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Buscou-se, nesta dissertação, uma investigação histórico-social da obra fílmica Bye bye Brasil, de Carlos Diegues. Valorizou-se uma análise que abarcasse: a compreensão da determinação social da obra, de modo a levar em conta a vida de seu autor, o seu processo de gestação (idealização, roteiro e filmagens) e de que forma ela foi vista e tratada pela crítica especializada; a análise imanente, que nos fez percorrer os elementos da obra que nos levaram a refletir sobre a modernização brasileira, a saber, a representação de Altamira como expressão da particularidade desse processo, tal qual a presença disseminadora da TV pelo interior do país como representação da integração nacional; e, por fim, a função social a que o filme atendeu, ou seja, como Bye bye Brasil respondeu ao embate estético-político-cultural que lhe estava subjacente.

Verificamos que a realidade expressa no filme ofereceu grande contribuição para a compreensão da problemática social brasileira em tempos de ditadura militar, pois ela desnuda as contradições que engendraram o processo de modernização desse período.

Pensar os movimentos culturais cinematográficos brasileiros nas décadas de 1960 e 1970 nos permite traçar um panorama dos embates políticos em que a sociedade se debatia e assim compreender aspectos da história brasileira. O nosso objeto de estudo, Bye bye Brasil, foi produzido em 1979, no entanto, não pode ser compreendido de forma avulsa, ou seja, não pode ser visto como um ente desconectado do processo que o gerou. Ele é fruto de reflexões estéticas, políticas e sociais que havia muito vinham sendo germinadas no espírito de Carlos Diegues, que vivenciou e produziu em momentos de movimentações artísticas e políticas.

Constatamos que Bye bye Brasil se presta a uma função social nessa nova conjuntura política e cultural em que vivia o Brasil, a de crítico das bases da nossa modernização e sensível aos dramas humanos da classe trabalhadora – de modo que se coloca a serviço da conscientização social acerca das engenhosas formas de exploração do trabalho. Nosso filme demarca uma postura frente à função do artista na indústria cultural: a tentativa de contribuir para a construção de uma cultura nacional-popular, cuja participação no processo político- social seja parte integrante do caráter ideológico do seu trabalho (pensamento vinculado à luta de classes). Nesse sentido, defendemos a ideia de que este filme tem uma propositura política que se assemelha à do Cinema Novo, muito embora este último já tivesse acabado.

Prosseguindo nas conclusões, inferimos que a expressão da modernização brasileira reside, em síntese, na apresentação da saga do nordestino para a Amazônia, nos dramas humanos vividos pelos trabalhadores e no próprio trajeto percorrido pela Caravana Rolidei, nas estradas do país, mostrando-nos diferentes realidades econômicas e sociais. Nessa viagem pelo Brasil, com essa Caravana, vemos paisagens de cidades modernas com uma enorme quantidade de televisores, automóveis e estabelecimentos comerciais, assim como cidades arcaicas, nas quais as ruas não estão sequer pavimentadas e onde a população sofre com a falta de água. Verificam-se, também, sociabilidades marcadas pelo sagrado, como é o caso da representação de procissões, e pelo profano, como é o caso da representação de prostíbulos. Entretanto, se o filme não trata de qualquer organização política desses trabalhadores, denuncia os antagonismos sociais e o sofrimento humano diante das aporias sociais num tempo de modernização brasileira. É notório que o filme retrata, a partir do sensível, o sofrimento do homem que tem problemas com a terra, seu meio de produção, com a seca e com as políticas empreendidas diante dessa realidade, uma condição social que relega o trabalhador a uma vida miserável.

