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A proximidade com o bairro de Moravia por mais de 20 anos possibilitou a vivência dos processos de transformação de um espaço que emergiu como um interstício dentro de uma cidade que, na década de 1960, se propunha como uma das mais modernas do país. Foi presenciado, durante esse trajeto da vida de Moravia, um setor cheio de gente que depositava todas as suas expectativas num lugar que podia significar bem-estar e estabilidade econômica de um conjunto da população colombiana que chegou à cidade fugindo da violência no campo rural e motivado por uma fé fervorosa nas possibilidades que a cidade industrial e comercial poderia oferecer. Tem se observado como a autoconstrução de pequenas casas, em lugares não contínuos e terrenos não legalizados pelo Estado, foi abrindo o caminho para o adensamento de um dos setores hoje considerado um dos mais estratégicos da cidade. Forjado sobre terrenos próximos ao rio Medellín e acima do antigo depósito de lixo da cidade, Moravia dialoga com a diversidade, com o caos, com a complexidade, com aquilo que não é o estabelecido. Cria e recria as suas próprias formas de luta e de resistência ante uma cidade que implacavelmente a recusa, a transfigura e a contém de suas próprias formas de ser. Este trajeto igualmente tem permitido ver os negros, os camponeses, os citadinos, os jovens, os adultos, as crianças, as mulheres se misturarem na vivência da rua, na construção de sua história do bairro, marcada pelas lutas de sobrevivência, pela contenção da violência e por todas as vicissitudes em torno da mitigação da pobreza, da exclusão e da indiferença social.

Igual a muitos bairros da periferia de Medellín e também de outras cidades da Colômbia, Moravia teve que lidar com a violência desde sua formação como bairro. A violência estatal repressiva, principalmente nos anos 1960 e 1970, quando lutaram resistentemente para se formar e se manter como bairro da cidade e não serem despojados de suas vivendas. A violência das violências urbanas, ou seja, as produzidas pela própria cidade no sentido das disputas pelos territórios que os

áreas na cidade. Essa condição de violência trouxe a pergunta do porquê um setor como Moravia, que tem vivido diferentes expressões de violência armada em todo seu recorrido histórico, hoje é um dos setores que consegue se manter com certa harmonia e sem uma intervenção clara do Estado por atender a essa demanda. Um dos setores do bairro foi nomeado, nas décadas de 1980 e 1990, como um dos mais perigosos da cidade; em todo esse trajeto, podia-se dar conta de como os taxistas, por exemplo, nem queriam entrar em Moravia; ninguém que não era daquele lugar queria entrar. Sua imagem de bairro violento aumentava com a forma labiríntica e intransitável de suas ruas, a paisagem conformada pelas casas de madeira e material reciclado, todas apilhadas no morro do lixo, e o espessar de suas fronteiras com a cidade que o convertia num território quase impenetrável.

Na atualidade, é possível observar uma Moravia com uma dinâmica muito diferente da de 20 ou 15 anos atrás; mais carregada em suas atividades econômicas e de vivendas, mas com sua forma física própria, ainda que com modificações significativas pelos processos de transformação urbana aos quais foi submetida nos últimos 10 anos. “Um povoado dentro de um povoado”, como a maioria das pessoas de lá e também de fora a nomeiam. Um lugar que expressa uma certa harmonia nas suas relações de coexistência, mas que, como muitas de suas pessoas dizem, também “uma tranquilidade tensa”, “acalmada”, porque reconhecem que, no marco de suas relações, a violência está presente.

As regularidades da violência armada urbana e a sua variação motivada pelos processos de regulação em Moravia são o eixo central do presente trabalho. Apesar da intensificação da violência armada urbana na cidade de Medellín desde o ano de 2009 e o recrudescimento no ano de 201219, em Moravia o índice de homicídios é

relativamente baixo em comparação com outras comunas e bairros da cidade.

19 O Informe de Direitos Humanos de 2012 da Personería de Medellín diz o seguinte: “De acuerdo con

los datos ofrecidos por la fuente, en la ciudad fueron asesinadas en promedio 104 personas por mes, 24 en la semana y 3 cada día y la tasa de la ciudad fue de 52 homicidios por cada cien mil habitantes (h. p. c. m. h.), cifra que constituye una de las tasas más altas de las ciudades capitales del país, en comparación con Bogotá́ con una tasa de 16 h. p. c. m. h. (El Tiempo, 2013), Cali con una tasa 82,2 h. p. c. m. h. (El País, 2013) y Barranquilla con una tasa de 29,1 h. p. c. m. h. (El Tiempo, 2013), mientras la del país es de 31 h. p. c. m. h. (El Nuevo Siglo, 2013). En general, en el país se presentó una tendencia a la baja de los homicidios, pero Medellín aún ostenta una tasa alta” (PERSONERÍA DE

Diferentemente de outras comunas, a 4 (Aranjuez) — da que faz parte Moravia — no ano de 2012 apresentou uma taxa de homicídios de 57,77. Taxa relativamente baixa em comparação com outras comunas como a 10 (La Candelaria) e a 13 (San Javier), que apresentaram, nesse mesmo ano, uma taxa de 197,4 e 165,3 respectivamente20.

