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“Viver não é? É muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é viver mesmo”. Guimarães Rosa, 1994

As experiências de sofrimento narradas por nossos colaboradores revelaram a vulnerabilidade da existência humana no empenho de ser si mesmo. O mundo do trabalho mostrou ser propício para o sofrimento, que surge a partir de um estranhamento na convivência e nos afazeres. As narrativas trouxeram palavras carregadas de sentido que apresentaram o sofrimento como aquilo que fere, que isola em uma ilha, que decepciona e martiriza. Seguindo o pensamento de Heidegger (2009), o sofrimento restringe as possibilidades de existir, pois a concretização do cuidado ontológico dá-se nos modos da privação. Assim, ferido, as ocupações com as coisas e a convivência ficam restritas, o gesto não aponta mais para longe. Igualmente a singularidade esvazia do vigor, fica esperando chegar o novo sentido encontrado pelo sofrimento. O esvaziar, para Heidegger (2009, p. 44),

“é o livre não ocupado”.

Além disso, compreendemos que o sofrimento relatado por nossos colaboradores descortinou a conjuntura que se dá no trabalho na instituição judiciária, revelando a importância de uma parada demorada sobre os sentidos apontados nas narrativas. Heidegger

(1927/2006, p. 134) concebe a conjuntura como “o processo ontológico de possibilitação da integração dos diversos modos de ser no mundo”. Assim, dar uma conjuntura implica nas

possibilidades do ser do conjunto instrumental nas destinações do “para que” da serventia e o

“em que” da possibilidade de emprego. Seguindo esse pensamento, compreendemos que as

destinações constituem os sentidos do trabalho. E partindo das narrativas, compreendemos que os sentidos estão esquecidos nos afazeres e na convivência. Seguindo o entendimento de Heidegger (1927/2006) de que o homem encontra seu ser naquilo em que se ocupa, o esquecimento do sentido de ser servidor público o conduz ao empenho desenfreado nas

tarefas, em busca do sentido de ser. Assim, o servidor, quanto mais abarrotado de tarefas, mais se distancia do seu ser. Além do mais, a convivência no trabalho igualmente se dá nos modos deficientes e indiferentes.

Contudo, o sofrimento, por restringir a abertura para a compreensão e limitar as possibilidades nas relações com o mundo, abre o mundo àquele que sofre. Com o mundo aberto, sem relações de sentido, diante do vazio, no sentido do “livre não ocupado” citado por Heidegger (2009, p. 44), aquele que sofre só resta a si mesmo, como possibilidade. Esse é o momento que se descortinam as possibilidades de resignificações de mundo, de apropriação do si próprio, e de renovação dos modos de convivência.

Ora, cada experiência é singular. A multiplicidade, como nos mostra Dutra (2013, p.

207), é a “que nos constitui, que se torna possível a abertura às distintas singularidades e alteridades do outro”. Nesse entendimento, a multiplicidade e singularidade são copertinentes.

Dessa forma, vislumbra-se uma possibilidade de se procurar outro sentido que torne a convivência no mundo do trabalho ser digna de ser vivida, pois o antigo já se perdeu no esquecimento.

Porém, a procura é uma tarefa espinhosa, tendo em vista a historicidade na qual se encontra a instituição judiciária. Inspiradas em Heidegger (1954/2012), entendemos que ali vige o que a tecnologia ou o pensamento que calcula concebe. Por isso, o novo sentido para ser servidor público não será encontrado nos caminhos possíveis da instituição que calcula, pois, como analisamos no tópico sobre a técnica, a conjuntura que se dá na instituição é discreta em relação aos sentidos do ser. O sentido ou a sua falta, que faz sofrer, não é percebido pelos olhos que controla e quer alcançar metas. Para Heidegger (1954/2012, p.58),

“pensar o sentido tem outra essência do que a consciência e o conhecimento da ciência”.

Pensar o sentido é mais do que ter consciência, por isso, não se consegue esse pensamento com o controle da técnica.

O sentido pode ser encontrado em outro caminho, naquele cujo solo é propício ao pensamento que permite a reflexão e meditação. Esse pensamento, por sua vez, evoca palavras que mostram o lado do real que fica velado ao transitar pelo mundo da técnica. O caminho que medita acolhe a palavra que fala como poesia, que como tal, chega ao homem como apelo que acena o sentido. Seguindo esse pensamento, trazemos parte da letra da

música “Redescobrir”, de Gonzaguinha e cantada por Elis Regina, que fala da reflexão como

um processo de desencobrimento da essência do ser, nesse mundo da técnica. Ela fala da circularidade do pensamento, da magia, mistério e beleza da existência plena de sentido, do trabalho, ocupação, como dança e da convivência que pode ser ressignificada, possibilitando o ser-com no modo da consideração;

Redescobrir

Como se fora brincadeira de roda Memória!

Jogo do trabalho na dança das mãos Macias!

O suor dos corpos, na canção da vida Histórias!

O suor da vida no calor de irmãos Magia!

Como um animal que sabe da floresta Memória!

Redescobrir o sal que está na própria pele Macia!

Redescobrir o doce no lamber das línguas Macias!

Redescobrir o gosto e o sabor da festa Magia!

Vai o bicho homem fruto da semente Memória!

Renascer da própria força, própria luz e fé Memórias!

Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós História!

Somos a semente, ato, mente e voz Magia!

Não tenha medo meu menino povo Memória!

Tudo principia na própria pessoa Beleza!

Vai como a criança que não teme o tempo Mistério!

Amor se fazer é tão prazer que é como fosse dor Magia!

Apesar de ser um pensamento que exige paciência e cuidado, como a que tem o jardineiro quando planta uma muda de roseira, de acordo com o filósofo, todas as pessoas podem cultivar esse tipo de pensamento. Pois pensar aquilo que é digno de ser pensado é como caminhar de volta à morada do ser, ao nosso ser. O caminho de volta para a casa é familiar e habitual.

O Homem é o ser que pensa, ou seja, que medita. Não precisamos, portanto, de

modo algum, de nos elevarmos às ‘regiões superiores’ quando refletimos. Basta

demorarmo-nos junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora; na presente hora universal. (Heidegger, 1959, p. 14)

Assim, os sentidos de ser servidor público e do sofrimento em relação ao trabalho são dignos de serem pensados. Pois se trata da existência, do acontecimento do homem na historicidade ditada pela tecnologia. O mundo do trabalho pode ser propício ao sofrimento, porém, lá também é o sítio onde brota a fonte que rega o solo que torna possível a reflexão, a pergunta que não cala, enfim, o solo onde o pastor guarda o ser. Como diz Pedro: