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Essa tese de doutorado foi guiada pelo seguinte problema de pesquisa: como o estilo de Daniel Filho no cinema nacional se insere dentro de um contexto político- cultural de instauração e afirmação de uma hegemonia no campo cinematográfico comercial brasileiro no século XXI? Quais as marcas estéticas e narrativas observáveis em seus filmes e que constituem o estilo do diretor, nesta articulação entre meios audiovisuais?

A metodologia empregada – que contou com a realização de um estado de arte para compreender o trato acadêmico sobre o tema, levantamento bibliográfico, quatro entrevistas e análises fílmicas -, permitiu que essas perguntas fossem satisfatoriamente respondidas. O estilo cinematográfico de Daniel Filho se impôs no campo do cinema brasileiro dentro de um contexto de convergência midiática, quando as relações entre a indústria do cinema e da televisão não são mais esporádicas, mas articuladas e detentoras de uma hegemonia no que consiste ao alcance do grande público. Isso ocorre após os anos 2000, no período da pós-Retomada, quando empresas como Globo Filmes e Lereby Produções passam a se destacar no setor.

Nesse cenário, Daniel Filho se sobressai não apenas como diretor, mas também como produtor. Em seu modelo de produção, algumas marcas estéticas e narrativas se fundamentam como constituidoras de seu estilo na sétima arte. É o caso de ambientar seus filmes essencialmente no contexto urbano da cidade do Rio de Janeiro; explorar tramas e visualidades correspondentes ao universo da classe média, principalmente através das comédias; destacar o protagonismo feminino, através de filmes que tratam das diferentes fases da vida de uma mulher, bem como dos seus relacionamentos amorosos; usar narrativas já exploradas em outros meios, como na televisão, no teatro, na literatura e no próprio cinema; escalar atores e atrizes de forte apelo popular; utilizar elementos estéticos do modo de representação institucional (VANOYE E GOLIOT-LÉTÉ, 1994) como a linearidade narrativa, a pouca dubiedade na construção dos personagens, as histórias acessíveis a toda família; escolher equipe técnica com experiência também na televisão; estabelecer parcerias com empresas majors; e centralizar em si mesmo as tomadas de decisão de todo processo criativo, uma vez que o próprio Daniel Filho ocupa as principais funções de responsabilidade econômica e artística em seus filmes.

A materialização dessa discussão foi norteada através do objetivo geral da pesquisa: compreender os elementos constituintes do modelo de produção de Daniel Filho

que contribuem para compor o seu estilo como diretor cinematográfico, favorecendo a constituição de um cinema para grandes plateias no Brasil. Em um primeiro momento, articulou-se um panorama contextualizado sobre os filmes dirigidos por ele desde a década de 1960 até o ano de 2015, fazendo dialogar seu fazer artístico com as transformações no campo do cinema contemporâneo e a sua formação profissional. Como não há muito material acadêmico sobre Daniel Filho, seus livros autobiográficos foram fundamentais para embasar essa trajetória, bem como o material resgatado na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e na Lereby Produções, além das próprias entrevistas realizadas pela pesquisadora.

Pôde-se, com isso, detalhar seu modelo de produção no recente cinema brasileiro, ainda que, em função de sua longevidade profissional e dos diversos elementos que compõem seu modo de fazer cinema, um recorte tenha sido realizado para dar conta dessa discussão. Destacou-se, então, o perfil dos profissionais presentes na equipe técnica de seus filmes; as principais parcerias no que concerne a patrocínios, apoios e distribuição; a relevância de sua posição como produtor para o desenvolvimento centralizado de sua realização; além de determinar o quanto a visualidade de seus filmes acompanha uma transição espacial e de público no audiovisual nacional.

Por último, definiu-se o estilo de Daniel Filho a partir de três elementos: a concepção de gênero cinematográfico que perpassa sua logística como diretor e que o posiciona como alguém da comédia, embora transite por diferentes gêneros; o universo feminino em suas obras; e as suas estratégias de convergência com a televisão, bem como sua aproximação com a web, que denota uma tentativa de repensar um modelo de produção mais viável na contemporaneidade.

