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U MA COMUNIDADE DE ALEMÃES

No documento P ROMOVER AS AÚDE,P RODUZIRF (páginas 143-148)

A conduta em relação ao trabalho imprimia entre os alemães a busca por uma regularidade em sua realização que não deveria ser interrompida. O trabalho, que quando categorizado atuava como índice de avaliação moral, atuava, do mesmo modo, enquanto índice privilegiado da disposição física de cada alemão ou alemoa, condição fundamental para sua realização. Era, deste modo, o resultado visível desta disposição, mas também o indicador de que se tinha vigor para realizá-lo. No limite, não deixar de trabalhar indicava o estado corporal próprio a um alemão e uma alemoa, aquilo que poderia ser chamado de saúde ou doença.

Em uma visita que Sônia e eu fizemos a Hilda Lemke, moradora da Vila Alta, é exemplar desta relação. Hilda estava à espera de uma cirurgia por causa de uma hérnia ingnal, que havia tempos que era remarcada de modo a sempre atrasar sua realização. Para situar a dimensão do problema, Hilda nos levou até o lado de fora de sua casa e nos mostrou o que, para mim, era uma enorme quantidade de troncos de acácia já cortados para serem vendidos como lenha. Para Hilda, a quantidade era ridiculamente pequena: havia cortado todos os troncos naquela manhã, mas, para ela, cortaria o dobro se não fosse o impedimento causado pela hérnia. Isto a irritava profundamente, ainda mais pelo que dela se dizia: segundo Sônia, sua fama era de jamais ter deixado de trabalhar.

Os casos acima descritos sobre seu Antenor, que não deixava que se supusesse que sua idade era impedimento para o trabalho, ou sobre Bruno, encostado por conta de um acidente de trabalho, são indicativos da mesma relação entre a regularidade da conduta e a avaliação que se faz do estado corporal. Nenhum alemão ou alemoa espera

142 ficar encostado ou encostada: esta condição deve ser de excepcionalidade, e se o corpo permanece apto para o trabalho, não havia motivos para que a atividade fosse interrompida. A interrupção nesta ascese que se fazia pelo trabalho interrompia, do mesmo modo, o eixo fundamental de problematização moral destes sujeitos, sua atividade ética fundamental, pela qual, e através de sua modulação, atingia-se os objetivos morais básicos dos alemães: a família, a casa, a comunidade. Uma teleologia da existência que deveria ser regular, na toada constante do trabalho.

Na classificação que era oferecida pela Clínica São Martinho a estes moradores, a categoria de população atendida implicava, em direção contrária, que alemães e alemoas permanecessem em um tratamento e acompanhamento médico contínuos, no qual não havia a fronteira da cura, mas uma promoção da saúde pautada em atividades alternativas ao trabalho consideradas saudáveis – beber não estava entre elas –, assim como em um vínculo entre médico e paciente que imprimia sempre uma condição de suspeita sobre o estado corporal deste paciente, e não possuía um fim pré-determinado. A população atendida, e sua divisão em áreas e microáreas de atendimento, classificava moradores que precisavam ter sua saúde controlada, e tudo passava por um processo de subjetivação que buscava transformar alemães em pacientes, através de um vínculo que buscava transformar agentes comunitários de saúde e o médico em agentes no processo de organização familiar, considerada determinante na terapêutica proposta pela Clínica São Martinho. O que se produzia, como descrito no capítulo anterior, era uma população de pacientes, que deveria ser vinculada sempre ao trabalho da Clínica.