Este índice de homicídios não reflete necessariamente uma redução do acionar dos grupos armados nos bairros da Comuna 4 (Aranjuez), mas, sim, do controle territorial, o que minimiza o nível de confrontações violentas. Tal situação levou à proposição de que a violência armada em Moravia se dá pelo interesse de diversos atores — armados e não armados — de construir uma ordem social coletiva, para a qual criam mecanismos de regulação que variam de intensidade, obtendo, assim, o reconhecimento e a legitimidade de seu acionar social.

Nesse sentido, o trabalho de campo obedece a uma motivação própria da autora de evidenciar as relações que se dão num contexto urbano, construído e mediado por interações violentas. Pretendia-se entender como a violência armada urbana da cidade se assenta num setor periférico e, sobretudo, como se sobrevive nele. Entender, nessa condição histórica de violência, quais são os significados que os próprios atores armados e não armados inserem à violência, o que implica a confluência de múltiplas situações e circunstâncias que afetam o porvir de sua formação como bairro e que determina sua posição dentro de um processo de ordenação que domina e exclui outras formas de relacionamento, que estão por fora do status quo de uma cidade que homogeneíza e reverte sua condição local em resposta às demandas globais do capital.

Uma primeira perspectiva teórica que colaborou neste recorrido por apreender essas práticas e significações da violência armada foi principalmente a sociologia histórica sob a perspectiva de Michael Mann (1986) e Charles Tilly (2007). Este trabalho apoia- se nesses autores para a identificação de regularidades históricas e específicas que se deram na cidade e no bairro de Moravia, como também na relação com os processos e estruturas mais amplas da violência armada, tanto a derivada da cidade quanto o conflito armado de caráter nacional que toma força no cenário urbano de Medellín. Michael Mann (1986) apresenta a ideia da história na que mostra como os

processos sociais do passado são formadores de estruturas sociais; segundo ele “... la estructura social es una herencia de determinados pasados, y una gran proporción de nuestras sociedades complejas sólo existe en la historia” (p. 9). A condição de violência do bairro de Moravia é produto de sua conformação histórica, e, portanto, o enfoque sobre os acontecimentos sociais ajudaram a relacionar, em distintos períodos de tempo (não cronológicos), as relações de poder que predominaram na instituição da violência armada como interação e também suas práticas de regulação.

Outro dos elementos de Michael Mann (1986), sobre o qual se apoia este trabalho para fundamentar o percurso metodológico, é a sua concepção da sociedade e do poder como fontes nas redes de organização social. As unidades básicas de análises sociais em Michael Mann (1986) são as formas de organização social produto de relações de poder. Também porque, ao contemplar as redes de interação social, os indivíduos não necessariamente se organizam com base numa estrutura da sociedade só, mas, sim, numa que obedece a fontes de poder organizadas em distintas redes de organização social. Segundo Mann (1986), as sociedades, e não a sociedade, estão constituídas por redes de estruturação como a cultura, a economia e o Estado, não obstante quase nunca coincidem para formar uma totalidade social determinada de modo absoluto por um ou outro fator. As sociedades não são unitárias, e, em tal caso, os indivíduos não se veem necessariamente constrangidos pela estrutura social como um todo, mas, sim, sua atuação obedece a diferentes formas de relacionamento no marco das relações de poder (MANN, 1986, p. 15).

O enfoque relacional para a análise da realidade social de Charles Tilly (1978) conversa com a leitura anterior das sociedades de Mann (1986), na qual este trabalho se baseia para a aproximação da realidade que envolve os processos de interação violenta em Moravia.

La acción estratégica como fundamento de las relaciones sociales concretas es la base de la realidad social para Charles Tilly. El individuo que contempla en sus estudios es un ser complejo (y completo) que actúa en el marco de una acción colectiva, en el que influyen tanto la realidad del pasado como las estructuras del presente. Es un actor que procede con intención, seleccionando los recursos que le ofrece su medio y aprovechando las oportunidades a su alcance, negociando sus posibilidades y creando lazos en el desarrollo de la actividad. Un ser racional que analiza, calcula y decide, pero, como hemos

apuntado, no se trata del actor racional en su versión más economicista ya que el autor reconoce la influencia del contexto, de la cultura y, un estilo paulatinamente creciente, de la dimensión subjetiva del ser humano. (TILLY, 1978).