Sua relevância como diretor e como produtor enaltece o fato de que ele conseguiu promover um diferencial no campo do audiovisual nacional, tornando as características de seu modelo de produção fatores de moldagem para o mercado. Entende-se por fatores de moldagem as estratégias utilizadas por um determinado agente ou instituição que se tornam não apenas referências para os demais, isto é, um sistema de parâmetros, modelos, que define um entendimento coletivo sobre algo, mas definidoras de um dado modelo de produção hegemônico, induzindo aos que querem competir no mercado que se ajustem aos seus comportamentos e regras, moldando o campo segundo premissas particulares (BOURDIEU, 2009; BARBERO, 2006).

A noção de moldagem abordada por Bourdieu (2009) se aproxima do seu conceito de habitus, onde certas estratégias sociais passam a ser asseguradas e reproduzidas

institucionalmente por um determinado grupo, agindo na constituição de uma hegemonia sociocultural. Nesse sentido, pode-se entender fatores de moldagem como os processos de transformação de estratégias de produção e de representação em habitus capazes de prescrever o pensamento hegemônico, suas regras de reprodução e o movimento dos agentes dentro do campo – o que também acarreta, certamente, implicações de ordem socioculturais.

No entanto, pensar o modelo de produção de Daniel Filho como fator de moldagem para todo o campo do cinema nacional contemporâneo exigiria uma pesquisa à parte, dada sua abrangência. Não basta perceber que o capital simbólico do diretor fez com que as caraterísticas de seus filmes passassem a ser notadas em produções de outros diretores, como Jayme Monjardim, José Alvarenga Jr., Alexandre Avancini, Cris D’Amato. Seria preciso uma investigação específica e aprofundada para determinar efetivamente o quanto essas marcas foram absorvidas pelo mercado, influenciando outras produtoras de conteúdo audiovisual e diretores a fazerem uso de elementos semelhantes para conseguirem espaço de exibição e público, moldando o campo no que consiste a uma hegemonia estético-produtiva123.

Isso exigiria uma complexa articulação de inúmeros estudos que fugiria o escopo dessa tese. Por isso, a noção de moldagem é resgatada nessas considerações finais como potencialidade para trabalhos futuros, o que denota que a pesquisa não encerra a complexidade de seu objeto, pelo contrário, começa a dar visibilidade a um sujeito artístico até então marginalizado pela academia.

De qualquer forma, os dados levantados na tese demonstraram a relevância de Daniel Filho no audiovisual brasileiro como um todo. Sua posição e influência contribuíram para a constituição do que se nomeou aqui como Cinema de Padrão Televisivo, isto é, filmes que possuem códigos e convenções, modelos de produção e visão de mercado semelhantes à rotina de realização da TV., alcançando marcos de bilheteria.

Estando o estilo vinculado ao processo de enunciação fílmica, isto é, às decisões técnicas do diretor quanto ao modo de se contar determinada história, Daniel Filho é

123 Pontua-se, todavia, que o fator de moldagem precisa ser pensado para além da bilheteria conquistada,

pois quando afirmamos que outros diretores ou instituições fazem uso de estratégias produtivas e narrativas semelhantes, não é correto dizer que o fazem apenas para alcançar público, pois há diferentes capitais culturais e relações de poder em jogo. Instaura-se, com isso, um sistema complexo de lutas simbólicas que contribuem para a consolidação de uma hegemonia cultural brasileira – onde Daniel Filho ocupa um espaço de protagonismo desde a década de 1970.

conhecido pela agilidade na produção – com muitas gravações realizadas no primeiro take. Ele estrutura sua dinâmica no set através de uma decupagem que lhe dá uma dimensão do todo, articulando atores, câmera, espaço, som e todos os demais elementos de um produto audiovisual como sistemas integrados. Além disso, opta por contextos que conhece e domina, padronizando um certo olhar sobre a cidade e as vivências dos personagens.

