• Nenhum resultado encontrado

Na linguagem artística dos romances a veiculação dos jogos de verdade sobre a

3. NO DISCURSO LITERÁRIO: UM OLHAR NA SEXUALIDADE MASCULINA E

3.2 Na linguagem artística dos romances a veiculação dos jogos de verdade sobre a

Considerando-se os processos e as condições de produção da linguagem por meio da língua com os sujeitos falantes e com as situações em que se produzem os dizeres, é a partir dessa confluência que fixaremos a nossa atenção para os jogos de verdades materializados nos romances em análise; antes, porém, cabe situar o discurso literário como um gênero cujos espaços nos permitem investigar os vários efeitos de sentido. A literariedade discursiva concede privilégio “[...] à reflexibilidade ficcional a ponto de esta se apagar por inteiro por trás do mundo que ela mesma cria.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 67). Seu conteúdo discursivo, apesar de ficcional, representa dizeres que significam realidades sócio-históricas com história e memória a partir de vontades de verdade.

Nos romances, a visão de mundo criada pelos sujeitos-autores representa fatos naturais ou humanos, objetos físicos, culturais, que caracterizam a história das respectivas narrativas como realidades que se materializam no decorrer do tempo.

O real é considerado pelos gregos como fatos ou coisas observáveis e, ainda segundo eles, o conhecimento da realidade se reduz à experiência sensorial que possuímos dos objetos, cujas sensações se associam formando memórias. Com base neste conceito, podemos dizer que é das relações sociais que necessitamos partir para compreender os conteúdos e as causas dos pensamentos, das ações dos homens e o porquê de suas formas de agir e pensar de maneiras diversas, dentro de cada grupo a que pertence, nas sociedades.

Vemos, por conseguinte, que o ser humano, em cada fase de sua vida, é levado a criar conjunto de ideias para explicar os fenômenos naturais e humanos. São estas explicitações e o modo com que ele interpreta as relações, sejam elas imaginárias (ficção), sejam científicas, religiosas, políticas, que constituem as vontades de verdade socialmente construídas.

Observamos a veiculação das verdades sobre a sexualidade a partir dos valores que compõem historicamente uma sociedade. Em A bagaceira, presentificam-se os proprietários fundiários, representados pelo coronel Dagoberto e os trabalhadores assalariados: do eito. Em

Gaibéus, a pirâmide social está representada pela “Senhora Companhia”, grande entidade

patronal, dona da terra. Aparece no romance como controladora de todo o mecanismo social, tendo à frente Agostinho Serra, que explora as concessões da referida companhia. Em segundo plano, estão os personagens gaibéus e rabezanos, grupo de trabalhadores que se antagonizam e se constituem como sujeitos sociais ideologicamente formados.

A sexualidade nos referidos romances pode ser analisada a partir desses grupos sociais constituídos e relacionados com outros sujeitos-personagens, tais como Rosa, Tia Maria do Rosário, João da Loja e outros. Todos os que compõem a história de Gaibéus são personagens que se representam como sujeitos dominados, tanto em relação ao trabalho quanto em relação ao sexo.

Segundo Alexandre Pinheiro (1979, p. 38), o episódio do ceifeiro rebelde é considerado o de maior carga ideológica porque remete a uma luta dentro do próprio espaço onde nasceu; entretanto a voz do ceifeiro rebelde não é ouvida. Seus enunciados perdem-se por falta de receptividade entre os grupos. Alexandre Pinheiro (1979, p. 38) caracterizou-o como um apóstolo que veio antes do tempo, sem voz para proclamar a sua doutrina: procurar a liberdade de todos os que viviam sobre a dominação de Agostinho Serra.

Em relação ao sexo, a força de dominação predomina no texto redoliano. O patrão Agostinho Serra tinha o poder de explorar as mulheres do rancho dos ceifeiros. Estes não

tinham o direito de escolha entre as moças ceifeiras para manter com elas uma relação sexual. O poder de Agostinho prevalecia sobre os gaibéus e rabezanos, a ponto de este personagem se colocar diante do rancho para que os ceifeiros não fossem à procura das mulheres que lá se alojavam. O que a classe dominante pensava em torno do trabalho e da prática do sexo era imposto mediante coerções sociais; portanto, os jogos de verdade, seja qual for a sua forma de representação, são materializados pelos discursos instaurados nos lugares sociais de poderes e saberes.