Nesse ponto, a análise da ação coletiva implicou, em termos metodológicos, uma tipificação de processos e mecanismos no contexto social de Moravia, dando ênfase às histórias causais que mostram processos contingentes e relações de dependência entre diversos aspectos da vida social de Moravia, como é o caso daquelas entre os atores armados e não armados na produção da ordem social em Moravia. Optou-se por utilizar as fontes do poder social de Mann (1986) em perspectiva relacional para mostrar as regularidades da interação violenta em Moravia, que ajudou na compreensão da relação entre o uso da violência coletiva como princípio organizador da vida social, isto é, em entender as significações e as práticas de regulação da violência urbana.

Para ter acesso às diferentes formas de significar a violência e entender a regulação e as práticas da violência armada urbana no desenvolvimento da história de Moravia, pareceu indispensável a realização do trabalho de campo por meio de entrevistas semiestruturadas de atores armados e não armados envolvidos no processo de interação violenta. Partindo das fontes de poder social (MANN, 1986), optou-se por dividir em três grandes atores, que por sua vez refletem três fontes de poder: o ator armado (poder militar); o ator econômico (poder econômico); e o ator social (poder de organização social). Nesses três atores, sustenta-se a base da regulação da violência armada urbana em Moravia, e, portanto, a busca das significações e das práticas orientaram-se principalmente neles.

Nesse processo de aproximação à realidade a partir da voz dos atores, foram realizadas 22 entrevistas, das quais sete foram de atores que participaram ou participam de grupos armados — especialmente das Milícias Populares do Valle de Aburrá —, de paramilitares e de um integrante do grupo armado que atualmente domina o bairro de Moravia. Uma das dificuldades desse processo consistiu na limitação ao entrevistar os atuais grupos armados. As outras entrevistas distribuíram- se em sete para atores econômicos e oito para atores sociais protagonistas dos

processos de observação da vida social em Moravia, diálogos informais com a população, assim como a leitura de documentos remissivos à história e mais outros estudos da vida social de Moravia, entre os quais estão a história das Milícias, dissertações, documentos de recuperação da memória de Moravia e documentos técnicos e oficiais elaborados por diferentes dependências da prefeitura de Medellín. Outro dos elementos é o escalar. A porta de entrada deste trabalho para analisar a violência, tanto como acumulação social (MISSE, 2008) quanto como autonomia (SILVA, 1999), baseia-se na relação estabelecida entre ordem e violência no contexto do conflito armado em Colômbia, deslizando-o posteriormente ao conflito na cidade de Medellín e ligando-o à violência armada urbana em Moravia. É uma análise escalar, que permite um olhar do macro, em termos da violência, e sua relação com o micro, num contexto local e determinado, como o bairro de Moravia. Para esse processo, foi de fundamental importância a leitura dos diferentes estudos realizados sobre o tema tanto em Medellín quanto na Colômbia.

Em termos temporais, este trabalho abarca o período compreendido entre os anos 1994 e 2014, período em que coincide o maior posicionamento dos atores violentos e os modos de organização social em Moravia. Esse período divide-se, por sua vez, em três subperíodos, que mostram os momentos de maior confrontação e o domínio de um ou outro ator armado em Moravia. Os subperíodos são os seguintes: i) subperíodo que compreende 1994–2000, caracterizado pelo auge, controle e mutação do agir das Milícias Populares do Valle de Aburrá (MPVA), de alta mobilização e organização social, e pela penetração do governo local com projetos de convivência; ii) subperíodo compreendido entre 2001–2006, que mostra a penetração e o domínio dos grupos de paramilitares em Moravia, a quebra nas redes de organização social, a intervenção urbanística do governo local e os processos de pactos e entrega de armas dos paramilitares; e o iii) subperíodo compreendido entre 2007–2014, no qual houve permanência de estruturas criminais ligadas diretamente com o narcotráfico, especulação irregular do solo, consolidação de processos de intervenção urbanística, redes e organizações sociais institucionalizadas. Essa periodização ajudou com a identificação dos atores e suas ações referidas às variações e regularidades da violência, as ações de regulação e as significações dos atores com respeito à mesma

regulação e aos processos de sociabilidade que se desprendem tanto do agir violento quanto dos processos de regulação em Moravia.

1.3.1. Delimitação do campo de estudo

Mapa 1: Localização geográfica: Divisão político-administrativa do departamento de