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A alegria está na luta, na tentativa, no sofrimento envolvido e não na vitória dita.

(Mahatma Gandi)

O desenvolvimento cultural, desde as sociedades primitivas até às modernas, se deu por meio de processos históricos, sociais, costumes e ideias que se cristalizaram em estruturas de significação e mediante mudanças operadas na vida do ser humano. As verdades criadas e estabelecidas pelo homem exercem um papel relevante nos processos de desenvolvimento da cultura, levando-o a refletir neles e exercer diversas funções como sujeito social. Para isso, ele usa os mais diferenciados discursos, uma vez que são mediações entre ele e os outros na sociedade. Este é o papel fundamental do discurso: fazer com que o homem o produza para extrair dele a essência do que deseja representar.

Ao examinarmos as duas ficções romanescas, vimos que, pelo papel que estas representam no cenário das respectivas literaturas brasileira e portuguesa, José Américo de Almeida (representante do movimento modernista regionalista) e Alves Redol (neorrealista) procuram relatar, por meio de uma linguagem literária, as verdades da sociedade do seu tempo; entre elas, a verdade sobre a sexualidade.

Em A bagaceira, a cultura primitiva está ligada à Natureza e esta ao homem, de tal forma que, no romance, assume um papel de personagem. Nesta obra, vemos que o tema reflete principalmente a vida dos retirantes, que vão à procura da libertação de uma vida de sofrimento causada pela seca que assola a região onde viviam (o sertão).

Em Gaibéus, o tema surgiu da inspiração e do desejo de Redol, ainda jovem, de tomar como cronista e poeta o gosto pela arte literária. Por ter convivido muito com os gaibéus e por ser amigo de poetas, economistas, romancistas e filósofos, aprendeu a conciliar estudo, trabalho e experiência para a criação de seu estilo. Assim criou Gaibéus, obra escrita em 1939 que o imortalizou. Esta obra é o retrato da realidade concreta e dramática. Desse modo, Redol realça, no romance, a figura do homem que vivia o cotidiano e sentia as verdades opressoras a ele impostas. Gaibéus tem sua própria história, que é simples, mas é um alerta, antes mesmo de se tornar romance, como o próprio Redol o classifica.

Procuramos destacar, nas referidas obras, o discurso da sexualidade como objeto, relacionado com os demais discursos enunciados, priorizamos o discurso da sexualidade, nas

duas narrativas, procurando mostrar que o saber sobre o sexo, a partir das práticas da sexualidade, foi trazido para a discursivização como prática dos homens e das mulheres nas respectivas narrativas. Enfatizamos o modo com que a vontade de verdade sobre o sexo foi discursivizada pelos sujeitos-personagens, na sociedade almeidiana e na redoliana. Buscamos evidenciar as verdades relacionadas com o sexo, as verdades sobre a posse e o cultivo da terra, a imigração dos brejeiros (retirantes) e a imigração dos gaibéus. Mostramos, assim, como estes discursos foram enunciados, no decorrer da história dos romances e como o poder dominante trouxe para o seu jugo todos aqueles que lhe serviam tanto no trabalho diário quanto na prática do sexo. Sob este olhar, mostramos que os personagens das narrativas, apesar das opressões sofridas pelo poder de dominação, apresentavam resistências, conforme o papel que desempenhavam em suas respectivas funções. Assim, encontramos, nos enunciados que compõem os textos, um confronto de visões de mundo criado pelos autores e representado pelo dizer dos personagens em ambas as narrativas: em A bagaceira o mundo vivenciado por brejeiros e sertanejos; em Gaibéus, o mundo dos ceifeiros.

As práticas discursivas sobre a sexualidade integram, desde as épocas primitivas, a ordem social e obedecem a leis particulares; entre elas, a da procriação, que faz parte dos princípios fundamentais da organização social.

Nas instituições culturais, onde se problematizam conceitos sobre a sexualidade, a prática do ato sexual foi sempre registrada por meio do código do que é lícito ou ilícito. A repressão sexual foi, portanto, vivenciada dessa forma, pela sociedade até o século XVII. Na modernidade, embora tenham acontecido mudanças com relação à prática do sexo, nos discursos sobre ele, ainda predomina uma certa desconfiança ou até mesmo uma repressão contra esta prática.

Considerando que toda produção discursiva posta em funcionamento em determinada formação social é veículo das relações sociais, consequentemente dos jogos de verdade, interpretamos as verdades sobre a prática do sexo, particularizando, por meio de exemplos, o caso em que os personagens dos romances almeidiano e redoliano são explorados na prática do sexo e no trabalho a que eram submetidos. Também neste aspecto, as obras convergem na temática dos prazeres sexuais dos homens e das mulheres.

