• Nenhum resultado encontrado

Os papéis sociais estão sempre em mudança. As expectativas de papéis não são fixas; como a sociedade, estão sujeitas a contínuas transformações.

Partindo desta premissa, esta pesquisa teve a intenção de compreender as mudanças nos papéis sociais de esposas donas-de-casa em decorrência da aposentadoria de seus maridos. Lançar um olhar em direção à maneira como as idosas vivenciam seus papéis, suas relações, foi uma de nossas preocupações.

Profundas transformações sociais ocorridas no século XX afetaram o papel das mulheres, contudo estas idosas, nascidas nas décadas de 30 e 40, foram fortemente influenciadas por uma cultura tradicionalmente patriarcal remanescente do Brasil colonial. Não tiveram vida profissional ativa, sua vida social limitou-se, principalmente, ao círculo doméstico. O modelo matrimonial correspondia ao relacionamento servil por parte da mulher, trocando o jugo do pai pelo do marido, ao qual passaram a dever obediência. Suas principais funções femininas eram a reprodução, os cuidados com o lar, a criação da prole. Pertenciam primordialmente à esfera doméstica.

A pesquisa realizada e a interpretação dos depoimentos, colhida à luz da teoria utilizada, levaram-nos a algumas afirmações e reflexões sobre as representações destas donas-de-casa.

Podemos dizer que ao analisarmos os depoimentos das seis entrevistadas, nossos objetivos iniciais, que mobilizaram a realização desta dissertação, foram alcançados. Seus discursos foram esclarecedores, pertinentes para ampliarmos nosso entendimento do papel social das donas-de-casa idosas, as mudanças ocorridas na rotina doméstica em decorrência da aposentadoria de seus maridos; os motivos que as levaram a ser donas-de-casa; saber o que mudou ao longo de suas vidas e como estão lidando com este momento de vida – o envelhecimento.

Estas mulheres por intermédio de seus depoimentos/falas/discurso explicitaram as ambigüidades, as contradições, as resignações, os sofrimentos, os impedimentos, as frustrações, as mágoas, a submissão, a subalternidade e as tristezas que envolvem suas vidas.

O processo de tornar-se dona-de-casa, que molda esta identidade nas mulheres de nosso universo, implica no fato de assumirem uma posição marcante

de submissão, subalternidade, passividade, resignação, sacrifício, e o silenciar diante da autoridade patriarcal, encarnada na figura de seus maridos. São as posturas esperadas do feminino exemplar – a obediência a uma relação hierarquizada.Todas sentiram vontade de trabalhar fora, mas permaneceram em casa subjugadas obedecendo ao desejo de seus maridos.

Moreno (1978) relata que isto acontece quando a sociedade impõe ao indivíduo funções vitais que ele não deseja cumprir, criando um estado de permanente frustração, ou ainda quando o indivíduo desempenha o papel escolhido de maneira não desejada.

Ao analisarmos o desempenho do papel de dona-de-casa vislumbramos que as respondentes, de uma maneira geral, cuidavam da casa, dos filhos e do marido. Eram financeiramente dependentes e gozavam de alguma liberdade durante o expediente de seus maridos. Quando saíam resignavam-se com o fato de terem de voltar para casa antes deles chegarem.

Com a aposentadoria de seus maridos, sentiram-se invadidas, usurpadas de um espaço que antes pertencera somente a elas – a casa. Desarrumando tudo, ocupando muito espaço e aumentando o serviço doméstico eles atrapalham a rotina doméstica.

Sob o olhar dos maridos aposentados sentem-se vigiadas, controladas. Eles não gostam de sair de casa, não gostam de ficar sozinhos e reclamam das saídas delas. Mais uma vez predomina a hierarquia – elas precisam se adequar ao chefe da família que, perdendo seu espaço público, agora quer administrar o lar.

Muitas delas reclamaram do egoísmo de seus maridos, na medida em que tudo era feito à maneira deles não se preocupando com o que elas sentiam ou pensavam.

Relataram-nos seus sonhos, suas expectativas, bem como quando os mesmos não foram totalmente alcançados, suas frustrações e sentimentos de resignação: “a viagem à França com os colegas de curso”, “a pintura da casa”, “um curso de ginástica”, “continuar os estudos”.

Estas mulheres casaram-se cheias de ilusões, expectativas e fantasias. Muitas delas para fugir do jugo do pai autoritário, acreditando que teriam vida própria – buscavam a liberdade de estar-no-mundo como indivíduos. Outras sonhavam com o amor romântico, com seu príncipe encantado, mas todas se depararam com outra

realidade, aquela que não lhes ensinaram, bem diferente do “e viveram felizes para sempre” dos contos de fada aprendidos.

