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Em busca da experiência: Interrogar e interpretar o sentido

A estratégia adotada neste estudo, inspirada no pensamento do filósofo Heidegger, caracteriza-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, de caráter fenomenológico- hermenêutico. Este método vai além do artifício técnico e traz à tona diversos questionamentos quanto ao acesso ao ser do homem, à questão da perspectiva no conhecimento e tudo o que isto implica, como provisoriedade, mutabilidade e relatividade da verdade e, igualmente, em relação à implicação do pesquisador no decorrer da investigação (Critelli, 2006, Heidegger, 2009).

Heidegger (2009) ressalta que para ter uma aproximação do ser do homem, é preciso uma visada diferente daquela adotada pelo ocidente, no seu projeto científico natural, o qual, criado por Galileu e Newton, aborda os fenômenos da natureza, e é fundamentado na aceitação de tempo, espaço e causalidade. Além disso, como vimos antes, o homem, sob o paradigma das ciências naturais, é abordado como um ente natural, como os planetas, como

um corpo material. E para o filósofo, é imprescindível diferenciar “ser” e ente, mesmo porque

o acesso a eles se dá de forma distinta. “Ser” não é ente. “É o ser que determina o ente como

ente... O ser dos entes não “é” em si mesmo um outro ente” (Heidegger, 1927/2006, p. 41).

Critelli (2006, p. 32) nos relata que “ente, na terminologia filosófica, é tudo o que é. Ser é o que faz com que um ente seja ele mesmo e não um outro ente qualquer... O ser está no como

os entes aparecem”, na trama de significados atribuídos pelos homens, por meio da fala, para

se dirigirem às coisas.

É esta diferença que justifica a necessidade de se adotar outro modo de acesso ao homem, de abordá-lo por meio de outros parâmetros que não sejam os das ciências naturais. É preciso uma nova maneira de pensar sobre o Ser, empreendimento este entendido por Heidegger (2009) como muito difícil, pois a ciência que conhecemos, por abordar apenas o ente, faz parecer qualquer tentativa de abordar o ser em algo arbitrário ou místico. No entanto,

“para vislumbrar o ser, só serve a própria disposição à percepção. Ocupar-se desta percepção

é uma atividade distinta do homem. Significa uma mudança da existência” (Heidegger, 2009, p. 48). Pensar sobre o ser torna-se difícil, pois nos remete aos questionamentos sobre a

verdade única apresentada pela metafísica. Heidegger (2009, p. 57) argumenta que “a verdade

de toda ciência natural está no feito. O que mais compreendemos por verdade?” Assim, pensar sobre o ser demanda uma postura diferente sobre o modo de se obter conhecimento. E é nessa questão que surge a fenomenologia hermenêutica, como via de conhecimento dos sentidos do humano. A fenomenologia hermenêutica busca o conhecimento levando em consideração que o ser das coisas encontra-se na própria lida que os homens têm com elas e nos sentidos que vão atribuindo na medida em que vão lidando com tudo o que há no mundo. É uma pesquisa que busca a descoberta de sentidos de uma experiência particular, num determinado momento, já que o ser do homem é sempre um outro, na sua condição de ser abertura e projeto, além de dispor de múltiplas possibilidades para atribuir sentido ao que lhe vem ao encontro (Heidegger, 1927/2006, DeCastro & Gomes, 2011).

Heidegger (1927/2006) ressalta a necessidade de uma “segurança metodológica” para

descrever o fenômeno e os encobrimentos que ele mostra, o que pode ser conseguida por meio da hermenêutica, pois a interpretação é o sentido da própria investigação. Assim, a hermenêutica assume o aspecto metodológico, como condição para a investigação. Sob esse

olhar, a fenomenologia não se atém apenas na descrição do fenômeno. Ela interroga o ente e interpreta o sentido do seu ser. Investigar é interrogar, é perguntar ao real o que queremos saber. E faz isso a partir da elaboração da compreensão prévia (Vorgriff) que tem do ser das coisas e do fenômeno que busca interpretar, e aqui a hermenêutica aborda o aspecto ontológico do ser que interpreta.