No texto redoliano, os discursos sobre a exploração do sexo são vistos por meio das manifestações dos personagens: de um lado, vemos a ideologia do poder dominante representado por Agostinho Serra; de outro, pela visão de mundo manifestada pelos grupos gaibéus e rabezanos. A veiculação do discurso da sexualidade já demonstramos por meio dos discursos construídos e manifestados no texto pelos sujeitos-personagens nos itens 3. e 3.1.

No decorrer da narrativa de A bagaceira, os brejeiros são vistos como sujeitos que não têm força para se defender nem lutar em defesa dos seus direitos; por isso, eram considerados a vegetação rasteira do engenho, sem nenhum amor à terra, adventícios no próprio lugar de nascimento, no dizer de Cavalcante Proença (1988, p. XLII).

Quanto ao sertanejo, este era a implantação da força; porém, foram obrigados a emigrar pelas circunstâncias e poder da seca invulnerável à bravura do sertanejo (PROENÇA, 1998). Vejamos os exemplos a seguir:

Entre os cabras do eito, os sertanejos se distinguiam em tudo. Para cavar a terra, Valentim “não precisava anzolar-se como os outros”. (p. XLII).

E, como Lúcio se espantasse de tanto apego à terra impiedosa, explicou: “- moço sertanejo não se adoma ao brejo”. (p. XLII)

Em síntese, dizemos que Soledade, Valentim (seu pai), Pirunga e outros personagens representam os retirantes que foram tangidos pela seca no sertão para se alojarem no brejo, à procura de uma vida melhor. O que encontraram foi a exploração em todos os sentidos: falta de comida, alojamento e, sobretudo, humilhação. No sertão tudo era livre, enquanto no brejo prevalecia o servilismo. Como exemplo, citamos João Troçulho, Xinane e outros que viviam de modo servil. Esta era a forma de ser destes dois grupos que compõem a trama da história almeidiana.

Estes sujeitos retirantes construídos pela narrativa são agentes de práticas sociais compartilhadas por eles (grupos de brejeiros e sertanejos), que agem em toda a história do

romance como sujeitos que têm existência em um espaço social e ideológico, em um dado momento da História e não em outro. Destarte, eles passam a falar no lugar do narrador para tornar possível a significação do que eles enunciam e, assim, marcar suas posições em torno dos seus anseios, desejos, trabalhos, modos de ver o mundo, enfim: em torno de tudo quanto podem dizer sobre as formulações discursivas que constroem a partir da época e do espaço social em que o romance foi escrito.

Ao refletirmos nas condições sócio-históricas que envolvem a produção dos discursos destes sujeitos-retirantes, vemos que eles falam de um lugar sócio-histórico, que é um lugar de produção discursiva, seja ele socioeconômico, político, ideológico ou cultural.

Finalizamos esta abordagem sobre a linguagem artística dos romances – a veiculação das verdades sobre a sexualidade –, mostrando que o sertanejo subjetiva-se por sua forma de homem valente, corajoso e conhecido pelo mito do sertão: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” O brejeiro é resignado e ao mesmo tempo submisso. Brejeiros e sertanejos constroem suas verdades conforme os critérios que eles mesmos estabelecem: “Sertanejo honra a palavra empenhada, ao preço da própria vida, ao preço mais caro ainda, do ódio.” (p. XLVI). Por essa razão, Pirunga prometeu a Valentim não matar o coronel Dagoberto, apenas vigiá-lo, até que se livrasse da cadeia para se vingar.

Enquanto o sertanejo ia à luta em busca da defesa do que admitia ser-lhe de direito, inclusive o de lutar pela posse das mulheres do eito, o brejeiro brigava por comida. Valentim (sertanejo) brigava pela honra de Fifi; coronel Dagoberto, pela posse de Soledade. No brejo, o homem voltava-se para “[...] o problema da fome e o amor das mulheres brejeiras não valia uma facada. Brigava-se por comida, por isso João Troçulho só a guardava na barriga.” (p. XLVII).

Em outras palavras: estas duas classes (sertanejos e brejeiros) defendiam valores distintos, diferentes, como vimos nos parágrafos anteriores. Os valores da época eram resultantes das vontades de verdade, luta entre sertanejos e brejeiros: os proprietários e os não proprietários. Em decorrência dessa luta por valores ideológicos entre estes dois grupos que se caracterizam por defender ideias diferentes, tanto em torno do trabalho quanto em torno da prática sexual, a liberdade das mulheres é tolhida e os grupos se identificam e se subjetivam por valores distintos.