O que resulta do cruzamento entre os dois modos de classificação dos moradores de São Martinho – ambas estratégicas, operacionalizadas de acordo com o que estava

143 em jogo em cada situação, sendo uma delas moral e a outra médica – são modos de conduta que parecem apontar para direções opostas. Por um lado, no caso da categorização da conduta ética fundamental entre os alemães, o trabalho, aquilo que poderia ser chamado de doença, isto é, aquilo que impedia o corpo em manter-se na regularidade desta conduta, era uma excepcionalidade que deveria ser superada, sob o risco de sofrer acusações morais como a de encostado que, mais do que qualquer outra, indicava precisamente uma incapacidade física para o trabalho. Por outro lado, no interior de uma classificação médica de uma população de pacientes, a doença era um estado que se confundia com a própria existência do paciente, ou, em outras palavras, o paciente era sempre algo a ser trabalhado, no decurso de um tratamento e de uma terapêutica contínua, em que a fronteira entre saúde e doença era borrada em detrimento de um controle fino de seu estado corporal, que deveria estar sempre vinculado aos cuidados do médico e dos agentes comunitários de saúde.

No interior da população atendida, do público-alvo da ESF em São Martinho, não havia apenas uma subjetivação concorrente, mas toda uma classificação alternativa decorrente deste modo de subjetivação, que buscava imprimir seus próprios índices de saúde e doença a seus moradores. Uma comunidade de alemães, que faziam uso da Clínica São Martinho quando julgavam necessário, mas que modulavam este uso à conduta própria que deveria guiar suas vidas, sem que o vínculo proposto pela Clínica determinasse a busca por atendimento médico. Na maior parte dos casos, a busca estava condicionada a um estado corporal e moral – estar encostado –, do qual era preciso livrar-se o quanto antes.

144 No entanto, não se tratava de uma realidade de exclusão: aquilo que era próprio a Clínica São Martinho e aquilo que era próprio aos alemães se comunicavam e estabeleciam composições. A principal delas era a política e o governo, nas quais moradores, funcionários públicos, gestores municipais e candidatos políticos agiam em conjunto, inclusive na implementação e gestão de políticas públicas, como a ESF. O próximo capítulo dará conta destas composições, que aproximavam alemães e gestores na política e no governo.

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Capítulo 3

Política e governo: a administração pública da saúde em

São Martinho

A administração pública da saúde em São Martinho aproximava moradores e gestores municipais, através de vias de comunicação pessoais, pelas quais se realizavam trocas e demandas de ambos os lados, e que agiam diretamente no modo como a ESF era implementada no município. Isto ocorria através de dois eixos. No primeiro eixo, o que estava em jogo era uma divisão de atribuições, entre aqueles que participavam da administração pública de São Martinho, os gestores, e aqueles que possuíam a capacidade de realizar demandas específicas a alguns gestores que lhe eram próximos, um certo número de moradores. No segundo eixo, se formavam as composições resultantes das vias de comunicação entre gestores e moradores, que eram principalmente duas: em primeiro lugar, o governo, como uma disposição de poder capaz de gerir e de imprimir regularidades ao comportamento de tais moradores, por toda uma economia das trocas que podiam ser realizadas e pela atuação de profissionais que partilhavam deste poder – como os profissionais da saúde; em segundo lugar, em períodos precisos, o que se formava era a política, enquanto um intervalo de tempo específico em que havia a disputa por votos em períodos eleitorais, no qual gestores, candidatos e famílias atuavam enquanto dois grupos rivais.

O cruzamento entre estes dois eixos que aproximavam gestores e moradores colocava em relação duas classificações que operavam categorias distintas: a classificação médica da população atendida e a classificação moral de alemães e alemoas, apresentadas nos capítulos anteriores. Isto implicava que a política e o

146 governo eram composições das quais os alemães buscavam participar, o que incluía a administração pública da saúde. A Implementação da ESF em São Martinho passava, então, pelas composições da política e do governo, o que implicava, do lado da administração pública, todo um trabalho técnico e burocrático, mas implicava também, pela relação com os moradores e com as famílias, toda uma economia das trocas e das demandas. Deste modo, observar a implementação da ESF a partir das composições da política e do governo possibilita a análise da singularidade da ação dos gestores responsáveis por esta tarefa em São Martinho, que atuavam sempre no interior de tais composições. Neste capítulo, seguirei por esta perspectiva de análise.

No documento P ROMOVER AS AÚDE,P RODUZIRF (páginas 143-148)