A produção dos discursos e os efeitos de sentido que dos romances emergem há uma força do poder dominante. Em A bagaceira, representado pelo coronel Dagoberto; em

Gaibéus, representado pela “Senhora Companhia”, sob a direção de Agostinho Serra,

personagem central da narrativa. Procuramos enxergar como os discursos dispersos nas respectivas histórias dos romances representam o poder e como a sexualidade se materializa

na discursivização das narrativas. Podemos dizer que, nos romances almeidiano e redoliano, os enunciados construídos representam articulações dos discursos e seus efeitos de sentido produzidos, especialmente, sobre a sexualidade e, de forma geral, sobre o modo de vida dos personagens que compõem as referidas narrativas.

Diante das condições sócio-histórico-culturais em que os romances foram construídos e diante das exigências impostas do mundo moderno, os enunciados e as verdades explicitadas sobre o sexo expressam, no contexto das narrativas, as ideias da modernidade, seja a respeito da prática do sexo, seja a respeito do trabalho a que são submetidos os trabalhadores de A bagaceira e os de Gaibéus.

O ponto de convergência entre as obras incide sobre os jogos de verdade, no que tange às relações de poder que são enunciadas como verdades construídas, sobretudo, quando estão relacionadas com o trabalho e com a prática do sexo. Assim, os sujeitos-autores produziram suas verdades para representar a política ideológica da época: em A bagaceira, a política do coronelismo; em Gaibéus, a do capitalismo. Ambas as narrativas são romances de denúncia, os quais apresentam enredo fundamentado no modo de vida da época em que foram escritos.

A sexualidade em A bagaceira aparece pelos desejos libidinosos, pela sensualidade materializada no corpo e na sedução de Soledade para com Lúcio e opressão grotesca (brutalidade) apetecível, pelo apetite sexual do coronel Dagoberto por Soledade e pelo seu corpo sensual de jovem, esguia, cobiçada pelo poder de um homem não só macho, mas detentor do poder, isto é, o poder econômico. Este é o caso do coronelismo, que lhe dava esse direito.

Em Gaibéus, o poder está nas mãos de Agostinho Serra. Este também exerce a função de sujeito dominador, tanto no trabalho quanto no sexo. Na condição de representante da instituição “Senhora Companhia”, Agostinho Serra obriga os trabalhadores a deixarem o trabalho da ceifa e se filiarem ao trabalho fabril, fato que não agradava aos gaibéus por não serem adaptados a este tipo de trabalho. Este é um ponto de divergência existente entre os dois romances.

O discurso literário de A bagaceira e o de Gaibéus materializam vestígios do modo de a sociedade da época organizar o seu pensar e o seu dizer sobre o mundo de cada um dos literatos em suas narrativas. Ambos fazem funcionar discursos sobre as relações sociais. Entre elas, destacamos as relações sexuais entre os personagens que produzem subjetividade.

Podemos dizer que este pensar e este dizer foram materializados, nas obras, por discursos que representam as mudanças histórico-ideológicas nas sociedades brasileira e portuguesa da época, embora devamos ressaltar que, apesar das transformações ocorridas no

mundo moderno, as marcas de uma sociedade preconceituosa sobre a sexualidade e sobre o trabalho ainda se fazem sentir. Não é de se estranhar, portanto, que os discursos sobre o sexo produzidos pelos narradores se voltassem para fortalecer os interesses das classes dominantes; por isso aparecem nos romances como práticas de poder. As mulheres eram propriedades daqueles que detinham o poder e o sexo como algo proibido de ser posto em prática pelos subalternos. Estes só o praticavam porque resistiam na luta pelo poder da mulher desejada. Uma prática social trazida para os romances que, em seus discursos literários, materializam valores de uma época sócio-histórica. Assim, a partir das práticas discursivas constantes no

corpus, procuramos ver o entrecruzamento dos discursos acerca do sexo, fixando nosso olhar

no caminho traçado pela AD, sobretudo no que se refere ao discurso. Mesmo reconhecendo que a noção de discurso é instável, optamos pelo conceito de discurso considerado como conjunto de enunciados realizados, produzidos a partir de uma determinada posição, materializando verdades no decorrer da história do homem.

Diante de tantas inquietações com a problematização das histórias da sexualidade, resta-nos afirmar que outros discursos poderão emergir sobre o tema abordado, para complementar nossa análise ou mesmo para refutá-la.

Apoiando-nos nas ideias de Foucault, que diz haver possibilidades de o indivíduo, na função de sujeito do seu discurso, conduzir sua vida em direção a uma ética e a uma estética da existência, asseguramos que tal direção só é possível por meio de uma relação do indivíduo consigo mesmo e de uma prática da relação de liberdade.

O fim poderá ser o começo para um novo fazer.