Assim, a sexualidade na narrativa almeidiana é o reflexo do que os brejeiros e os sertanejos pensam sobre suas relações sexuais. O personagem Dagoberto, detentor do poder, domina todas as mulheres do eito, em especial, Soledade. Os brejeiros contentam-se em lutar por um amor (sexo) mais puro, mais duradouro.

Entendemos que, na história de A bagaceira, as vontades de verdade são marcadas pelo poder de luta e dominação. Vemos que Dagoberto identifica-se no texto almeidiano como sujeito que privilegia seu dizer (força), em detrimento dos dizeres dos demais sujeitos. Assume uma prática sexual como ato meramente carnal, garantindo assim sua superioridade e sua identidade coronelística.

Vemos, por outro lado, a classe dos dominados, entre eles, Lúcio, filho do coronel Dagoberto e único sujeito intelectual da narrativa, o qual reconhece a exploração dos demais sujeitos, mas é temeroso aos freios de seu pai, às leis impostas e atribuídas como verdades que não se podem mudar. Portanto, a sexualidade no romance é marcada pelo poder de Dagoberto na sua assunção de sujeito-coronel.

É neste universo construído por brejeiros e sertanejos que circulam os discursos sobre a prática do sexo, materializado por meio da linguagem literária e, como não existem ideias fora da linguagem é neste domínio que examinamos jogos de verdade da sexualidade.

A prática do sexo também se materializa na discursividade de Redol no seu universo narrativo. É vivenciada pelos dois grupos constituídos por gaibéus e rabezanos. O primeiro ocupa o lugar de protagonistas opositores aos rabezanos, pela forma do trabalho imposta. Uma oposição que se constitui por lugares de poder pelo fato de serem os gaibéus descamisados que chegam à Lesíria para trabalhar pondo, dessa forma, os rabezanos em desconfiança de perderem não só o seu trabalho como suas terras. Daí por que o rabezano olha o gaibéu com a expressão mais completa da dejecção humana. O conflito entre eles é iminente, provocada pela disputa do trabalho.

O modo com que Redol constrói o seu texto por mecanismos da linguagem artística, cria sentidos exprimindo desejos, modo de falar do mundo exterior e do interior. Os sentidos construídos pela discursividade sobre a sexualidade produzem jogos de verdade, seja na classe dos trabalhadores, seja na classe dos proprietários. As construções discursivas sobre a exploração dos gaibéus, dos rabezanos e demais personagens figuram no texto de Redol como resultante de um jogo estratégico, para que estes enunciados, e não outros, apareçam em seu lugar.

O sujeito-autor Alves Redol, em sua história, evidenciou o discurso da sexualidade atrelado a outros discursos, deixando marcas da prática do sexo. No jogo das relações dos grupos que compõem a narrativa redoliana, percebemos as divergências na forma de exploração do trabalho, como já foi dito, e na forma de serem os sujeitos personagens explorados sexualmente. A motivação sexual entre os gaibéus era uma das forças mais poderosas, como diz Alexandre Pinheiro (1979, p. 31). Redol não deixou de mostrar como,

entre os ceifeiros, a procura indiscriminada do sexo (prazer físico), nas noites de calor da Lesíria, era uma forma de os trabalhadores, esgotados da jornada de trabalho, encontrarem no sexo o prazer. Vemos, desse modo, que foi numa dessas noites de prazer que a gabeúa foi seduzida por um campino, Rosa por Agostinho Serra e outros casos da prática do sexo aconteceram.

Podemos assinalar que o texto redoliano é permeado de discursos sobre o trabalho, a emigração, o modo de vida e da prática do sexo, os quais são articulados de várias maneiras, como já mostramos até agora. Em toda a narrativa redoliana, há uma produção de linguagem que veicula vontades de verdades marcadas pela repressão ao trabalho e ao sexo, vivenciado pelos dois grupos: o dos gaibéus e o dos rabezanos.

No texto redoliano, a visão que os personagens têm sobre o mundo é aquela que corresponde aos discursos expressos: a imigração, os trabalhos nas mondas e ceifas, o desejo sexual, a volta para a terra natal. No mundo dos gaibéus, a liberdade parece não existir. É esta liberdade que eles tentam alcançar, mas, como são produtos das relações sociais, sofrem as coerções que lhe são impostas pela sociedade: valores, regras de condutas prescritas. Assim, o próprio grupo em que vivem determinam o que devem pensar, o modo de agir, o que devem valorizar, o que devem sentir e o modo de sentir. Na história de Gaibéus, os personagens são devidamente controlados pelo poder dominante, representado por Agostinho Serra, evidenciado por discursos produzidos que nos fazem reconhecer seus interesses e desejos sobre as verdades; entre elas, a verdade sobre o desejo sexual. As ideias da época sobre a prática do sexo expressam o papel dos grupos (gaibéus e rabezanos) no comando do seu trabalho, mas submetidos às ordens do patrão Agostinho.