Como instrumento de pesquisa, utilizamos a narrativa, que é um recurso privilegiado para o acesso ao homem, na condição de se mostrar em seu ser cotidiano, pois torna o momento da pesquisa em escuta acolhedora (Dutra, 2002; Maux, 2009). A pesquisa fenomenológica busca, no relato, a experiência intencional, isto é, a experiência tornada

presente, “vivida”, “não os fatos que possam ser inferidos, não a estrutura de pensamento

subjacente revelada pelo uso de determinadas palavras, não o desejo oculto e camuflado pelo

discurso” (Amatuzzi, 2001, p. 20). Busca a compreensão dos sentidos atribuídos pela pessoa à

sua experiência. Assim, é no relato, na narrativa, no ato de contar sua história pessoal, que o ser se desvela, se mostra à compreensão. Ainda, ao narrar sua história, a pessoa envolve o

pesquisador que, longe de uma atitude de neutralidade, “torna-se sujeito dessa experiência”

(Dutra, 2002, p. 371).

Essa também é a opinião de Amatuzzi (2001), que ressalta a importância do pesquisador atuar como facilitador para que a experiência surja como ela é. Além disso, ainda

conforme esse autor, o “vivido” nem sempre foi acessado anteriormente. Ele é surpreendido

na relação com o pesquisador, é dito pela primeira vez, e, por isso, é mobilizadora. Holanda (2006) afirma que a fenomenologia, na pesquisa, caracteriza-se por uma atitude de abertura para a imensidão do mundo e suas possibilidades, por uma postura compreensiva, atenta, participativa, de espera pelo momento em que o fenômeno se deixa descortinar, se mostrar no que lhe é mais próprio. Heidegger (1927/2006) argumenta que essa postura de espera é um demorar-se no desvelamento, para que o sentido de ser possa surgir. Voltando a Holanda

(2006), lembramos-nos de uma comparação que ele fez entre a atitude fenomenológica com a de um jardineiro, que proporciona condições para que a planta se revele em toda sua plenitude sem interferir, contudo, no que é próprio da planta. A atitude fenomenológica, como a do jardineiro, permite o desabrochar da riqueza humana. Cria condições para o desvelamento do poder-ser próprio da pessoa, no caso da pesquisa, do colaborador.

Na postura de abertura o pesquisador “participa em todas as suas dimensões existenciais, como profissional e pessoa, ou seja, na sua totalidade, naquele momento ali

presente da sua vivência” (Dutra, 2002, p. 377). Segundo a pensadora, a atitude do

pesquisador, numa pesquisa hermenêutica heideggeriana consiste em:

Arriscar-se na aventura de ser-no-mundo com todas as implicações da sua condição existencial. Uma delas é a disponibilidade de lançar-se no desconhecido, na experiência originária de ser-com-o-outro, ou seja, lançar-se ao nada, ao não-saber. (Dutra, 2013, p. 207)

Assim, com essa postura fenomenológica e hermenêutica, pretendemos uma aproximação da experiência de sofrimento vivido em relação ao trabalho, narrada por nossos colaboradores. É uma aproximação, fundada na aceitação da fluidez do fenômeno, revelado no movimento entre aparecer e ocultar, bem como dos aspectos relacionados a ele, como a relatividade, provisoriedade e insegurança, entendidos como “modos constitutivos e originários do mostrar-se dos entes e do pensar” (Critelli, 2006, p 15). Por fim, esta pesquisa não tem a pretensão de buscar a verdade única, estável e absoluta, já mencionada anteriormente, e sim dirigir o olhar a um fenômeno específico, com sua maneira característica

de se revelar. Seguindo Critelli (2006, p 17), esta pesquisa trata de “cuidar do talhamento de um olhar”.