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“Não podemos ter a esperança de predizer o futuro, mas podemos influir nele. Na medida em que as predições determinantes não são possíveis, é provável que as visões de futuro, e até as utopias, desempenhem um papel importante nesta construção”.

(Ilya Prigogine)

Quando iniciamos esse processo de investigação, tínhamos em mente que iríamos buscar uma ressignificação de experiências sócio-educacionais vivenciadas por professores e estudantes aprendentes no quadro da educação básica paraense. Só não

imaginávamos que o título se adequasse tão bem aos saberes desvelados, pois grande parte das ricas experiências lembradas pelos nossos interlocutores do Sistema de Organização Modular de Ensino, no momento presente ou anterior a ele, faz parte de um passado bem remoto, de extremas intervenções nas múltiplas realidades das cidades amazônicas; a recrudescência de tais experiências acrescenta-se às nossas reflexões e representa uma maneira de manter acesas as possibilidades de reconstruções de nossas histórias educacionais; nem tão mirabolantes, nem tão ingênuas, mas que faz parte dessa itinerância que não se esgota em si mesma, visto que vislumbra por um projeto político de homem e de sociedade, justo e humano.

Inicialmente nos permitimos constatar, enquanto pesquisadores, que este estudo proporcionou a reordenação conceitual de alguns saberes, e a reelaboração de algumas práticas, habitualmente tidas numa aparente insignificância. Mas, sobretudo, os momentos narrativos transformaram-se num valioso terreno reflexivo com importantes repercussões, pessoais e profissionais na vida dos sujeitos envolvidos, pesquisados e pesquisandos. Essa análise vem dos momentos de introspecção de quem entrevistava, que no exercício auditivo, remetia-se constantemente às suas próprias experiências vivenciadas no ensino modular e no regular; da mesma forma, os narradores mexiam com suas emoções ao falarem de suas histórias pessoais e seus envolvimentos com o projeto modular; ao falarem, refletiam e ao refletirem se auto-analisavam. Lembramos a expressão de surpresa nos seus comentários, (alguns deram o retorno pessoalmente, outros por telefone e/ou por e-mail) ao receberem a transcrição registrada de suas falas:

“Nossa! Não imaginava que tinha falado tanta coisa assim!” (E.2). “Estou impressionada, nem sabia que sabia tanto” (E.1).

“Poxa! Quantas histórias temos acumuladas, dá para escrevermos um livro! (E.5). Essa entrevista me fez rever muita coisa! (E.3)

“Caramba! Olha, vou te confessar que fiz uma verdadeira revisão da minha vida! (E.4)

Na fase do delicado trabalho de interpretação das narrativas, em busca de compreensão das histórias contidas nas vozes traduzidas dos professores, tivemos a percepção da transparente ruptura na trajetória histórica do projeto modular, retrocesso político que o fragmenta em duas sequências: uma até o ano de 2003 e outra a partir

daquele ano. É preciso dizer que essa ruptura foi de total (ir) responsabilidade do governo da época, colocando o destino de centenas de jovens estudantes e professores sob o jugo da insensatez política, de quem considera a Educação como custo e não como investimento; de quem sabe que se trata de um bem público, de um direito social, mas que, por isso, entende que pode ofertá-la sem considerar suas devidas prerrogativas. As mudanças implementadas a partir de então passaram a descaracterizar as ações do ensino modular e deixar para traz toda uma história muito bem traçada de um projeto de ensino que estava dando certo, e que apesar dos problemas, vinha dando conta de resolver, em parte, a responsabilidade do Estado pela educação pública; considerando-se que esse projeto funciona como uma espécie de eixo estruturante da gestão pública Educacional que ambiciona potencializar ações interventivas nessa territorialidade amazônica. bem ampla e complexa. Dentre as conseqüências mais evidentes consta a mudança no perfil dos professores, a dinâmica dos trabalhos desenvolvidos, a ingerência do projeto, em função do negligenciamento administrativo instalado. Isso justifica o fato dos interlocutores dessa pesquisa, ao evidenciarem as maiores qualidades do sistema modular, o fazerem insistentemente com referências ao passado.

Partindo do sentido de que a Educação se constitui historicamente como um campo de luta, esta sempre foi e é parte integrante das ações docentes no projeto modular, e essa luta tornou-se muito mais complexa por se desenrolar em segmentos político- culturais bipolares (Estado e Município), onde as regras de convivência social são frequentemente violadas. Essa bipolaridade funciona como força estigmatizadora da profissão docente: se por um lado, o Estado aniquila com os baixos salários e a inoperância da (in) gestão pública; por outro lado, os municípios oferecem tratamento extremamente desigual para os profissionais que lhes prestam serviços, cabendo normalmente aos professores o pior das partes. Isso fica muito bem evidenciado quando revelam que a residência do professor, cedida pelo município, esbanja precariedade infra-estrutural, enquanto que (às vezes bem ao lado da casa do professor), a residência do médico, do juiz, do advogado (também oferecida pelo município), encontra-se bem equipada, inclusive com antena parabólica, e a do professor não tem muitas das vezes nem televisão. Isso é reflexo da uma cultura medieval hegemônica, que hierarquiza as funções sociais, não pelo valor do trabalho que desenvolvem, mas pelo status quo determinado pela divisão social do trabalho numa sociedade classista.

