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Foucault (2001) destaca a produção do gênero discursivo que dará conta da imbricação do campo jurídico com o campo psiquiátrico, afirmando que esta produção discursiva possui de uma só vez, três propriedades:

A primeira é poder determinar, direta ou indiretamente, uma decisão de justiça, que diz respeito, no fim das contas, à liberdade ou à detenção de um homem. No limite […], à vida e à morte. Segunda propriedade: de onde lhes vem esse poder? Da instituição judiciária, talvez, mas eles o detêm também do fato de que funcionam na instituição judiciária como discursos de verdade, discursos de verdade porque discursos com estatuto científico, ou como discursos formulados, e formulados exclusivamente por pessoas qualificadas, no interior de uma instituição científica. Discursos que podem matar, discursos de verdade e discursos […] que fazem rir (FOUCAULT, 2001. p. 7)

Ao analisar as formas penais, a verdade jurídica e o lugar da prova nos séculos XVIII e XIX, Foucault (2001) aponta para o fato de que algumas provas detêm em si efeitos de poder e valorações maiores do que outras, inclusive a despeito de sua estrutura racional própria. O autor afirma que este efeito de poder dá-se em função do sujeito que as produz, indicando que os relatórios dos peritos psiquiatras “são enunciados com efeitos de verdade e de poder que lhes são específicos: uma supralegalidade de certos enunciados na produção da verdade judiciária” (FOUCAULT, 2001, p. 14).

Foucault (1982a, 2001) identifica a produção destas formas discursivas alinhadas a uma reconfiguração dos dispositivos de poder, com a produção de novas tecnologias de controle. Para tal, toma as estratégias de controle desenvolvidas frente ao problema da lepra e ao problema da peste. Aponta a produção de instrumentos positivos de controle durante a grande peste, onde, no caso, não são mais dispositivos de exclusão que serão ativados, mas sim tecnologias disciplinares de controle que se capilarizam no tecido social. Produz-se uma reorganização de poder onde não há mais dentro ou fora, não há exterioridade, todo o conjunto da população está inserido nesta nova rede de controle e vigilância.

Dessa forma, é caracterizada a passagem para a sociedade disciplinar, onde “surge uma das teses fundamentais da genealogia: o poder é produtor de

individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber” (MACHADO, 1982, p. 19). Compreendemos, dessa forma, o dispositivo psiquiátrico-penal como um dispositivo constituído junto a este deslocamento das estratégias de poder e de invenção de tecnologias positivas de poder.

O indivíduo a ser produzido neste regime de verdade não é exatamente – ao menos não somente – o indivíduo perigoso, nem mesmo o sujeito doente, mas sim o indivíduo eventualmente perigoso. A aproximação das noções de perversão e perigo funciona como uma espécie de ponte a ligar o discurso psiquiátrico ao discurso jurídico. Esta articulação permite localizar o perigo eventual inscrito no sujeito perverso:

a noção de “perversão”, de um lado, que permite costurar uma na outra a série de conceitos médicos e a série de conceitos jurídicos; e, de outro lado, a noção de “perigo”, de “indivíduo perigoso”, que permite justificar e fundar em teoria a existência de uma cadeia ininterrupta de instituições médico- judiciárias (FOUCAULT, 2001, p. 43)

Temos, então, elementos para circunscrever um discurso do medo que imediatamente liga-se a um discurso moralizador, normativo. É necessária a mobilização de tecnologias específicas para operar a correção do indivíduo anormal a fim de eliminar a fonte de perigo, em defesa da sociedade. Saímos de um registro jurídico-natural para chegarmos a um registro que é “jurídico-moral; uma monstruosidade que é a monstruosidade da conduta” (FOUCAULT, 2001, p. 92).

Neste contexto, esta formulação discursiva cumpre uma função específica, já que busca repetir a infração, em um movimento tautológico, para marcá-la como traço do indivíduo. Esta operação ganha sua formalização justamente através das técnicas de exame, local privilegiado de superposição das relações de poder e saber:

O exame permite passar do ato à conduta, do delito à maneira de ser e de fazer a maneira de ser se mostrar como não sendo outra coisa que o próprio delito, mas, de certo modo, no estado de generalidade na conduta de um indivíduo (FOUCAULT, 2001, p. 20)

Por conseguinte, desloca-se também o nível de realidade da infração, que passa de infração a uma irregularidade, um desvio que pode ser fisiológico, psicológico, moral, entre outros.

Ao analisar documentos produzidos por peritos entre 1955 e 1974, Foucault (2001) aponta-nos, através da apresentação de tais documentos – além das propriedades decisórias e científicas destas produções – o caráter risível de seus conteúdos, que apresentam uma sustentação basicamente moral. Podemos observar que o campo da perícia médica e psicológica, através do desenvolvimento de novos instrumentos e práticas busca afastar-se deste caráter risível através da formulação de instrumentos que objetivam o sujeito através de uma mensuração de sua personalidade, vivência e corpo.

Os instrumentos de avaliação psicológica e diagnóstico parecem vir atender a esse propósito, integrando-se a uma rede de discursos e práticas que objetivam “mostrar como indivíduo já se parecia com o seu crime antes de o ter cometido” (FOUCAULT, 2001, p. 24). Disso decorre uma construção parapatológica que identifica defeitos morais, de adaptação, de convivência e socialização presentes no sujeito que passam a justificar sua conduta e, mais do que isso, permite situar a ação punitiva do poder judiciário em um conjunto de técnicas de transformação dos indivíduos, organizado em um dispositivo de normatização dos corpos.

Cada sociedade tem seu regime de verdade, uma política geral de verdade que determina

os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros […] as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1982a, p. 10)

Dessa forma, o conjunto de práticas e instrumentos de avaliação psicológica parece ocupar lugar estratégico nesta maquinaria de produção de um regime discursivo a respeito da normalidade, já que passa a produzir construtos que delimitam a expressão de comportamentos adequados e oferece subsequentemente os instrumentos que, além de atestar o enquadramento dos indivíduos a este campo de existências legítimas ou ilegítimas, passam a localizar no próprio indivíduo a natureza de sua inadequação.

6. CÓDIGOS PENAIS BRASILEIROS, IMPUTABILIDADE E OS PRIMEIROS

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