Através de premissas simples, objetivas e uma economia narrativa, seus filmes apresentam um modelo tradicional de família que está muito mais próximo ao lúdico do que às questões sociais em torno da realidade brasileira ou mesmo da representatividade feminina. Ainda assim, tem papel relevante no campo, pois é responsável por alimentar o mercado com obras de competitividade dentro de um contexto onde o cinema nacional possui ainda uma fatia muito pequena de espectadores. Contribui, também, com a formação de público, e a valoração do tempo de lazer, principalmente nas grandes cidades.

Através das comédias, seus principais sucessos, Daniel Filho ajuda a manter uma tradição brasileira voltada ao humor, único gênero com longa tradição e teor industrial no cinema nacional, diretamente vinculado à constituição da identidade nacional – ainda que filmes de dramas e policiais, próximos ao que se conhece como ‘filmes de favela’ também venham sendo historicamente desenvolvidos e bem recebidos. O humor bebe na fonte do teatro de revista, do rádio e do circo, linguagens consideradas à margem pela intelectualidade brasileira. Modernizado por uma visualidade que atende ao público médio afeito à TV e ao consumo dos shopping centers do País, Daniel Filho desenvolve tramas de costumes fundamentadas no cotidiano de personagens burgueses, fazendo uso de ambiências muitas vezes comuns às produções televisivas, às quais os espectadores já estão acostumados.

Além disso, recorre a estratégias comuns aos blockbusters internacionais, como a ausência de tempos mortos nos filmes, redundância de informações e ação constante, o que implica pensar que, atento ao mercado mundial, Daniel Filho atualiza e nacionaliza os códigos e convenções estrangeiros. E para alcançar sucesso, superando problemas históricos do campo, ele distribui grande parte de seus filmes via empresas majors, com mais capital de investimento e poder diante do setor de exibição nacional. Isso tende a lhe conferir mais acesso a salas e forte campanha de marketing, elementos fundamentais para o alcance da bilheteria almejada. O que contribui, também, nesse sentido, é a escolha dos

atores. Responsável por um rico network, Daniel Filho só realiza produções com artistas nacionalmente conhecidos, agregando apelo popular aos filmes.

Seu lugar de fala, portanto, é de alguém que construiu seu poder de articulação e influência vinculado à mídia de maior acesso aos brasileiros: a televisão. Os saberes, sujeitos, técnicas, tudo está atrelado a essa tradição, que passou a configurar como um elemento de distinção na medida em que foi sendo valorizada pelo mercado por atrair público às salas de exibição.

Daniel Filho é dono de uma trajetória peculiar no audiovisual, e continua produzindo até hoje. Seu último trabalho, Boca de Ouro, em processo de pós-produção, ratifica os constantes retornos que realiza. Depois de participar como ator de obra homônima filmada por Nelson Pereira dos Santos em 1963, ele pretende reatualizá-la, agora como diretor – provavelmente inserindo nela suas marcas estilísticas. Isso prova a fama de homem inquieto, artisticamente falando, envolvido com a sétima arte do País e atento ao gosto construído pelo público e às demandas do mercado.

Ainda que suas produções sejam importantes para a história da televisão e do cinema brasileiro, sua figura ainda enfrenta resistência no universo acadêmico, como apontou o estado da arte (Apêndice A), o que demonstra uma discrepância entre a intelectualidade e a produção popular de cinema no Brasil.

Ademais do valor comercial de suas obras, sua relevância não se concentra apenas no alcance de bilheteria de seus produtos, mas no papel que ele exerce como artista frente a um público médio, que tem representatividade na estrutura social e cumpre um papel simbólico definidor na cultura brasileira. Assim como ocorre nos outros segmentos artísticos, como no teatro, nas artes plásticas e na música, seu cinema retrata essa parcela de público e de consumidor que constitui nossa sociedade, construindo modelos de produção e de representação que atendem aos seus anseios, fatores fundamentais para definir um estilo particular que precisa ser considerado no atual campo do cinema nacional.