As entrevistas-narrativas como opção metodológica assumida nesta investigação, também possibilitaram outros achados que nos levaram a empreender uma análise relacional entre os saberes constitutivos no nível de atuação dos professores do projeto SOME (que não é muito diferente dos demais professores), havendo uma exigência profícua de que o conjunto de saberes, de quaisquer natureza, sejam, sobretudo, interconexos. A bagagem experiencial que carregam inclui a prefiguração dos saberes a serem ensinados com os saberes a serem equacionados diante do novo que frenquentemente se lhes apresenta, ou seja, exige-lhes uma conjugação do “o que” ensinar com o “como” ensinar, com a clareza do “pra que” ensinar. O domínio de uma variedade de opções metodológicas e de técnicas de ensino não os torna menos vulnerável às tensões pedagógicas, pois como nos lembram Freire e Nóvoa, ninguém ensina a quem não quer aprender, isso deixa o professor entre o aluno que estuda por opção, por prazer e o que o faz por obrigação familiar ou social. Portanto, na realidade não existe uma receita metodológica cabal a ser seguida, tudo depende da articulação dos saberes apoderados pelo profissional docente e de sua concepção de Educação, para contextos bastante adversativos.

A forma como os professores do ensino modular se posicionam a cada situação nova, associando a busca de resultados aos processos que dão significância ao ambiente de aprendizagem, demonstra as concepções de Educação que mobilizam no exercício profissional, fortemente vinculadas a um viés político-sócio-cultural que nos permitiu compreender a gênese que os atrela ao SOME por tão longo tempo e a ele não economizam elogios, enquanto projeto ousado de inclusão sócio-educacional, apesar de frequente intempérie.

Reiteramos que nossos propósitos investigativos tiveram como norte algumas questões-chaves (item 2.2 deste trabalho), que aqui já foram contempladas, todavia as pontuaremos no sentido de dar mais visibilidade aos resultados obtidos, mesmo tendo a certeza de que as respostas não se esgotam aqui, pois é comum na finalização de uma pesquisa científico-acadêmica, sempre novas indagações se reconfigurarem.

As proposições teórico-metodológicas e epistemológicas que emergiram no resgate das memórias docentes vivenciadas em meio às experiências do ensino modular, indicam que ensinar é profundamente complexo, já nos afirmava Tardif, e essa

complexidade exige do professor um conjunto interativo de episódios que envolvem: valores, crenças, decisões, posicionamentos, aptidões, responsabilidade, compromisso, etc., e uma enormidade de conhecimentos; episódios que na peculiaridade estrutural e operacional do processo de ensino no projeto modular eram favorecidos, a depender de algumas particularidades ideológicas do professor. Isso fica bem evidenciado quando relatam que suas aulas extrapolavam os limites das salas de aulas, para compartilharem com a comunidade os resultados dos fazeres da escola (gincanas, teatro, danças, júri simulado, jornais e rádios comunitárias, etc), não somente como via de mão única, mas (sem perder sua própria autonomia), possibilitando que a comunidade pudesse opinar sobre as ações da escola; quando estimulavam essa mesma comunidade a se posicionar em resgate à sua cidadania; quando assumiam a frente de realizações de mutirões; quando se predispunham a fazer aulas de reforço em horários alternativos visando superar as barreiras limitantes da aprendizagem. Todas essas ações não são muito comuns de serem identificadas nos processos de ensino mais contemporaneamentepraticados.

As teorias, convicções e valores mobilizados na ação de resgatar as experiências que marcaram/marcam as vivências docentes nesse processo de ensino diferenciado, estiveram voltadas para a compreensão dos saberes enquanto elementos essenciais à estruturação da prática docente, e em especial os saberes da experiência que se pressupunha muito presente nas ações dos professores somenses. Na realidade analisamos que esse saber específico (da experiência) é colocado pelos professores no mesmo patamar dos outros tipos de saberes, entretanto mais presentemente os saberes da experiências são compilados nas atividades múltiplas simultaneamente desenvolvidas pelos docentes a cada momento e espaço de aprendizagem, que incluem rotinas, administração do tempo, improvisos, criatividade repentina, enfim, ações que vão se acumulando e se incorporando às suas práticas, constituindo a base pedagógico-metodológica sob a qual o professor se situa.

