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Considerações Finais

No documento P ROMOVER AS AÚDE,P RODUZIRF (páginas 192-200)

O objetivo deste trabalho foi descrever e analisar a implementação da Estratégia Saúde da Família em São Martinho. Deste modo, não tratamos de um objeto estático: transitamos por um processo, que envolveu uma variedade de sujeitos, espaços e situações, que se distribuíam como um emaranhado. Por jamais ter sido o objetivo deste texto tratar de uma totalidade, foi preciso mapear alguns feixes menores de relações na disposição deste emaranhado, que aqui se tornaram capítulos. Na variedade de sujeitos e situações de cada feixe, havia sempre uma produção que se destacava das demais: no Capítulo 1, uma população de pacientes; no Capítulo 2; uma comunidade de alemães e; no Capítulo 3, uma composição de governo. Cada feixe mantinha em suas bordas as aberturas que remetiam sua existência ao processo de implementação da ESF em São Martinho, principalmente na replicação de dois signos: família e saúde. No Capítulo 1, estes signos assumiram posições no interior de uma classificação médica-estratégica; no Capítulo 2, transitaram em uma classificação moral-hierárquica; e no Capítulo 3, foram operacionalizados enquanto objeto de disputa por gestores e candidatos. Por ser um processo dinâmico, a implementação da ESF se desenha como uma singularidade, que envolve sujeitos, espaços e relações específicas.

Ter por objetivo analisar a implementação de uma política pública implica, deste modo, analisá-la em ação, no cotidiano de seu funcionamento. Para problematizar a questão anunciada na Introdução desta dissertação – como se constitui a ESF? – é preciso ter isto em pauta: quando se trata de analisá-la em processo, sua disposição varia de acordo com os espaços tomados como referência de perspectiva, e isto não implica

191 sua localidade. Uma política pública em ação se faz pelos sujeitos que nela atuam e se constituem, e seus contornos estarão sempre em movimento de acordo com aquilo que está em relação: a gestão da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul não será a mesma se em relação à região metropolitana de Porto Alegre ou se em relação aos municípios da Encosta da Serra. Não é forçoso dizer que nestes casos haveria duas constituições distintas de uma mesma política pública, a ESF. Assim, a validade de ter por objetivo analisar o processo de implementação desta política pública em São Martinho é não tomá-la por uma totalidade que, no cotidiano, jamais se constitui. A ESF vista de São Martinho derivava sua amplitude de sua especificidade: colocava em relação sujeitos e espaços que, de outra forma, poderiam jamais se relacionar.

Tomando a singularidade aqui descrita e analisada como a própria ESF no decurso de seu funcionamento, o que a constitui? Em primeiro lugar, uma equipe de saúde da família. No Capítulo 1, acompanhamos as consultas de Fernando, assim como as visitas realizadas por Sônia e Letícia aos moradores da Vila Alta e da Vila das Araucárias. Uma relação específica era buscada em suas rotinas de trabalho: o vínculo entre médico e paciente, e entre agente comunitária de saúde e morador. No primeiro caso, tal relação se produzia por um processo específico de subjetivação, que buscava construir um paciente que vinculasse sua saúde a um tratamento prolongado, administrado por Fernando. A ciência de Fernando oferecia os enunciados de consultório: a ciência biopsicossocial; a epidemiologia; e a genética. Através de tais enunciados, algumas técnicas de estabelecimento do vínculo passavam a estar a disposição: o histórico familiar; o genograma; a anamnese; o embasamento epidemiológico; o diagnóstico. O sujeito que se produzia desta relação era um paciente, que não se resumia em seu próprio corpo, mas em suas relações familiares e afetivas,

192 um paciente/família. No outro feixe de estabelecimento do vínculo estavam Sônia e Letícia, que mantinham uma rotina de visitas diárias aos moradores de suas microáreas. As sociabilidades previamente estabelecidas compunham com o programa de trabalho para a identificação de cada família, de seus membros, medicamentos e estados de saúde. Uma população passava a ser identificada e produzida na rotina das agentes, uma população de pacientes.

