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Este trabalho só pôde ser concebido e desenvolvido através da premissa de que, ao analisar um discurso – mesmo que o documento considerado seja a reprodução de um simples ato de fala individual -, não estamos diante da manifestação de um sujeito, mas sim, nos defrontamos com um sujeito que é ao mesmo tempo falante e falado, porque através dele outros ditos se dizem. É nesse sentido, que podemos compreender a dimensão da atuação das representações sociais enquanto constituidoras de saberes que expressam uma determinada realidade social.

É também nesse sentido que a investigação sobre as representações sociais do corpo na revista TPM constituiu-se como uma das formas de tentar evidenciar como os saberes circulantes na mídia estão implicados na construção e expressão dos discursos sociais existentes em uma sociedade, apontando assim para o caráter de interação e integração desses saberes. É dessa forma que as categorias explicativas elaboradas no decorrer das análises realizadas devem ser compreendidas.

Entendeu-se que a categoria corpo-imã só poderia existir em função de sua articulação com as demais: corpo-plástico e corpo-em-evidência. Isso porque parte-se do princípio de que não é possível pensarmos a realidade condicionada pelo par causa-efeito, apontando uma linearidade pseudo- existente. A realidade é complexa e tentamos assinalar esse aspecto ao

elaborar categorias que se implicam mutuamente, sendo causa e efeito ao mesmo tempo.

Entretanto, indicar uma realidade multifacetada não equivale à crença de que as categorias elaboradas constituem-se como um espelho onde a realidade é refletida. Como discute RAGO (1996) ao abordar a importância do pensamento foucaultiano para os estudos feministas, a tese de que para conhecer algo deveríamos nos livrar dos “véus da ilusão”, da ignorância e da ideologia refletia a crença na existência de uma verdade essencial, revelada quando, através do ato de conhecer, chegávamos ao “fundo da coisa”. A verdade seria, então, a coincidência do conceito com a coisa, como se fosse possível uma “realidade objetiva” onde o conhecimento científico permitiria atingir esse “estado branco e intacto de pureza”.

Considerando as pontuações acima salientadas, estudar a revista TPM constituiu-se, então, em um exercício de apontar como o corpo é construído pelas produções discursivas, indicando que os sentidos que as representações sociais e imagens de gênero produzem, se desenham na materialidade corporal. A partir do discurso da TPM que constrói uma concepção de si permeado pela diferença, estudar uma revista que pretende negar as tradicionais práticas discursivas em relação à mulher significava investigar as rupturas e disjunções nessas práticas.

Dessa forma, optou-se pelo estudo das representações sociais do corpo como um dos caminhos possíveis para entender as representações de gênero. Entretanto, como procurou-se demonstrar ao longo deste trabalho, o gênero não é decorrente da cultura em contraposição ao sexo, que seria derivado da natureza. Retomando algumas teses feministas, tentou-se evidenciar como estas teorizações sobre as relações entre sexo e gênero indicam que o gênero produz a categoria “natural” sexo, que aparentemente o funda. Nesse sentido, em lugar de considerar o sexo como um dado biológico não teorizável - inscrevendo o corpo como algo natural e dado – sobre o qual se sobreporia um elemento cultural, o gênero, dividindo e hierarquizando os humanos em duas

categorias distintas, naturais e culturais, sugere-se que a categoria ontológica sexo é ela própria produzida e naturalizada no gênero.

Ao abordar como os cuidados com o corpo configuram um certo feminino - a partir da leitura da revista TPM como um espaço pedagógico e assumindo-se a concepção de gênero acima explicitada - podemos entender como esse poder que atinge prioritariamente o cotidiano imediato das pessoas – expressos aqui pelo permanente “cuidado de si” - se estabelece ao se ocupar de saber o que se passa nas cabeças individuais, possibilitados pela confissão de “todos” os segredos.

Produzindo verdades nas quais todos devem reconhecer-se e pelas quais são reconhecidos, espaços como o que foi denominado “O ESPECIALISTA: a voz de autoridade criando/reafirmando VERDADES” pretendeu ilustrar a idéia de um poder pulverizado, presente em todas as relações e em todos os lugares sociais. Essa forma particular de poder se concretiza justamente por ser um poder preocupado com o bem-estar da população e a saúde de cada um em particular, revestindo-se de “bondade” e dedicando-se a toda a comunidade, mas que não tem condição de exercer-se senão munindo-se de toda a informação sobre cada grupo, sobre o que pensam e sentem todos os indivíduos e como estes podem ser dirigidos. Portanto, a voz do especialista reflete a equação saber = poder, onde a verdade afirmada por ele funciona como elemento de normatização dos comportamentos.

Nesse sentido, através das representações de gênero, definem-se valores e modelos de um corpo sexuado em função de paradigmas físicos, morais e mentais cujas associações tendem a criar a “verdadeira mulher”, expressa nas “milimétricas” diferenças entre as revistas femininas existentes que funcionam, sobretudo, como fontes reafirmadoras de uma suposta “identidade feminina”. Daí a permanência das matérias sobre moda, cozinha, decoração e amor como pontos invariáveis das revistas femininas, em particular, e da mídia de uma forma geral, como assuntos concernentes à “Mulher”. Ilustrando essa permanência, podemos ressaltar a insistência da revista na menstruação

como o fenômeno biológico definidor do feminino, expresso constantemente em jogos de palavras79 e em sua suposta competência para falar dele, uma vez que seu nome lhe confere essa autoridade80.

A visibilidade de um corpo feminino fabricado para-o-outro permitiu- nos apontar como o corpo da mulher desenha-se sob o olhar do outro, aquele a ser seduzido, aquele que faz dela um sujeito dotado de significação social, expressando na construção desse corpo as representações de gênero que assim o constróem, ainda. Dessa forma, o que se define como feminino tem o corpo como fonte de sua significação, sendo os discursos que envolvem os cuidados com o corpo associados, em sua primazia, à figura feminina. Sintetizando essas reflexões, questiona-se: até quando “Mulher-corpo”?81

79

Como por exemplo no item O ESPECIALISTA: a voz de autoridade criando/reafirmando VERDADES, onde o jogo de palavras realizado muda o significado de termos utilizados pela leitora, dissociando título e texto. Ver CASO UM: Absorvente envenenado, página 125.