Os saberes relacionados à prática docente que emergiram entre as memórias dos professores egressos do sistema modular, inseridos hoje no sistema regular se contrapõem insistentemente contra o marasmo a que estão condicionadas as escolas no ensino regular, embora reconheçam que o diferencial em relação ao modular seja significativo, pois envolve superlotação de sala de aula, horário deliberadamente limitado e contraditório aos interesses e necessidades dos estudantes, tempo relacional com os alunos

bem desproporcional; todavia, afora essas questões, o que mais indigna os professores somenses, é a ausência do trabalho coletivo dentro das escolas de ensino regular, o que contrasta com os saberes acumulados desses docentes; isso tanto é verdade que grande parte dos professores egressos do ensino modular, hoje no regular, estão à frente dos trabalhos que se destacam nas escolas por estarem descentrados da sala de aula. São os saberes da experiência causando inquietações.

As motivações que contribuíram para determinar o ingresso, a permanência e o grau de comprometimento dos docentes no sistema modular de ensino, foi muito expressivamente externado por eles, chegando a reconhecerem que inicialmente essa motivação esteve relacionada ao aspecto da vantagem financeira oferecida pelo projeto, entretanto outras foram adicionadas, como a dedicação exclusiva, a qualidade do relacionamento com os alunos, em função da maior presença do professor na escola/comunidade, o número mais adequado de turmas/alunos, e, sobretudo, as múltiplas possibilidades de se dar sentido e significado mais completo ao ato educativo.

Reportando-nos aos objetivos que ganharam projeção nesse estudo, podemos com muita propriedade confirmar suas concretudes, especialmente por termos conseguido catalisar inúmeras diferenciações nas práticas pedagógicas do professorado do ensino modular, fundamentais para efetivamente favorecer a inclusão sócio-educacional; essas múltiplas práticas se sedimentam a partir do desenvolvimento de projetos paralelos e associados ao ato pedagógico mais formal do ensino e da aprendizagem, que no ensino modular tornou-se práxis. São inúmeros projetos associados ao trabalho docente.

Quanto às experiências de inclusão sócio-educacional que os docentes do

SOME consideram relevantes para a melhoria da qualidade dos processos educacionais praticados nas cidades paraenses, incluem: o trabalho educacional bem mais próximo da história de vida dos aprendentes, o envolvimento da família e da comunidade como co- participantes do processo, os projetos pessoais dos docentes imbricados com os projetos sócio-culturais dos contextos da escola. Evidenciam ainda que o compromisso profissional docente não pode se dissociar da valorização social do trabalho do professor, meta pela qual se encontram sempre imbuídos a lutar para atingi-la.

As histórias reveladas e refletidas pelos interlocutores desse estudo nos permitiram fazer uma descrição do perfil dos professores somenses, inclusive percebendo o grau de comprometimento ideológico desses profissionais e as condições sócio-emocionais que se lhes apresenta cotidianamente. Fatores oriundos da criação familiar, da formação profissional, das relações com o meio, constituíram seus valores e saberes, sem os quais dificilmente conseguiriam se manter por muito tempo num projeto como o sistema modular, cuja característica, interfere demasiadamente na trajetória de vida pessoal dos seus docentes, proporcionando a estes muitas possibilidades, mas, não obstante, tirando deles outras tantas. Longe de qualquer exemplo de heroísmo, são simples, são frágeis, mas também guerreiros, ousados e comprometidos com os sonhos de se formar um novo homem e de se construir um mundo melhor. Isso está tranquilamente caracterizado nas formas de atuação desses docentes que abstraímos nos seus dizeres, cujos percursos são marcados por inúmeros percalços; todavia, não lhes faltam motivações sustentadas especialmente pelas já perceptíveis intervenções nos próprios cenários sociais das comunidades em que o sistema modular vigora ou vigorou por certo período de tempo (tempo de formação de uma turma do ensino médio – três anos).

No limiar das últimas passadas nas construções desse estudo, identificamos o Sistema de Organização Modular de Ensino no centro de um novo debate: o interesse da gestão pública atual, de transformá-lo em modalidade de ensino. Tudo indica que com grande aceitação de professores e técnicos do SOME, afinal, com tantos anos de uma história bem sedimentada no campo educacional paraense, uma mudança no patamar de projeto, dependendo do direcionamento e tratamento, do ponto de vista das políticas públicas a serem implementados, poderá dar um novo e melhor sentido às práticas sócio- educacionais e ao papel do professorado desse, ainda, projeto de ensino.

Ao finalizarmos essa produção, não de fato a concluindo, porque questionamentos e novos desafios tendem a se desdobrarem, remetemo-nos ao percurso teórico-epistemológico que nos fez trilhar em busca de respostas às nossas pertinentes indagações; e revivemos os momentos de auto-análise que o exercício oral-auditivo nos fez experimentar. Nesse exercitar elegemos novos saberes a comporem nossa contínua formação, a apontar novas itinerâncias, no limiar, assinalado por Nóvoa, da construção de uma teoria da pessoalidade inserida numa teoria da profissionalidade.

“Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas”. (José Saramago)

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