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O projecto urbanístico do bairro de Campo de Ourique surge, em finais da década de 70 do século XIX, como uma das primeiras iniciativas após quase duas décadas de projectos gorados no âmbito de uma política de expansão e melhoramentos para a capital.

A génese da ideia para uma intervenção urbanística em Campo de Ourique não pode ser atribuída à Câmara Municipal, tendo sido impulsionada pelos objectivos da firma Silva, Esteves, Lopes e Comp.ª. No entanto, o aproveitamento da intenção da firma pela Câmara Municipal à escala de um bairro constitui, nesta conjuntura, como uma iniciativa inédita e um ponto de viragem no modo de actuação do Município.

Procurava-se, por um lado, eleger a Câmara Municipal de Lisboa como o grande agente impulsionador de espaços urbanos na cidade. Neste âmbito, e perante um histórico de intervenções dominadas por interesses específicos de agentes privados, e a inexistência de um plano geral de melhoramentos, a Câmara compreendeu a importância do controlo de todas as iniciativas privadas no tecido urbano. Por outro lado, a edilidade reconhecera as potencialidades do campo de Ourique, em prol das necessidades da cidade, e dos objectivos do seu programa urbanístico. O planeamento de um novo bairro na cidade ia ao encontro do desejo de extensão conceito de cidade racional, e da sua modernização, quer no âmbito das infra-estruturas, quer da circulação. Simultaneamente, e uma vez desligada da programação da habitação, Campo de Ourique surgia como uma oportunidade para a promoção, organizada, de terrenos para edificação, desenvolvendo-se assim uma nova área de vocação habitacional.

O autor do projecto, Augusto César dos Santos, Condutor de Obras Públicas, aposta no planeamento de uma estrutura racional e funcional baseada numa malha reticulada de ruas e quarteirões, facilmente plasmada às pré-existências de Campo de Ourique, garantindo a materialização das modernas directrizes instauradas pelo Fontismo. O traçado era herdeiro da escola portuguesa de urbanismo da época moderna, mas é explorado em Campo de Ourique de forma inédita e inovadora, através da

122 adaptação dos elementos urbanísiticos às singularidades da área a urbanizar. César dos Santos apercebera-se da importância deste esquema no âmbito do aproveitamento racional da área a urbanizar, e da abertura rápida de novas ruas, exigida sobretudo por promotores privados. Esta conceptualização garantia ainda a instalação das mais modernas infra-estruturas urbanas, e a disponibilização racional de parcelas edificáveis, através da aplicação da mesma lógica geométrica à redivisão fundiária.

César dos Santos desenvolveu um dos bairros mais bem estruturados da capital, no entanto a sua localização, no extremo ocidental do perímetro da cidade,transformou- o num projecto secundário relativamente às prioridades da política urbanística municipal. Orientando todos os seus recursos, técnicos e financeiros, para as grandes avenidas a Norte da Baixa, a Câmara Municipal, inviabilizou a transposição das pré- existências do bairro, e por isso a interligação do bairro a outras zonas da capital, e a sua valorização no conjunto da mesma. Isolado do resto da cidade, e fechado sobre si mesmo, Campo de Ourique transformou-se num bairro sectorial. A dispersão das iniciativas no tecido urbano é aliás uma das características do processo de expansão da capital na viragem para o século XX. As pré-existências do planalto não condicionaram porém a programação de um empreendimento bem estruturado e moderno, nem o aproveitamento racional do terreno disponível, uma vez que foram bem enquadradas na nova função do espaço.

O afastamento do centro da cidade não afectou apenas na forma como o bairro se integra e relaciona com a cidade, mas também na sua identidade social. A sua localização determinou uma desvalorização do preço-base dos terrenos, relativamente aos novos bairros erguidos no eixo Norte/Noroeste da Baixa Pombalina. No novo bairro encontraram oportunidade de investimento a pequena e média burguesia, vedada que estava a hipótese de investir em áreas financeiramente mais valorizadas, tais como a Avenida da Liberdade, ou nas Avenidas Novas.

O valor dos terrenos em Campo de Ourique influiu, por sua vez, na forma como foi planeado o loteamento de parcelas para construção, baseado numa divisão muito marcada das quadrículas, imposta pela necessidade dos seus proprietários rentabilizarem ao máximo a sua propriedade. A opção pela edificação, quase maioritária, de modestos prédios de rendimento será também um reflexo da influência da localização geográfica do bairro, e do tipo de proprietários que investem em Campo de Ourique. O isolamento a que ficou votado influenciou ainda os seus hábitos vivenciais e sociais, desenvolvidos, sobretudo, sob uma necessidade de auto-suficiência.