A maior dificuldade encontrada na produção dessa tese foi a de levantar materiais bibliográficos sobre Daniel Filho que não tivessem sido produzidos por ele mesmo. São escassas as fontes, o que dificultou o processo de checagem das informações, e exigiu que a pesquisa comportasse questões elementares sobre sua vida, antes de problematizar seu modelo de produção e estilo. Parece sintomático que parte significativa do conteúdo sobre sua extensa trajetória artística tenha sido escrita por ele mesmo, uma vez que sua

atuação no campo do entretenimento configure parte significativa da memória audiovisual do País. O que demonstra, nesse sentido, a relevância desta tese.

As entrevistas realizadas foram importantes para compor as análises aqui empreendidas, mas alguns complicadores devem ser pontuados. Além do longo processo de aproximação e negociação com os entrevistados – Daniel Filho, por exemplo, demorou três anos para aceitar a contribuir com a pesquisa -, e o pouco tempo junto a eles, cerca de uma hora e meia, impossibilitou que outras questões surgissem. Um trabalho como esse, no nosso entender, exigiria um acompanhamento de sua rotina no set, por exemplo, o que não foi possível.

Assim, Daniel Filho ainda é um objeto digno de atenção acadêmica. A presente pesquisa explorou alguns dos elementos estilísticos que firmaram sua identidade e seu lugar de fala no cinema, mas ainda é um passo inicial diante da complexidade que suas obras emanam em termos de alcance e significado frente à cultura brasileira.

A teoria utilizada na pesquisa deu o suporte necessário para o desenvolvimento das análises realizadas. Os eixos propostos por Silva (2009) foram considerados quase em sua completude, mesmo que não de maneira pontual. Refletiu-se sobre a instituição a partir da inserção da Ancine, e de suas novas políticas no campo, bem como por meio da atuação da Globo Filmes e da Lereby produções no mercado; a tecnologia através das lógicas de Daniel Filho quanto ao uso de duas câmeras, dos estúdios e de sua investida para com o universo da web; o mercado foi pensado como um todo através das principais mudanças ocorridas nas últimas décadas, que desencadearam uma nova relação do público com o cinema nacional; a esfera do patrimônio, essa sim pelo viés negativo, em função do pequeno acervo existente sobre Daniel Filho; a formação profissional, dele e de muitos de seus parceiros; bem como os eixos da produção, por meio de seu modelo; da distribuição, através do diferencial de suas parcerias; e exibição, pautando número de salas e demanda de público124. Conceitualmente, os principais articuladores desses eixos foram as noções de campo, modelo de produção e estilo.

Sendo assim, a pesquisa articula a análise dos filmes ao modelo de produção de Daniel Filho, entendendo que questões técnicas e estilísticas são fundamentais na constituição do lugar e da importância do diretor no campo do audiovisual brasileiro. Pessoalmente, acredito que ela tenha satisfatoriamente respondido às questões propostas, mas para trabalhos futuros, realizados por mim ou por outros interessados, convém

124 O eixo dos Direitos Autorais não versava sobre a discussão aqui realizada, podendo ser posteriormente

articular melhor questões sobre hegemonia e fatores de moldagem, pois não basta pontuar, de maneira científica, Daniel Filho no campo, traçando os caminhos e as escolhas que resultaram no profissional que é (seu estilo, portanto), mas compreender como ele agencia o capital cultural frente aos demais.

Por fim, ressalta-se que a realização da presente tese contribuiu significativamente para a minha formação enquanto profissional e docente da área. Não apenas isso, me fez enxergar que a academia deve ser o espaço para refletir, de maneira indiscriminada, sobre os produtos que atingem as pessoas e contribuem para a constituição cultural do País. Nós, os pesquisadores, somos responsáveis por conferir o devido espaço e representatividade desses objetos, destacando, dentre outras questões, os benefícios e prejuízos em termos de representação e representatividade – capazes de promover debates e, com sorte, chamar a atenção para possíveis políticas públicas que fomentem a diversidade do cinema nacional.

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