Contudo elas foram se adaptando aos novos tempos, a seu modo, acompanharam as transformações sociais, suas percepções também mudaram. Aprenderam muito com suas filhas, as quais tiveram outro estilo de vida, graças às mudanças provocadas principalmente pelo movimento feminista.

Suas relações maritais também mudaram. As que permanecem casadas possuem conta conjunta e cartões de crédito. Participam das decisões manifestando suas opiniões, “agora eu faço e depois eu falo”, “deixei de ser boba” e “aquele

príncipe encantado não existe mais”, são falas que explicitam bem a mudança.

As duas viúvas administram suas finanças, mulheres que sequer lhes foi permitido pagar uma conta no banco, aprenderam a gerir sua vida financeira e pessoal.

Estas mulheres, atualmente, criaram seus filhos e já não se preocupam com a reprodução. As pressões e limitações dos controles e preconceitos sociais, sofridos na juventude, atenuam-se e lhes proporcionam mais tempo e oportunidades para se dedicar a outros interesses que não sejam os domésticos.

Parece que agora, na terceira idade, as palavras liberdade, independência e lazer começam a ganhar diferentes significados para elas. Pode-se afirmar que a independência vivenciada por elas hoje em dia, fato não ocorrido com suas mães e avós, deve-se, sobretudo às lutas incansáveis travadas por feministas de todas as partes do mundo ao longo destes anos.

Chegamos então ao ponto crucial de nossas considerações. Apesar destas profundas e, provavelmente, irreversíveis transformações dos papéis sociais femininos, as mulheres de nosso universo, oriundas de um ambiente cultural patriarcal, ainda permanecem com atitudes, comportamentos e posturas remanescentes deste universo tradicional.

As conquistas do movimento feminista atingiram-nas com menor intensidade. A cultura patriarcal ainda resiste no imaginário destas mulheres. Demonstram em seus discursos contraditórios e ambíguos, valores confusos como, por exemplo, em relação ao aborto, onde todas são terminantemente contra, mas em algumas situações estão de acordo. Em relação à virgindade ocorre a mesma contradição. Explicitam serem favoráveis à liberação sexual para a mulher, mas criticam o excesso de parceiros. Concordam com o fato de a mulher participar do mundo

público, se profissionalizar, porém logo em seguida fazem um discurso sobre as possíveis seqüelas provocadas pela ausência da mulher na família, na criação dos filhos, podendo até prejudicar o país.

As viúvas desta pesquisa sentiram-se libertas de suas prisões após a morte de seus maridos e só pensaram em viver uma “liberdade” tardiamente conquistada. Não cogitaram contrair outro matrimônio por temerem aprisionar-se novamente. Eis aí a contradição, o conflito. Foram libertas pela morte de seus maridos, entretanto elas mesmas não se alforriaram. O medo de serem subjugadas por outro homem demonstra que elas trazem em seu inconsciente toda a cultura patriarcal tradicional. É o que Moreno chamou de conserva cultural – que aniquila a espontaneidade do indivíduo impedindo-o de dar novas respostas, de se aventurar em novos comportamentos, novas possibilidades.

A oportunidade de estas mulheres poderem se expressar, de organizar suas idéias, esclareceram-nos e quem sabe a si próprias, por intermédio de alguns insights que tiveram no decorrer das entrevistas, a respeito de seu status de dona- de-casa. Desta forma, possibilitaram-nos perceber seus valores, normas e crenças aprendidos em seu processo de socialização.

Significados foram apreendidos e interpretados, porém não podemos dizer que são os únicos. Podemos afirmar que esta foi a nossa leitura a partir do conceito de papéis sociais. No entanto, o tema por nós examinado – dona-de-casa – ao fazer parte do universo humano, não se esgota, dado que novos sentidos e significados poderiam ser captados a partir de outros olhares, outras leituras.

14. BIBLIOGRAFIA

ALVES, B. M; PITANGUY, J. O que é Feminismo. São Paulo: Brasiliense, 2003

BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo – A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002

____________. A Velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990

BERGER, P.L; LUCKMANN, T. A Construção Social da Realidade; tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 2002

BERGER, P.L. Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis: Vozes, 1992

BOTTOMORE, T. B. Introdução à Sociologia; tradução de Waltensir Dutra e Patrick Burglin. Rio de Janeiro: Zahar, 1973

BIROU, A. Dicionário das ciências Sociais. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1973 BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 10ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003

BOUDON, R.; BOURRICAUD, F. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática, 1993

BUSTOS, D. M. O Psicodrama – Aplicações da Técnica Psicodramática. São Paulo: Summus, 1982

CAMARANO, A. A. Envelhecimento da População Brasileira: Uma Contribuição Demográfica. In: FREITAS, E. V. et al. (Orgs) Tratado de Geriatria e Gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002

CAMARANO, A. A. et al. Como vive o idoso brasileiro? Em: CAMARANO, A. A. (Org.) Muito além dos 60 – Os novos idosos brasileiros. Rio de Janeiro: IPEA, 1999 CHINOY, E. Sociedade: Uma Introdução à Sociologia; tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1975.