Deste modo, em segundo lugar, uma população atendida deve ser identificada para o funcionamento da ESF. A produção desta população, como se viu, é levada a cabo por técnicas e rotinas específicas, envolvendo profissionais distintos e, muitas vezes, frustradas por aqueles que a deveriam compor. Era isso que Fernando chamava de desorganizar o sistema. O sistema era desorganizado, conforme apresentado no Capítulo 2, por um conjunto de alemães que mantinham no trabalho o índice de sua ética e de sua moral. A relação para com o trabalho dos martinenses que se chamavam de alemães era o principal índice do modo de se conduzir em relação à vida, e isto envolvia a família, o autocontrole, a discrição e a saúde. O autocontrole necessário para bem dividir os dias entre aqueles reservados ao trabalho e aqueles reservados aos amigos – e à bebida – era indicativo de que um homem deixara de ser guri, e que, como homem, saberia se organizar entre o trabalho, à família e à beber em comum com amigos. As alemoas de modo algum restringiam-se ao espaço doméstico, e partilhavam com os homens a tarefa de manter uma casa, apesar da divisão de gênero que as impedia de frequentar, em dias comuns, os clubes do Centro. Toda uma classificação moral se realizava, no cotidiano, a partir de difamações que se faziam tomando o preceito de não deixar de trabalhar como índice, sendo a acusação de preguiçoso ou de encostado a posição menos desejada nesta classificação. De modo que, quando

193 chamados a entrarem em uma relação médica que não visava a superação de um estado indesejado – a doença – mas a continuidade de um tratamento sem fim previsto, muitos alemães procuram outros canais de atendimento médico, fragmentando a continuidade proposta pela equipe da Clínica São Martinho.

Por fim, toda uma composição de governo deve se formar para a gestão da ESF. No caso de São Martinho, como acompanhado no Capítulo 3, esta composição se estendia para fora de seus limites territoriais, na participação de gestores que não atuavam nos espaços de administração pública do município. Do mesmo modo, muitos profissionais que não ocupavam cargos na administração pública atuavam enquanto agentes de governo, no controle e na administração de vias de comunicação específicas entre gestores e moradores. Pelas vias de comunicação, muitas vezes pessoais e restritas a poucos participantes, demandas poderiam ser encaminhadas à administração pública, trocas se realizavam e famílias passavam a compor grupos que, durante a época da política, angariavam votos e transformavam-se em correligionários. As opções de gestão oferecidas aos ocupantes da administração da saúde pública de São Martinho levavam em conta, em outras coisas, a manutenção destas vias de comunicação, o que se tornava ainda mais evidente durante a política, quando a saúde pública se tornou matéria para acusações, notícias e avisos. A gestão da ESF em São Martinho passava por uma extensão que não era local, e por uma composição que não era simplesmente burocrática, mas também estratégica, na qual burocracia, famílias, grupos e política atuavam com igual intensidade, compondo governo.

Pelos capítulos, foram apresentados alguns feixes de situações e relações que davam forma a este emaranhado que chamo de Estratégia Saúde da Família. Sua

194 disposição foi distribuída espacialmente – pelos espaços que permitiam seu funcionamento – e temporalmente – de acordo com cada período de trabalho de campo. A diacronia de sua composição impedia-me de estabelecer definitivamente os limites que determinavam o que fazia e o que não fazia parte desta política pública. As reuniões do Conselho Municipal de Saúde ou a realização da III Conferência Municipal de Saúde de São Martinho talvez se apresentem como cenas melhor credenciadas para uma etnografia sobre a implementação de uma política pública de atendimento à saúde, mas de que maneira deixar um tema como o trabalho para os alemães, que implicava mesmo no uso que faziam do atendimento ofertado pela Clínica São Martinho, de fora da análise? De que modo não trazer para o problema uma lógica política que, por se compor em grupos rivais, tem como resultado a demissão de metade da equipe de saúde da família da Clínica São Martinho? De que modo, ainda, tratar deste emaranhado sem buscar identificar o que é Estado e o que não é?