123 Sendo um dos primeiros projectos no âmbito da recente política de expansão e melhoramentos, a Câmara Municipal e a sua Repartição Técnica aplicavam pela primeira vez uma nova metodologia operativa. Este modus operadi permitia um controlo de todo o processo de intervenção urbanística através do planeamento de cada uma das suas fases. Sendo muito recente, desenvolvida apenas a partir de 1874, esta revelava porém várias deficiências. As equipas de trabalho apresentavam-se também algo inexperientes na sua aplicação e gestão, surgindo dificuldades no planeamento e coordenação dos trabalhos a efectuar nas vias. Simultaneamente, os corpos legislativos de apoio à intervenção urbanística revelavam-se, há muito, ambíguos, dificultando a actuação do Município em solo urbano.

Associada a estas questões, a debilidade financeira do Município, que determinou a concretização muito demorada dos trabalhos a executar nas vias, mas sobretudo num planeamento muito faseado do bairro. Esta é aliás uma das características mais marcantes do programa do bairro de Campo de Ourique, distinguindo-o dos restantes planos sectoriais – a ampliação do bairro até aos limites possíveis, contrariamente a um planeamento global e único. Os próprios trabalhos na via, são faseados à medida que o processo de expropriações, as verbas municipais, e os recursos técnicos da Câmara o permitem.

A Câmara Municipal soube porém lidar, no âmbito deste projecto, de uma forma excepcional com um quadro legal que não salvaguardava o problema da propriedade do solo, nem a sua actuação no tecido urbano, e ainda com sua realidade financeira. Através de parcerias continuadas com os proprietários interessados em investir em Campo de Ourique, como a firma Silva, Esteves, Lopes e Compª., a família Sabido, ou a Empresa de Terrenos de Campo de Ourique, Lda., o Município coordena de forma mais ou menos equilibrada e articulada os seus interesses e a coerência do projecto em si, com a pressão e objectivos de particulares.

As dificuldades encontradas durante o planeamento e abertura do bairro de Campo de Ourique transformaram-no um laboratório de ensaio, um campo de experiências para os projectos e actuações seguintes. Com efeito, a sua influência não se baseou tanto na continuidade dos princípios urbanísticos do bairro, que aliás não voltaram a ser utilizados nos mesmos moldes em nenhum outro projecto da capital da mesma conjuntura. Efectivou-se sobretudo pelo alerta que concedeu à Repartição Técnica e ao Município no sentido do aperfeiçoamento da prática urbanística através da resolução de problemáticas constantes na metodologia de trabalho respeitante ao

124 planeamento urbanístico. Será esta uma das lições mais importantes que a Câmara Municipal de Lisboa retira da experiência resultante do planeamento do bairro de Campo de Ourique.

As contrariedades vividas durante a execução do projecto serviram também de mote para o progresso dos quadros legais de apoio à coordenação da intervenção urbanística e construção. A influência que o processo de expropriações em Campo de Ourique foi importante para o aperfeiçoamento desta questão, nomeadamente para a aprovação da Lei de Expropriações de 1888, ou para a revisão da lei da segurança dos operários da construção civil, esta já em plena década de 20 do século XX. O projecto de Campo de Ourique contribuiu ainda para consolidação da prática dos técnicos camarários no terreno.

O bairro de Campo de Ourique é um projecto ímpar, sendo o resultado da conjugação de diversos factores: a sua localização, a formação e capacidades do seu autor, a conceptualização-base, as circunstâncias de ordem técnica e legislativa, e as formas de associação entre a Câmara Municipal e empresas particulares no seu planeamento.

As dificuldades encontradas durante a sua abertura, e a sua secundarização, não impediram porém que Campo de Ourique se tivesse transformado num bairro moderno, em termos urbanísticos e infra-estruturais, através do qual se concretizaram alguns dos principais objectivos da política urbanística municipal: o planeamento organizado de novas áreas habitacionais, e a disponibilização racional dos terrenos para edificação. Neste âmbito destaque-se a coerência interna do projecto. Ao longo dos 80 anos que durou a concretização deste projecto, a Repartição Técnica garantiu a aplicação dos conceitos e ideologia constantes no plano inicial, inclusivamente nos projectos de ampliação planeados por entidades particulares.

Estudar o bairro de Campo de Ourique, seus projectos e actuações, é contribuir para o entendimento da forma foi pensada e traçada a capital, entre finais do século XIX e inícios do século XX, mas também quais as dificuldades com que os agentes responsáveis pelo planeamento urbano lidaram durante o mesmo período. A diversidade de temas analisados ao longo da preparação desta dissertação abre caminho a outras abordagens, tais como a análise das tipologias arquitectónicas do bairro, ou das suas prácticas e vivências culturais e sociais.

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