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Esta dissertação buscou, através dos tensionamentos entre Psicologia, Loucura e Justiça, analisar as relações de saber e de poder implicadas na produção de documentos escritos por psicólogos no Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso, o manicômio judiciário do estado do Rio Grande do Sul. A partir de uma aproximação de duas propostas metodológicas, a arqueologia e a genealogia, constituiu-se a articulação arqueogenealógica que opera como norte metodológico para a análise do material encontrado no campo de pesquisa.

Fizeram parte do escopo deste estudo quarenta e três documentos escritos produzidos por psicólogos circunscritos entre os anos de 1989 e 2016. A seleção do material foi precedida pelo exame de duzentas e sessenta e três papeletas administrativas catalogadas no Arquivo do Instituto Psiquiátrico Forense. Os documentos selecionados foram digitalmente transcritos e posteriormente analisados.

Alguns marcadores históricos foram tomados como acontecimentos em um horizonte de problematizações que envolvem as relações da psicologia com o manicômio judiciário. Dentre estes marcadores temos as aprovações das leis estadual e nacional da Reforma Psiquiátrica, além de Resoluções e Normativas do Conselho Federal de Psicologia que tratam da atuação do psicólogo em estabelecimentos carcerários, assim como regulamentações a respeito da produção de documentos escritos por estes profissionais.

Junto a isso, procurou-se precisar o início da prática de produção de documentos escritos por psicólogos, na busca de identificar como o discurso psicológico articula um regime de verdade para responder à demanda de produzir um registro a respeito do louco criminoso. A resistência do Manicômio Judiciário à reforma psiquiátrica, a busca da compreensão dos efeitos de normativas do órgão regulador da profissão no cotidiano de trabalho dos psicólogos e a construção de regimes de verdade articulam as questões que dispararam esta pesquisa.

A partir disso, realizou-se um estudo bibliográfico com o intuito de construir um campo problemático que permitisse compreender as condições de possibilidade para o surgimento e consolidação de práticas como a produção de documentos

escritos por psicólogos a respeito de loucos criminosos no contexto dos manicômios judiciários. Para tal, buscou-se produzir uma leitura a respeito da constituição e generalização de práticas jurídicas, em especial o estabelecimento de determinada racionalidade penal partir do final do século XVIII. Posteriormente, estudou-se o constrangimento deste regime de verdade e de suas práticas frente ao fenômeno do crime sem razão e a articulação de um campo de imbricação juridico-psiquiátrica frente a este problema.

A partir disso, passou-se à análise dos códigos penais brasileiros, fundamentalmente no que tange aos critérios de definição de imputabilidade penal e aos debates mobilizados em torno desta noção no país. Esta análise foi acompanhada de um olhar lançado sobre o surgimento dos primeiros manicômios judiciários do país, com atenção específica à criação do Manicômio Judiciário do Rio Grande do Sul, em 1925.

Após isso, foram retomados os marcadores históricos destacados como pontos fundamentais no horizonte de problematizações desta pesquisa. A Reforma Psiquiátrica – entendida como um campo de tensionamentos políticos, institucionais e sociais – é tomada a partir de suas relações com o campo de pesquisa, a fim de produzir uma leitura a respeito dos avanços, entraves, resistências e efeitos da Reforma Psiquiátrica nas práticas que operam no manicômio judiciário. Posteriormente são abordadas, em uma perspectiva histórica, as diversas Regulamentações e Resoluções do Conselho Federal de Psicologia a respeito da atuação do psicólogo no sistema prisional e a respeito produção de documentos escritos por psicólogos, sobretudo a produção de documentos destinados ao poder judiciário.

A partir da leitura e análise dos laudos, foi possível localizar cinco momentos de organização e legitimação desta prática. O primeiro, de 1989 a 1992, coloca-nos frente a uma prática difusa, de contornos incertos. Entretanto, é possível identificar a constituição de um certo regime de verdade em torno de problemas localizados na área emocional dos examinandos. Com base em uma articulação entre problemas no desenvolvimento, falta de controle dos instintos e perigo, as várias anormalidades dos loucos em conflito com a lei são tomadas desde um plano explicativo que

produz uma inteligibilidade tecnico-científica que faz operar o perigo através das anomalias do desenvolvimento.

Num segundo momento, entre 1993 e 1996, encontramos Laudos Psiquiátricos-Legais produzidos e assinados por psicólogos. Aparece um certo mimetismo da produção de psicólogos em relação aos tradicionais exames realizados pelo campo psiquiátrico pericial do IPF. O discurso psicológico passa a operar através da apropriação de uma terminologia biomédica, incorporando o modelo de documento psiquiátrico e sua nomenclatura. Surge, neste momento, um regime discursivo marcadamente disciplinar, que opera fundamentalmente através da vigilância e relato do cotidiano institucional dos pacientes.

Posteriormente, entre 1996 e 2001, temos o retorno dos modelos de avaliação psicológica e psicodiagnóstico, com sua consolidação como prática corrente e privilegiada entre psicólogos. Neste ponto, rearticula-se o dispositivo que opera através das relações entre desenvolvimento, instinto e perigo. Reorganiza-se, dessa maneira, o jogo explicativo que desvela o examinando, mostrando quem ele é, como age e por quais razões age.

Entre 2004 e 2009 encontramos, aos poucos, o encadeamento de um novo regime discursivo. Este regime incidirá profundamente sobre a conduta do paciente, além de ser composto por uma espécie de exame de consciência e no estabelecimento de certas referências que estabelecem um bom caminho pelo qual se deve conduzir o paciente à desinternação. Esta espécie de modulação do poder pastoral opera como um poder de cuidado, um poder que opera como intermediário para o alcance de um objetivo, agindo através de uma função reflexiva do bem conduzir-se.

Finalmente, entre 2010 e 2016, é possível apontar certa heterogeneidade e hibridismo entre estas três operações que organizam o campo discursivo e a verdade psicológica no manicômio judiciário: a anormal falha no desenvolvimento como vetor explicativo, a vigilância e relato como dispositivo disciplinar e o bem conduzir-se como modulação pastoral. Ora amarrados e operando no mesmo documento, ora funcionando isoladamente, estas três operações apresentam-se como agentes do discurso psicológico.

Destaca-se, por fim, que a hipótese inicial a respeito dos efeitos que poderiam ser produzidos pela aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica e pela publicação de Resoluções a respeito da atuação de psicólogos no sistema prisional é falseada pela análise dos documentos escritos produzidos por psicólogos. Não são identificados efeitos contundentes destas mudanças legislativas e normativas na atividade cotidiana dos psicólogos no contexto do manicômio judiciário. Não obstante, ressalta-se os efeitos produzidos por medidas de desinstitucionalização tomadas pelo Juiz responsável pela execução e acompanhamento processual das medidas de segurança em meados de 2006.

Desta forma, apontamos para uma pista levantada por esta pesquisa: o estudo e compreensão de ações e intervenções locais como potenciais dispositivos de desinstitucionalização do manicômio judiciário e de desestabilização de práticas cristalizadas neste espaço.

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