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A escrita desse trabalho iniciou-se e nos trouxe até aqui, impulsionada por um desejo de conhecimento a respeito de aspectos sócio-econômico- político-culturais da freguesia de Limoeiro, no primeiro decênio de sua formação enquanto vila, 1870 a 1880. No ato das transcrições, os registros paroquiais de batismos, casamentos e óbitos já nos remetiam a muitos aspectos da composição sócio-familiar de Limoeiro, apontando, desse modo, o caminho a ser perseguido: compreender os perfis sociais e as formas de organização familiar dessa população, nesse período. Partindo dessas fontes e ancorados na metodologia da História Demográfica, para análises das mesmas, enveredamos pelos muitos caminhos dos sertões cearenses, encontrando esse espaço multifacetado onde as relações sociais e a configuração sócio-familiar se fizeram, se não de maneira peculiar, mas dinâmica e plural.

À semelhança de outras vilas da ribeira do Jaguaribe, Limoeiro se compôs das mesmas características políticas, econômicas e sociais e na década de 1870, vivia basicamente de uma economia agropecuária e, não obstante uma maior intensificação urbana, nesse período, a população rural era predominantemente superior, onde as relações sociais, de uma maneira geral, eram enlaçadas pelo patriarcalismo, com predominância, portanto, dos núcleos de convivência ampliados, formados por um contingente de pobres livres, agregados e escravos que se mantinham em meio a uma minoria de proprietários abastados. Apesar dos traços patriarcais na sua formação, as relações sociais entre brancos, pardos, negros, livres, escravos, homens e mulheres eram muito complexas, marcadas por imposições, conflitos e aceitações que implicavam, inclusive nas escolhas dos cônjuges e nos laços de compadrio.

Assim também como as demais vilas do sertão cearense - além de constituir-se por uma população de livres e escravos, muito embora o número de libertos se sobrepusessem em muito ao de cativos - da fusão de etnias indígena, branca e negra, Limoeiro apresentava maioria de mestiços, onde o número de pardos se sobrepunha ao de brancos e, sobretudo, ao de negros.

Mesmo que o número de homens se sobrepusesse ao de mulheres, a disparidade entre os sexos era amena.

A morte com causas múltiplas era presença constante e a alta mortalidade afetava principalmente crianças com até sete anos de idade. No final do decênio, em decorrência da seca de 1877-1879, houve uma quebra na dinâmica populacional, com aumento nas taxas de mortalidade e diminuição nos índices de nupcialidade, fecundidade e natalidade. A seca foi inclemente, provocou abalos socioeconômicos profundos, acentuando extraordinariamente a perca dos rebanhos e das lavouras, a migração, a fome, as causas-mortes da população, mas não conseguiu por um fim ao andamento da sociedade, que mesmo nesse período os índices de natalidade se sobrepunham aos de mortalidade.

O dinamismo se fez presente na formação familiar durante toda a década de 1870. Os preceitos de ordem religiosa, períodos de penitência como a quaresma e o advento, e de ordem econômica, recesso agrícola, anos de invernos regulares ou de seca, influenciaram de forma significativa nos índices, nas escolhas ou recusas por determinados meses para a realização das nupcialidades, concepções, natalidades e batismos, mas não o suficiente para estancar o fluxo familiar em nenhum momento, haja vista o caráter heterogêneo da sociedade de Limoeiro, que também, pensava e agia segundo não só o que lhe era imposto, mas também por seus desejos próprios e livres escolhas.

A pluralidade na composição populacional da vila de Limoeiro se fez sentir nas formas de organização familiar. Os 811 casamentos, os 2.715 batismos e as 266 extrema-unções evidenciam que essa população acreditava nos valores dos sacramentos cristãos em torno da vida e da morte, buscando- os e recebendo-os em conformidade com suas crenças, vontades e disponibilidade dos padres. Mas isso, contudo, não era a regra.

Livres e escravos ao unirem-se em matrimônio seguiam os princípios morais e religiosos da sociedade e do catolicismo oficial. Assim como, livres e escravos, por motivos vários, muitas vezes alheios ao nosso entendimento, uniram-se de forma consensual, formando a prole, também constituindo famílias. Na realidade, as famílias consensuais compunham a maioria dos casos analisados. Desse modo, nem todos casavam, muitos não casavam,

mas batizavam seus filhos, bem como muitas pessoas que viviam de forma consensual recorriam ao último sacramento da extrema-unção na hora da morte. Assim sendo, muitas vezes privilegiou-se algum desses três sacramentos em detrimento dos outros. Certamente houve casos até de pessoas que não receberam nenhum deles durante o ciclo vital.

Portanto, compreender constituição familiar a partir das atas eclesiásticas implicou analisar também os sacramentos de batismo, casamento e extrema-unção, seus objetivos, imposições e valores que levaram pessoas, famílias de Limoeiro a agir de determinada forma frente às leis canônicas: aceitando-as, negando-as, transgredindo-as, reinventando-as. Tendo nessa problemática uma de suas preocupações, esse estudo voltou-se também para as sensibilidades.

Sensibilidades se expressam em atos, em ritos, em palavras e imagens, em objetos da vida material, em materialidades do espaço construído. Falam, por sua vez, do real e do não real, do sabido e do desconhecido, do intuído, do pressentido ou do inventado. Sensibilidades remetem ao mundo do imaginário, da cultura e de seu conjunto de significações construído sobre o mundo. (...) sensibilidade é uma presença enquanto valor, dificilmente será número.292

Não temos dúvida que seria impossível recuperar sensibilidades, sentir da mesma forma, através da quantificação dessas fontes, ou através de qualquer outra metodologia, bem como de outros documentos históricos. No entanto, o trabalho com os registros paroquiais possibilitou-nos investigar, analisar, mensurar esses significados, esses valores e experiências, os motivos das escolhas ou recusas pelos sacramentos cristãos feitos pela sociedade em estudo. Dito em outras palavras: “quantificar é um problema que se opõe a um campo que pretende orientar-se pelo qualitativo.” Assim, se os registros paroquiais mencionados tivessem sido utilizados “com finalidades meramente estatísticas não trariam para os leitores de história mais do que um número,

292 PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Sensibilidades: escrita e da alma”. In: PESAVENTO, Sandra

Jatahy e LANGUE, Frederique. (orgs) Sensibilidades na História: memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2007, p. 20.

verdadeiro mais abstrato, preciso mais prático, metodicamente desencarnado.”293

Desse modo, as interferências sociais e culturais, as vidas dessas famílias com seus fazeres foram analisadas, em concomitância ao contexto social, econômico, religioso, político, cultural, enfim, que compunha o espaço freguesia de Limoeiro, por entendermos que “a História se define inteiramente por uma relação da linguagem com o corpo social e pelos limites colocados pelo corpo, seja sob forma do lugar de onde se fala, seja sob forma do objeto distinto.”294

Assim sendo, para além da importância do aparato empírico-teorico- metológico-historiográfico foi preciso estarmos atentos à estrutura sócio-cultural fornecida por aquele espaço para entender as sensibilidades que envolveram os comportamentos na escolha da celebração de casamentos, as concepções e nascimentos de crianças, a realização dos ritos cristãos, enfim, em torno da vida e da morte, e assim compreender as intrincadas redes de relações sócio- culturais-econômicas-religiosas que envolveram as organizações familiares da freguesia de Limoeiro, durante a década de 1870.

293 BARROS, José D´Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2004, pp. 21 e 25.

Fontes de Pesquisa