de distintos atores armados, a regulação opera não como mecanismos propostos pelo Estado para descongestionar o sistema da justiça, mas, sim, como relação que comporta a solução de problemas concretos entre os grupos e destes com a população. Por isso, é descontínua, espontânea e obedece a processos de mediação — armada e não armada — das tensões produzidas pelas confrontações abertas ou na disputa pelo controle do território.

Os eixos de regulação realizados desde os atores econômicos em Moravia baseiam- se fundamentalmente no apoio a recursos econômicos tanto das práticas armadas de regulação quanto das práticas não armadas promovidas pelas organizações. A forma como surgiram os atores econômicos em Moravia requeria mecanismos de regulação que possibilitassem a consolidação das atividades econômicas. Por isso a importância de compreender que, no caso de Moravia, a violência armada urbana, além de estar ligada ao desenvolvimento de práticas ilegais do narcotráfico, esteve também ligada à realização das atividades econômicas no sentido de encontrar, desde possibilidades de financiamento econômico através do serviço da segurança ao controle de outras práticas delitivas (roubos, por exemplo) que afetaram a tranquilidade do bairro. De todo modo, na narrativa da maioria dos entrevistados, especialmente na dos atores armados e das organizações sociais, destaca-se a importância do papel da economia no desenvolvimento de Moravia, e portanto o poder econômico é fonte principal no processo de regulação da vida social em Moravia.

Este trabalho quis mostrar também a importância das organizações sociais nos processos de regulação da violência armada urbana em Moravia. Talvez as

as mais destacadas. As experiências de regulação realizadas pelo Centro de Conciliação e pela Mesa de Trabalho mostraram, por exemplo, a resposta na redução do uso da violência como forma de resolver os conflitos em Moravia. Em parte, a significação da violência e da ordem social que expressam os participantes das organizações sociais hoje em Moravia faz que se evidenciem essas fronteiras de atuação no marco da organização da vida social. Por um lado, como forma de “mostrar” a violência como uso da força que tem produzido, de um lado, efeitos negativos e dolorosos no âmbito comunitário, mas, por outro lado, o reconhecimento do uso da violência armada como mecanismo que opera no processo de ordenação social.

Um programa de pesquisa sobre a violência urbana em Medellín e outras cidades da Colômbia deve incorporar, com mais ênfase, as formas de representação da violência como espaços de sociabilidade, que geram relações de poder nas formas de organização da vida social. O uso da violência como modo de regular os conflitos em espaços com condições históricas de violência é plural no sentido de que o monopólio da violência nas mãos do Estado é questionado. O contexto do conflito armado na Colômbia, assim como as formas como outros atores armados no âmbito urbano apropriam-se dos espaços sociais, dá conta disso. A pluralidade da violência na regulação social é uma diretriz de pesquisa que se deve seguir adiantando no sentido de que permitirá, como foi dito no início, ampliar a noção de democracia desde os atores que inclusive são considerados transgressores da determinada ordem social. O caso do bairro de Moravia constitui um exemplo para mostrar que é possível caminhar para novas concepções da política no mundo atual.