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Ao longo desta pesquisa, buscou-se identificar o processo de construção das relações entre a família e a creche pública, desvelando as tensões, os conflitos, os encontros e os desencontros que emergem dessas relações no cotidiano dos atores envolvidos na educação coletiva e nos cuidados das crianças menores de três anos. O foco das análises foi as famílias, as crianças e as educadoras infantis, atores sociais que estabelecem entre si relações de interdependência, e, assim, vão tecendo a trama da sua “rede” de relações. A tessitura dessa rede envolve esses atores sociais e as suas diversas referências acerca dos conceitos de família, de educação infantil e de criança e dos direitos desta última ao cuidado e à educação nos espaços coletivos de educação.

A relação entre a família e a creche sofre, ao mesmo tempo, impactos da legislação, da mudança do conceito de família e da política de educação infantil. A Constituição Federal de 1988 desencadeou um processo de mudanças na história das instituições de educação infantil, as quais passaram a ser regidas por uma legislação específica a nível nacional e municipal. No primeiro nível, destaca-se a Lei de Diretrizes e Bases (LDB no 9.394/96), que insere a creche como primeira etapa da educação básica e determina que os termos creche e pré-escola sejam utilizados para fazer referência às idades das crianças atendidas: de zero a três anos (creche) e de quatro a cinco anos (pré-escola), e não para se referir às instituições de educação infantil. A formação mínima em Magistério, para os profissionais dessa modalidade de ensino, também foi prescrita por essa Lei. Outras legislações foram significativas nesse processo, tais como: o Estatuto da Criança e do Adolescente, os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, os documentos que estabelecem os critérios básicos para a infraestrutura das instituições, entre outros. A partir dessas legislações, a educação infantil passa a ser “complementar” à educação familiar, o que pressupõe que a família e as instituições de educação infantil se relacionem a partir dos princípios do diálogo e do respeito às praticas educativas e culturais umas das outras. Já no segundo nível, o dos municípios, estes puderam, a partir do respeito às determinações da legislação nacional, constituir os seus Sistemas de Ensino, criar os seus Conselhos Municipais e promover a regulamentação da educação infantil, nesse âmbito. Assim, pode-se dizer que há uma

195 grande influência dessas legislações nas ações desenvolvidas com as famílias e as crianças pelas Unidades Municipais de Educação Infantil, no cotidiano.

Nas duas instituições investigadas, UMEIs Bambini e Coração, o diálogo e a parceria com as famílias das crianças são os princípios definidos pelos seus profissionais nos Projetos Político- Pedagógicos que elaboram. Os formatos adotados para essa relação entre as famílias e as creches são definidos pelos mesmos princípios. Ambas as UMEIs criaram espaços para a participação das famílias nas atividades cotidianas que desenvolviam com as crianças. Entre esses espaços, destacam-se o da coordenação pedagógica e o dos eventos culturais e sociais, como as festas e as reuniões de pais. Há duas perspectivas nessas práticas socioculturais das creches: a do diálogo, no sentido de compreender e conhecer as queixas e as opiniões das famílias sobre a ação pedagógica desenvolvida na creche; e a perspectiva que se relaciona à ideia de formação das famílias para que estas venham a desempenhar o seu papel na relação com as instituições educativas e nas práticas familiares com seus filhos e filhas.

Nessas relações das famílias com as creches, ocorrem também encontros e desencontros nos relacionamentos entre as famílias e as educadoras infantis, no cotidiano das UMEIs. As considerações de que as UMEIs são um espaço adequado para o cuidado e a educação das crianças e de que suas materialidades são facilitadoras das ações educativas são vistas como sendo características de consenso entre as famílias e as educadoras infantis tanto na UMEI Coração quanto na UMEI Bambini. Entretanto, as práticas familiares de cuidado das crianças se constituem em um dos desencontros entre as educadoras infantis e as famílias.

No formato adotado para o desenvolvimento das relações entre as famílias e as creches, na UMEI Coração, destacou-se uma discussão que envolvia a função da creche no contexto atual, percebendo-se uma tensão entre a visão expressa pelas famílias e a visão expressa pelas educadoras infantis. Para as primeiras, a creche é um espaço adequado para que as crianças sejam educadas na perspectiva do comportamento social e dos valores socioculturais e cuidadas com segurança. Embora não seja um posicionamento consensual para algumas educadoras infantis, para a maioria delas, essa educação e esse cuidado deveriam ser ações realizadas prioritariamente pela família, sendo a creche uma instituição legítima para aquelas famílias em que seus membros

196 necessitem trabalhar fora de casa. Com isso, pode-se dizer que a situação empregatícia da família e a sua participação nas atividades propostas pelas creches interfere na posição social da família nessa relação.