DAHRENDORF, R. Homo Sociologicus: Ensaio sobre a história, o significado e a crítica da categoria de papel social. Tradução de Manfredo Berger. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1969

DEBERT, G. G. A construção e a reconstrução da velhice: família, classe social e etinicidade. In: NERI, A. L. (Org.) Velhice e Sociedade. Campinas: Papirus, 1999

________. Antropologia e o estudo dos grupos e das categorias de idade. In: BARROS, M. M. L. (Org.) Velhice ou Terceira Idade. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998

ERIKSON, E. H. O Ciclo de Vida Completo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. FICHTER, J. H. Sociologia. São Paulo: EPU, 1973

FLAX, J. Pós-modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminista. In: HOLLANDA, H. B. (Org.). Pós-modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991 FRANÇA, L. Preparação para a Aposentadoria: Desafios a enfrentar. In: VERAS, R. (Org.) Terceira Idade – Alternativas para a sociedade em transição. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: UERJ, UnATI, 1999

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Dicionário de ciências Sociais. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1987

GARCIA, C. C. Ovelhas na Névoa – Um estudo sobre as mulheres e a loucura. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1999

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1999

GOLDANI, A. M. Mulheres e envelhecimento: desafios para novos contratos intergeracionais e de gênero. In: CAMARANO, A. A. (Org.) Muito além dos 60 – Os novos idosos brasileiros. Rio de Janeiro: IPEA, 1999

GOLDENBERG, M. A arte de pesquisar – como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sócias. Rio de Janeiro: Record, 1997

GONÇALVES, C.S; WOLFF, J.R; ALMEIDA, W.C. Lições De Psicodrama – Introdução ao Pensamento de J. L. Moreno. São Paulo: Ágora, 1988

GUSMÂO, N.M.M. A maturidade e a velhice: Um olhar antropológico. In: NERI, A. L. (Org.) Desenvolvimento e envelhecimento: Perspectivas biológicas, psicológicas e sociológicas. Campinas: Papirus, 2001

HAGUETTE, T. M. F. Metodologias Qualitativas na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2000

HOLLANDA, H.B. Feminismo em Tempos pós-modernos. In: HOLLANDA, H.B. (Org)

Tendências e Impasses – O Feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro:

Rocco, 1994

JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997

LAURETIS, T. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. (Org.) Tendências e

impasses – O feminismo como crítica da cultura. Rio de janeiro: Rocco, 1994

LINTON, R. O homem: Uma introdução à antropologia. 10ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1976

LOURO, G. L. Gênero, História E Educação: construção e desconstrução. Porto Alegre: Educação e Realidade, vol. 20 n. 2, Jul./dez., 1995

MARTÍN, E. G. Psicologia do encontro: J. L. Moreno. São Paulo: Ágora, 1996

MONTEIRO, D. M. R. Afetividade, Intimidade e Sexualidade no Envelhecimento. In: FREITAS, E. V. et al. Tratado de Geriatria e Gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara koogan, 2002

MORENO, J. L. Psicodrama. 2ª ed. São Paulo: Cultrix, 1978

______. Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. São Paulo: Mestre Jou, 1974 MURARO, R. M. Libertação Sexual da Mulher. Rio de Janeiro: Vozes, 1970

NAFFAH NETO, A. Moreno e seu tempo. In: AGUIAR, M. (Org.) O psicodramaturgo J. L. Moreno, (1889-1989). São Paulo: Casa do Psicólogo, 1990

NERI, A. L. Velhice e qualidade de vida na mulher. In: NERI, A. L. (Org.)

Desenvolvimento e Envelhecimento: Perspectivas biológicas, psicológicas e

sociológicas. Campinas: Papirus, 2001

PRIORE, M. D. Ao sul do corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olímpio; Brasília, DF: Edunb, 1993

ROJAS-BERMÚDEZ, J. G. Introdução ao Psicodrama. 3ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1980

____________. Psicoterapia Psicodramática. São Paulo: Brasiliense, 1979

SAFFIOTI, H. I. B. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1979

SANTOS, M. F. S. Identidade e Aposentadoria. São Paulo: EPU, 1990

SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Porto Alegre: Educação e Realidade, vol. 16 n.2, Jul/dez.1990

SILVA, C. Histórias Híbridas de Uma Senhora de Respeito. São Paulo: Brasiliense, 1984

STOMPKA, P. A sociologia da mudança social. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998

TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1987

VENTURA, Z. 1968 – O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003 VERAS, R. P. O Brasil Envelhecido e o Preconceito Social. In: VERAS, R. P. (Org.)

Terceira idade: alternativas para uma sociedade em transição. Rio de Janeiro:

Documentos relacionados