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ANALISANDO AS NARRATIVAS: ressignificação das experiências docentes

A) O saber-ser com as marcas do espaço-tempo:

televisão?”

“Nesse período estou numa escola grande, do município, uma escola bem estruturada, mas que ainda hoje não tem uma sala de informática, onde os nossos alunos possam utilizar, pesquisar, fazer seus trabalhos dentro das normas técnicas, ou seja, poderia ser como uma coisa básica como hoje acontece no regular”.

4.2- Cruzando dados e Intercambiando Experiências:

A) O saber-ser com as marcas do espaço-tempo:

Uma das nossas expectativas, ao ter definido o critério de dez anos de

trabalho no SOME, para selecionar os professores a serem entrevistados, era que, dentre os narradores, pudéssemos lidar com profissionais que tivessem vivido experiências em diferentes tempos da história e espaços sociais variados, para poder interpretá-los relacionados a um determinado contexto histórico-social, do qual não podemos ser desvinculados.

Nesse sentido, nos sentimos contemplados nessa expectativa, pois os entrevistados nasceram entre os anos de 1953 e 1973; cursaram a graduação no período de 1980 a 1993; e compuseram o quadro profissional do modular no período de 1985 a 2003/2009. Fazendo uma correlação desses períodos com os acontecimentos históricos que marcam essas épocas, identifica-se que a adolescência e a juventude desses professores atravessaram um cenário de grandes mudanças sociais, particularmente no Brasil, mas não muito diferente do que acontecia no mundo, ainda conseqüentes da segunda guerra mundial; começaram a se entender “pessoa” em pleno apogeu da ditadura militar (pós-64), num quadro de complexa realidade social, onde a cultura brasileira passou por várias transformações; períodos de acentuadas diferenças regionais. No Pará foi um período de crescimento dos confrontos da sociedade civil organizada com as esferas do poder, reflexos da censura, da tortura, do controle, da opressão e da repressão ao comportamento humano; os conflitos de terra, as emboscadas e o trabalho escravo; a forte influência de

religiosos católicos ligados à teoria da libertação na organização da luta dos trabalhadores no campo; o embate político era inevitável. Na educação não foi diferente, sofria fortes influências desse sistema ditatorial, as decisões eram sempre tomadas de cima para baixo; constantes reformas educacionais; ampliação dos cursos de preparação para o magistério; a profissionalização da carreira de professor; as instituições de ensino superior aglutinavam lutas internas e os estudantes se organizavam nas lutas por liberdade e democracia nas instituições de ensino, contra a presença da polícia armada dentro das universidades, por melhores condições de ensino, pela ampliação do número de vagas e de cursos.

Associada a esse panorama histórico está a origem social dos narradores, que tem suas raízes situadas entre os segmentos sociais dos menos favorecidos (classe baixa), portanto, relacionadas frequentemente com episódios de luta por melhores condições de vida, por moradia, escola e trabalho; setores sociais que constroem na luta seus instrumentos de busca pela superação dos sacrifícios da vida impostos socialmente a eles; e, vêem na educação escolar seu maior aliado.

Habitaram na capital, Belém, e em cidades do interior (E.2 e E.5), mas que acabaram migrando para a capital em busca de melhores condições de vida; na perspectiva dos estudos e do trabalho; nessa época, se o ensino médio não se materializava em muitos municípios, muito menos havia possibilidade de acesso a curso superior, as instituições de ensino se concentravam na capital paraense e alguns grandes municípios (Santarém, Marabá, Altamira, etc.), porém com o número de cursos bastante limitado. Todos os entrevistados cursaram a educação básica na escola pública e a graduação em universidades públicas, porém em instituições diferentes; E.5 formou-se pela Universidade Estadual do Pará, enquanto os demais pela Universidade Federal do Pará.

Esses contextos com os quais os narradores, de alguma forma, se relacionaram, devem ter exercido influência nas suas constituições identitárias, tanto de ordem pessoal como profissional. Essas influências encontram-se refletidas nas suas concepções sobre a dimensão da docência, nos seus posicionamentos no trabalho e no engajamento com os processos de organização dos cidadãos. Tudo que fazem hoje parece dar um sentido de completude a experiências remotas pelas quais passaram, pois não conseguem desvincular a atuação profissional das lutas sociais, nem que seja, somente no

“corpo-a-corpo” com os aprendentes, fazendo fortes apelos á conscientização destes, entrecruzando conteúdos programáticos de suas disciplinas com os acontecimentos e condições sociais vigentes desses protagonistas. Na fala de E.5 transparece bem essa posição:

“...nós formamos muitas lideranças nas comunidades e como percebemos, os movimentos sociais que nós vemos estruturados em certas localidades, boa parte deles tem sua origem diretamente ligada a esse trabalho que o ensino modular tem no interior do Estado, então a organização político-social dos nossos alunos, que hoje são lideranças, que hoje na verdade são profissionais nas escolas que atuam é um reflexo da inclusão social realizada pelo modular.”