A história, por sua vez, prova que é inadmissível à lógica do capitalismo que o trabalhador, de forma coletiva, ascenda à posição de proprietário dos meios de produção, nesse caso, a terra. Reside, também, na expressão da integração nacional via televisão e cadeia de rádio que o Ministério das Telecomunicações estimulou na Amazônia, trazendo a instantaneidade da comunicação e minando, em pouco tempo, a cultura regional, seus hábitos, tradições e costumes. Assim como na procura de condições de sobrevivência (pela Caravana Rolidei) no interior do Norte-Nordeste brasileiro, o que para eles era um mercado que ainda não tinha sido absorvido pela cultura de massa. O hostil horizonte das ―espinhas de peixe‖, antenas de TV, os faz percorrer 15 mil quilômetros. Nessa viagem nós percebemos que aquilo que não deixa condições para sobrevivência da Caravana é a mesma estrutura política e econômica que estreita os horizontes de miséria da classe trabalhadora.

Vimos que o filme trata da migração sob essa mesma ótica: as personagens são levadas à migração por motivações econômicas. São retratados dramas de pessoas que partem de seus lares em busca de uma vida melhor, de lugares economicamente desenvolvidos, como é o caso da cidade de Altamira, que constitui expressão da modernização brasileira que imprimiu o desenvolvimento urbano e impulsionou fluxos migratórios para certas regiões. Altamira representa, no filme, a marcha de brasileiros na direção de uma vida melhor, de uma vida próspera, tal como se veiculava nas propagandas defensoras do ―milagre econômico‖. Quando a Caravana Rolidei, finalmente, chega a Altamira, depara-se com televisores por toda

parte, além de rádios, carros e lojas. Encontra, também, uma ―oportunidade rara de vencer na vida‖, com um trabalho braçal em uma multinacional japonesa que procura braços fortes, e, para Salomé, a oferta de se prostituir.

E é assim que o ideário edênico de Altamira se transforma no inferno do trabalhador: com a exploração, prostituição e miséria contraposta à representação inicial da possibilidade de uma boa vida nessa cidade, na qual abundariam alimento, riqueza e prazer. Configura-se, assim, como um sonho que não se efetiva para o homem brasileiro. O desfecho da temática de Altamira se apresenta como expressão da crítica das bases desse ―milagre econômico‖ e particulariza a nossa modernização. Entendemos que a obra expressa o sentido do nosso desenvolvimento histórico, uma vez que explicita a conservação da miséria dos brasileiros a partir da personificação de dramas humanos; frise-se: da classe trabalhadora. Assim, o filme nos auxilia a refletir sobre os destinos humanos frente à entificação do capitalismo brasileiro.

A classe trabalhadora continuava apartada da riqueza que produzia e o que vemos no Brasil dos anos 1970 é ―uma ordem social que se caracteriza pelo extremo afastamento material e cultural, entre si, das categorias sociais, com a grande massa da população reduzida a ínfimos níveis [de vida]‖ (PRADO JR., 2004, p. 240). A inserção e intensificação da produção de bens duráveis, tais como automóveis e eletrodomésticos, impulsionaram a urbanização de muitas regiões e construção de infraestrutura para a produção – estradas para o transporte das mercadorias, hospitais, escolas etc. – e modificaram a sociabilidade. De tal modo que a formação da aliança entre o grande capital financeiro nacional e estrangeiro com o Estado, sob vários aspectos, possibilitou transformações econômicas e, de certo modo, o êxito da modernização da economia brasileira (IANNI, 2004). Grife-se: êxito econômico, e não social, haja vista que deixamos de ser a ―casa-grande e senzala‖ para nos tornarmos a ―empresa, a usina, o palacete e o arranha-céu; mas também o cortiço, a favela‖. Deste modo, configurou-se o respeito às linhas mestras de um ―longínquo passado‖, ainda que com algumas formas aparentemente novas e originais. Isto é:

Um país que no contexto do mundo moderno - é para isso que sobretudo devemos atentar – não representa mais que um setor periférico e dependente do sistema econômico internacional sob cuja égide se instalou e originariamente organizou como colônia a serviço dos centros dominantes do sistema. E em função dessa situação se estruturou econômica e socialmente. (...) Essencialmente, contudo, com as adaptações necessárias determinadas pelas contingências do nosso tempo, somos o mesmo do passado. Senão quantitativamente, na qualidade. Na ―substância‖, diria a metafísica aristotélica. Embora em mais complexa forma, o sistema colonial brasileiro se perpetuou e continua muito semelhante. (PRADO JR, 1978, pp. 239-40)