Nesta relação suposta, os agentes comunitários de saúde atuam enquanto a válvula de escape preferida às análises63: de um lado, haveria o Estado, de outro, a

comunidade, e, entre ambos, haveria os agentes, que capilarizariam o poder de Estado por entre os moradores atendidos. Nesta dissertação, em direção oposta, aqueles que poderiam ser chamados de Estado conviveram com boa parte dos moradores antes de ocuparem cargos na administração pública, possuem rostos, histórias e trajetórias singulares. O modo como participam deste emaranhado não é enquanto representantes do Estado, mas enquanto agentes de governo. Buscam organizar, controlar, administrar

63 Eles fariam a tradução de “termos técnico-científicos” para uma linguagem “leiga” (Coelho, 2011), ou,

ainda, seriam “burocratas de nível de rua”, capazes de relacionar-se com moradores a partir de suas experiências prévias sem, contudo, trazer tais experiências para a organização de seu trabalho (Lotta, 2010).

195 e governar esta multiplicidade de sujeitos e espaços que constitui a ESF, e partilham deste poder com outros agentes que não necessariamente ocupam cargos na administração pública. Sob este governo, a ESF funciona em feixes de situações localizáveis, como a clínica e as casas, mas também nos clubes, nas roças e nas fábricas. Quando se diz saúde e família neste processo, nada implica se não localizado em cada um desses feixes.

Em São Martinho, a implementação da Estratégia Saúde da Família opera, em primeiro lugar, por uma clínica: é preciso trazer os moradores para a Clínica São Martinho, ouvi-los, diagnosticá-los, ter um cuidado especial para que, como alemães, não deixem de ser pacientes e não desfaçam o vínculo. Em segundo lugar, por uma identificação: é preciso ir de casa em casa, em cada bairro, para ter controle sobre cada família, cada tratamento, antes que, como alemães, desorganizem o sistema. Em terceiro lugar, por uma moral: o preceito de não deixar de trabalhar e a classificação moral que se faz a partir disso implica o modo como cada morador fará uso dos canais de atendimento médico, como a Clínica São Martinho. Em quarto lugar, por um governo: gestores, moradores e profissionais estabelecem vias de comunicação e parcerias que guiam boa parte das decisões daqueles que ocupam os cargos da administração da saúde pública. Enfim, por uma política: a saúde pública, e a ESF como o único modelo de atenção básica de São Martinho, é operacionalizada enquanto objeto de disputa e de troca de acusações, e todo seu funcionamento pode se alterar durante a época da política.

Saúde e família eram signos que transitavam por estes feixes. Era justamente o que comunicava e o que caracterizava a distância entre cada um deles. Faziam parte de

196 um mesmo processo, mas expressavam, mais do que qualquer outra coisa, a multiplicidade de sujeitos e relações que se inseriam neste emaranhado. Saúde poderia variar de um estado sempre latente e dependente de acompanhamento médico – algo que se possa gerir –, para uma expressão visível que se via na disposição física para o trabalho, ou ainda para um objeto de governo, que implicava o controle daquilo que poderia interferir na regularidade do atendimento. Família, como vimos, poderia ser objeto da clínica, no estabelecimento da função de cada membro para o bem-estar do paciente; poderia ser uma composição marcada pela heterogeneidade em relação aos parentes que não partilham o trabalho e a casa; ou ainda correligionárias na composição dos grupos, enquanto unidade mínima do voto.

Ao final deste trabalho, o que São Martinho oferece? Um desenho, no qual a Estratégia Saúde da Família se apresenta em seus desacordos, próprios a uma política pública que se faz de sujeitos díspares, idealmente participantes de um mesmo processo, mas conectados por um emaranhado que se replica em feixes móveis. Se há uma dissonância justamente nos dois signos que deveriam resumir esta política, é por não haver unidades antagônicas, e muito menos uma hierarquia estatal que se caplilarizaria até os meandros da Encosta da Serra. Para falar de ESF foi preciso falar da clínica, das famílias e do governo. O cotidiano de São Martinho ofereceu aquilo que era atual: uma política pública em ação, sem dentro ou fora, sucesso ou fracasso, na agonia de sujeitos que, muitas vezes, falam línguas distintas.

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