Destarte, o mundo idealizado pelos personagens de Redol era outro: um mundo, onde suas ideias, seu modo de agir, seu trabalho fossem reconhecidos. Entretanto, não foi o que aconteceu. Os grupos (gaibéus e rabezanos) reconhecem que estão sendo explorados. De um lado, está a força de Agostinho Serra, representando a “Senhora Companhia” e, de outro, encontram-se os grupos assalariados dominados pelo poder de Agostinho Serra.

Reconhecemos, assim, que a ideologia constitui as relações sociais “[...] entendidas, como relações de produção, ou seja, o modo de os homens produzirem e reproduzirem suas condições materiais de existência e o modo de pensarem e interpretarem essas relações.” (CHAUÍ, 2006, p. 52).

Portanto, no texto de José Américo de Almeida, há jogos de verdade da sexualidade. Podemos considerá-los como uma política especulativa, aquela que mostra a prática do sexo

por meio do poder dominante, isto é, mediante a imposição de regras e leis a serem cumpridas pelos dominados. Em outras palavras: a relação sexual é marcada pelo conservadorismo.

Quanto ao texto redoliano, mostramos em parágrafos anteriores que a prática sexual também está marcada pela ideologia do poder dominante. Quanto às classes inferiores, entre elas, as dos gaibéus e a dos rabezanos, no decorrer da narrativa, não só a prática do sexo era uma ilusão que os personagens alimentavam, mas também a de encontrar um mundo novo onde pudesse realizar os seus sonhos.

Em resumo, podemos dizer que existe uma ideologia do sexo nos dois textos e, do mesmo modo que pressupomos sujeitos produzindo discursos unidos a uma ordem, a um real discursivo, pressupomos que a ideologia também está presente e atrelada às relações sociais de produção, sejam elas políticas, econômicas, religiosas, sexuais...

Tudo quanto assinalamos pode ser resumido nesta afirmativa:

[...] o homem não é apenas uma individualidade que reside no espírito. É também e principalmente produto e relações sociais ativas e inteligente, ou seja, que dependem como mostrava Gramsci; do grau maior ou menor de inteligência que delas tenha o homem individual. (FIORIN, 2005, p. 36).

Como produto das relações sociais os personagens de ambas as narrativas agiam, reagiam e pensavam como participantes ativos do seu grupo social; entretanto, não conseguiam mudar nem dominar a realidade a que eram submetidos, apesar de muitas vezes terem tentado criar uma identidade própria. Podemos exemplificar assinalando que, no trabalho, em A bagaceira, desenvolvido na produção agrária e em Redol na ceifa do arroz, os trabalhadores não eram valorizados; pelo contrário, eram submetidos a uma forma de trabalho desumana. Quanto ao sexo, também não se realizavam conforme seus desejos. Apenas o praticavam no seu silêncio de amargura, por não poder sair da miséria corporal e espiritual. Suas vozes jamais seriam ouvidas. Parece-nos que este modo de vida lhes teria sido uma predestinação. Para que suas palavras e seus desejos de mudanças fossem ouvidos, seria necessário que a ideologia fosse derrubada. Nos romances, vê-se que o embate entre as classes dominantes e as dominadas têm um simbolismo muito forte. Os detentores do poder monopolizavam as demais classes, principalmente a dos assalariados. Para se mudarem as ideias sobre o trabalho e sobre o sexo, era preciso que esta classe minoritária (a dos assalariados) se fortalecesse, o que não aconteceu na história das narrativas, por serem os trabalhadores (grupos minoritários), formados por organizações contrárias ao poder dominante.

Temos, portanto, de admitir que as relações entre os dois poderes (dominante e dominado) são um fenômeno histórico que nos mostra que as classes sociais não existem como entidades separadas. As pessoas encontram-se em uma sociedade estruturada de diversas formas. Nelas se enquadram conforme o seu status, de modo que o homem como sujeito social ora passa pela exploração, ora se mantém no poder sobre aqueles que explora.

Nos romances, mostramos como essas duas classes realizam suas funções em determinadas situações no “conjunto das relações sociais”.