Semelhante na sua base, haja vista que nossa economia permaneceria fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentares demandados nos mercados internacionais, cuja economia mantinha a vida do país, pagando as importações essenciais à nossa subsistência e ao funcionamento da economia, ―bem como os dispendiosos serviços dos bem remunerados trustes imperalistas — designação clássica das empresas estrangeiras, hoje eufonicamente crismadas de ‗multinacionais‘ —aqui operando‖. Esse foi o panorama da realidade brasileira dado por Caio Prado Jr. no ano de 1977, e que refletia uma ordem social caracterizada pelo extremado alheamento material das categorias sociais. O que se reflete, ―como consequência, e não podia deixar de ser, na mediocridade do conjunto, com a exceção mínima dos reduzidos setores no ápice da pirâmide social‖ (PRADO JR, 1978, pp. 239-40).

O Brasil havia crescido economicamente, mas o ―bolo‖ não foi dividido: as contas desse crescimento é que o foram, pois foi o povo que carregou o fardo da crise subsequente e pagou o ônus desse desenvolvimento:

O ―bolo‖ terá crescido, talvez — e assim mesmo, em boa parte, em mãos estranhas, a ―poupança externa‖, como hoje eufemicamente se diz; mas a ―repartição‖ dele, salvo talvez algumas migalhas que terão caído da mesa do festim de poucos, essa terá ficado, ao que parece, para as calendas gregas. (PRADO JR, 1978, p. 248)

O Brasil se modernizou e esse fato é muitas vezes creditado à ditadura militar: ―a despeito de suas sérias deficiências, o Estado brasileiro, na década de 1970, tornou-se, indubitavelmente, o mais moderno Estado do terceiro mundo‖ (JAGUARIBE apud IANNI, 2004. p. 111). Mas o que se coloca como preponderante é a situação da sociedade brasileira, no que tange à classe trabalhadora, diante desse crescimento. Certamente foram estas classes que pagaram a conta dessa modernização, mas não desfrutaram do resultado de seu trabalho. As desigualdades sociais reiteraram-se, pois ―a mesma sociedade que fabrica a prosperidade econômica fabrica as desigualdades que constituem a questão social‖ (IANNI, 2004. p. 112).

Verifica-se que o ―milagre‖ econômico não alcançou a totalidade da população e nem poderia alcançar, pois seu pilar era justamente a superexploração do trabalho, assim como carregava em sua raiz o germe de seu aniquilamento, na medida em que a ―própria performance de expansão do Departamento III recriou e criou novas e potentes desproporcionalidades, que constituem agora [1977] a esfinge da expansão da economia nacional‖ (OLIVEIRA, 1977, p. 100). Nesse sentido, os mecanismos que sustentaram seu sucesso, para o capital, garantiram seu malogro enquanto plataforma de resolução de problemas econômico-sociais e enquanto ciclo de acumulação, encerrado em decorrência das particularidades de um capitalismo forjado pela via colonial.

Nesse sentido, compreendemos que o filme expressa a essencialidade da realidade brasileira durante o período da ditadura militar (1964-85) na qual o Brasil se desenvolveu econômica, política e socialmente de forma subordinada ao capital estrangeiro. Ao personificar dramas humanos da modernização brasileira, Bye bye Brasil desnuda esse momento da nossa história (do qual ela desponta) ao mesmo tempo que se posiciona politicamente perante aos embates culturais que lhe estavam subjacentes – faz isto carregando a preocupação em transformar dada realidade social. Preocupação que pode ser constatada, por exemplo, na representação crítica de personagens que sofrem por terem que se separar da família, migrando para uma cidade desenvolvida economicamente, em busca de uma vida melhor. Contudo, nosso filme se presta a conscientização da sociedade acerca da miséria que engendra a vida da população. Carlos Diegues, por sua vez, demonstrou ter dado continuidade a um fazer artístico com vistas à reflexão acerca da realidade social brasileira.