Da mesma forma E.1 expressa essa concepção:

“...contribuimos para a transformação das mentes para reivindicarem aquilo que lhes é de direito,(...) você começa a despertar a consciência crítica dos alunos e a incomodar o poder dominante (...) o melhor resultado do trabalho do modular é ver a mudança de comportamento da população, as comunidades passaram a se organizar para reivindicar seus direitos, a se manifestar contra as formas de opressão, isso só quem passou alguns anos indo pra essas comunidades pode perceber essas mudanças”.

Também E.3 relata um episódio que tem a ver com esse posicionamento, sua equipe convocou certa vez uma equipe de reportagem de uma TV local para fazerem denúncias sobre o sacrifício que os alunos faziam para ir e vir à escola depois de uma jornada de trabalho pesado, remavam cerca de uma hora e meia, um problema que o projeto do transporte escolar, financiado pelo MEC32 resolveria; a reportagem foi realizada

só que nunca foi ao ar; indignados os professores convocaram a comunidade e disseram:

“vamos todos para Abaetetuba, quem quiser ir vai lutar pelos seus direitos, porque isso que está acontecendo não vai sair na imprensa, sabemos o motivo, mas o que vamos fazer vai ter que sair; e fomos, pra surpresa nossa, porque ninguém é liderança política, nem liderança comunitária, o porto tava cheio de 32 Ministério da Educação e Cultura.

barco, de tudo quanto é jeito, barquinho, barcão, arrumaram tudo, batelão de olaria, nós fizemos umas das maiores manifestações que tinha em Abaetetuba (...) todos os professores do modular estavam presentes”. (E.3)

. A relação familiar é uma referência em suas formações, entretanto mais vinculada à presença da mãe, que aparece nas falas de E.1, E.2, E.4 e E.5, como a maior incentivadora dos filhos nos estudos. A única entrevistada que destoa totalmente dessas falas é E.3, cuja família não representa nenhuma referência contribuitiva à sua formação como pessoa. E.1 diz:

“quem me incentivou a estudar foi minha mãe, meu pai nunca me incentivou a estudar, ele era alcoólatra na época [...] minha mãe que era lavadeira e não saiu de perto de mim um minuto, mesmo analfabeta ela entendia que eu ia em frente”.

Seguindo o mesmo sentimento E.2 afirma:

“Minha família sempre foi a minha mãe, ela sempre dizia que pobre só cresce através do estudo. Minha mãe tinha pouco estudo, mas sempre incentivou os filhos a estudarem, eu e meu irmão”.

Com E.4 não foi diferente:

“nunca tive pai presente, só minha mãe e os meus irmãos, a minha mãe não tem nenhuma formação, estudou só até o primário, mas eu via assim, não foi a minha mãe que me influenciou, ela sempre me incentivou a estudar, mas eu procurei individualmente mesmo em me esforçar, até a ingressar numa faculdade”.

Um fato interessante é a condição de escolaridade das mães, mulheres que pouca relação tiveram com a escola e os estudos, cumprindo o papel familiar e materno de incentivar seus filhos a estarem inseridos em processos educacionais; não nos admira o fato do incentivo, porque esse é um dever de toda mãe, de todo pai, muito embora

nem todas e todos o cumpram, mas, nos chama a atenção a imagem dessas mães que ficam contidas nas histórias dos filhos; E.5, que é órfão de pai, chega a destacar o grau de importância da presença da mãe na sua vida,

“minha formação tem relação com a minha família [...], fui educado por uma mulher que foi pai e mãe, sempre foi minha referência, por isso eu tenho toda uma observação, muito cuidado, carinho, não com aquele ver da fragilidade, mas da docilidade e também da fortaleza da mulher [...] minha mãe abdicou da juventude dela [...], pra nos criar, com muita determinação, sempre foi exemplo [...] mulher e mãe, foi dela as primeiras lições de vida, foi ela quem fez a gente e não a escola; [...]a família é a base do que é certo e do que é errado, ensina o que é convivência, o que é irmandade, o que é amor. Eu posso brigar contigo, eu posso discordar de ti, mas existe um limite entre as coisas, entre eu descordar de ti mas também não posso deixar de ver o que tu tens de bom, isso a gente aprendeu em casa”.