A constituição da relação entre as famílias e a creche, na UMEI Coração, se dava também em um campo de tensões, as quais emergiam basicamente nas situações em que as famílias não cumpriam as normas estabelecidas pela UMEI e quando elas reclamavam de situações do cotidiano, como as eventuais trocas de peças de roupas, os acidentes ou as assaduras das crianças. Parece que subjacente a essa tensão está a ideia da “legitimidade” das ações de cuidado e de educação tanto no espaço da creche quanto no espaço familiar. O espaço criado para a resolução desses impasses é o da coordenação pedagógica, na qual a coordenadora pedagógica exerce a função de mediadora dos conflitos entre as famílias e as educadoras infantis, na creche.

Entretanto, esses contornos adquiridos pelas relações entre as famílias e a UMEI Coração são alvos de críticas por parte das famílias e das profissionais que atuam na instituição. Elas criticam principalmente as reuniões de pais: a sua periodicidade e o seu formato. No quesito periodicidade, elas afirmam que a realização de uma reunião de pais por semestre é muito pouco para se abordar o processo de educação das crianças. Já no quesito formato, as temáticas e as formas de organização das reuniões são, na maioria das vezes, cansativas e pouco produtivas, na medida em que se transforma em um momento para se relatar os comportamentos sociais das crianças, ou para se apontar as inadequações das famílias aos horários e às regras da creche. Elas apontam, ainda, que a própria organização das relações de trabalho a que estão submetidas as famílias e as educadoras infantis é um limite para a construção de outros formatos e tempos para essas relações, o que revela um impacto do ritmo dos tempos das famílias e da creche nos relacionamentos desta com aquelas e vice-versa. Há uma busca de “parceria” e de “diálogo” com as famílias, por parte da creche, sob os moldes da exigência da presença física delas nos eventos promovidos pela instituição, o que parece ser um agente limitador da participação daquelas famílias que, por motivos diversos, não têm disponibilidade para desempenhar o papel social idealizado pelas profissionais da UMEI Coração.

197 A UMEI Bambini, por sua vez, além das reuniões e dos eventos culturais, possui uma estratégia diferente para se relacionar com as famílias: a correspondência sob o formato de cartas. Essa ação possibilitou o levantamento das concepções, expectativas e disponibilidades das famílias para contribuir com a creche. As respostas das famílias mostram que elas têm uma expectativa da creche como sendo um lugar de cuidado e de educação de seus filhos e, até mesmo, como uma possibilidade de ascensão social deles. As cartas-respostas revelam outras possibilidades de participação na vida das crianças, na creche, que as famílias disponibilizam, como garantir a frequência delas na instituição e promover nelas, por meio da relação entre elas e suas famílias, atitudes de comportamento moral e de respeito à creche. Nessa UMEI, as famílias têm esse importante espaço para se pronunciarem também a respeito de variadas temáticas.

Assim, como na UMEI Coração, na UMEI Bambini, as tensões emergem quando as famílias não correspondem às expectativas dos profissionais da creche em relação ao cuidado e à educação que as famílias oferecem às crianças, em casa. Há, nas ações desenvolvidas com essas famílias nessa instituição, uma tentativa de influenciar e modificar as práticas familiares dos cuidados com a higiene, a alimentação, o vestuário e a saúde das crianças e do conteúdo cultural da educação familiar, aos quais as crianças têm acesso na sua vida social, em casa.

A relação entre a família e a creche, na UMEI Bambini, tem duas características distintas. Por um lado, os profissionais buscam conhecer as famílias por meio do levantamento das suas expectativas sobre a creche, das suas concepções sobre família e da participação familiar na educação dos filhos, e, por outro lado, eles adotam ações que visam modificar o comportamento familiar em relação aos cuidados e à educação das crianças. As famílias, por sua vez, utilizam o espaço da coordenação para expressarem os descontentamentos com as ações dos profissionais da creche que lhes provocam constrangimento ou insatisfação. Nesse quadro, as relações entre os atores sociais dessa instituição se desenvolvem, e eles se constituem mutuamente em seus papéis de famílias e de profissionais da creche.

A busca da compreensão dos significados atribuídos pelos atores sociais nessa experiência de educação e de cuidados das crianças em espaços coletivos, implementados nesta pesquisa, pode contribuir com as discussões no campo da educação infantil acerca dessa temática, além de

198 também contribuir com os debates entre os profissionais que atuam nas instituições de educação infantil.

A partir de todas as análises realizadas sobre as UMEIs, na cidade de Belo Horizonte, é importante salientar que esta pesquisa não esgotou as discussões sobre o tema da relação entre os atores sociais no cuidado e na educação das crianças menores de três anos de idade, nas instituições de educação infantil do município. No desenvolvimento deste estudo, muitas outras importantes questões surgiram, as quais demandarão discussões conceituais e estudos mais aprofundados, pois são questões que se situam no campo da educação familiar e da educação da creche, o qual oferece uma gama de temáticas fundamentais para o desenvolvimento da educação e da sociedade brasileira de um modo geral.

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