O que está contido na fala de E.5 é o que hoje perde sentido nas relações familiares; essa lição inicial de vida tem sido cada vez mais renegada no convívio familiar, e os reflexos disso nós sentimos nas escolas, e mais, a família repassa para a escola a responsabilização pelas lições dos valores essenciais à convivência em sociedade, que são de sua competência ensinar (da família).

Esses sujeitos estudaram, formaram-se, tornaram-se profissionais, ascenderam socialmente passando para a classe média, ainda que estejam na sub-camada dessa classe, ao que chamamos classe média baixa, ajudam seus familiares ou representam a própria sustentação da família. Referem-se à profissão e à formação como algo de grande significado em suas vidas, através da qual redefiniram seus caminhos, provocaram rupturas, e consolidaram relações sociais, da mesma forma passaram a se sentir também interventores nos rumos da vida de outros, chamando para si essa responsabilidade, concorrendo com tantas outras formas de intervenções. Manifestam a convicção de que a Educação provoca mudanças individuais e sociais; tal como Brandão (1985) nos remete a entender que os professores assumem papel de destaque na vanguarda

de condução da história dos indivíduos e da sociedade, representam o instrumento ideológico que induz a construção de opiniões, tudo depende de como ele direciona.

No campo profissional, alguns têm suas experiências totalmente no magistério (E.2, E.3 e E.5), outros tiveram experiência em outras áreas (E.1 e E.4); antes de ingressarem no SOME alguns trabalharam no magistério (E.3) outros trabalharam em atividades fora do magistério (E.1 e E.4) e para outros o SOME foi a primeira experiência de trabalho (E.2 e E.5); O tempo de atuação dos narradores no magistério compreende de 14 a 24 anos, o que tem menos tempo é E.4 (14 anos). Esse tempo de trabalho merece destaque porque, a base dos saberes profissionais se constrói, também, no e com o tempo (Tardif, 2008); não se trata simplesmente de um tempo cronológico, não é o tempo que passa, mas o tempo que se passa, tempo literalmente vivido. (E.3) reflete isso, pois já acumulava cerca de treze anos de trabalho docente na rede privada, mas ao se deparar com uma nova realidade de trabalho também na docência, sentiu o impacto:

“além da distância, encontrar tudo novo, pra mim foi um choque; particularmente vivia numa realidade distante, num mundo particular, onde por exemplo as salas de aula eram todas bonitas, todas climatizadas, os alunos um outro perfil, uma outra situação (...) o projeto modular é uma realidade bem diferente, uma outra realidade, conheci um Estado que eu não conhecia. Acho até que foi um erro do projeto, mandar uma pessoa nova logo para uma situação problemática (...) a transamazônica, no município de Novo Repartimento” (E.3)

Esse novo tempo exigiu de (E.3) o aprendizado de novos saberes e a reorientação do seu saber-fazer. O tempo do qual estamos falando refere-se aquele que é significativo no sentido das experiências vividas pelos professores, associadas a acontecimentos, a fatos, que corroboram para o aprendizado do trabalho docente; esse aprendizado é sempre mais complexo no início da carreira, constatação feita por Tardif (2008), que aqui também se constata na fala de E.1: “quando comecei a trabalhar não sentia isso,33 não cheguei a pensar formas alternativas para uma realidade tão precária;

depois que se passaram uns três anos, que eu já estava menos emotiva, comecei a ver que 33 Está se referindo à capacidade criativa; não percebia que uma realidade tão cheia de necessidades, exigiria

eu podia abraçar o mundo, que não era um bicho de sete cabeças”. Esse tempo de transição de E.1 da discência para a docência, associado à desestabilidade emocional provocado pelo distanciamento familiar, e como tudo que se apresentasse era novo, faz uma forte exigência da presença do profissional em atendimento ao chamado, numa mistura epistêmica que só com o tempo se dará conta do quanto é capaz, tal como está na reflexão aqui provocada:

“essa epistemologia corresponde, assim acreditamos, à um

trabalho que tem como objeto o ser humano e cujo processo de realização é fundamentalmente interativo, chamando assim o trabalhador a apresentar-se “pessoalmente” com tudo o que ele é, com sua história e sua personalidade, seus recursos e seus limites” (Tardif (2008, p.111).

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