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“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, “ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos.”

“A questão é”, disse Alice, “se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.”

“A questão”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem vai mandar – só isto.”

Lewis Carroll

A pesquisa procurou reconstruir a história constitucional do primeiro governo de Getúlio Vargas, entre 1935-1937. O nosso fio condutor foi o impacto do anticomunismo na relação entre direito e política, entre Estado e constituição, evidenciando os usos do conceito de constituição no âmbito do Legislativo, Executivo e Judiciário. A hipótese levantada no início do texto foi de que a repressão ao comunismo serviu de justificativa para a instrumentalização da constituição pelo poder público e para a suspensão dos direitos fundamentais. A manipulação da ameaça comunista, especialmente após a ocorrência da Intentona Comunista, em 1935, não foi, no entanto, decorrência exclusiva do pânico anticomunista presente na sociedade. Também foi fruto do uso estratégico dessa ameaça com vistas à instituição de um determinado projeto político-ideológico.

O primeiro capítulo ocupou-se da gradual construção do estado de exceção, isto é, das várias medidas adotadas para subverter o regime constitucional instaurado em julho de 1934. Basicamente, a suspensão da Constituição de 1934 foi iniciada pela promulgação da Lei de Segurança Nacional, depois pela decretação do estado de sítio e, finalmente, pela sua equiparação ao estado de guerra. Em cada uma das etapas, tentou-se demonstrar as contradições do discurso autoritário e as resistências empreendidas pela minoria parlamentar para barrar as investidas contra as limitações constitucionais.

A dissertação tentou indicar que as mudanças ocorridas no início da República possibilitaram a transformação do sentido da criminalidade política. A ameaça representada por movimentos políticos como o comunismo aguçou nas elites políticas a necessidade da criação de uma legislação específica para sua repressão. A inovação da repressão política iniciada na década de 1930 ligou-se diretamente aos estímulos provocados pelas classes populares e pelos dissidentes políticos. E todos esses eram agrupados no qualificativo ―comunista‖:

O comunismo se convertia assim no grande inimigo de toda a sociedade, cabendo a esta dedicar-se integralmente ao seu combate, pois não se tratava apenas de uma ameaça ao governo e às instituições políticas, mas do grave perigo que a ideologia bolchevique representava para a ordem social: a família, o trabalho, a propriedade. Com isso, legitimou-se não apenas a ação repressiva do governo, como também o próprio governo, que seria a expressão maior do repúdio ao extremismo de esquerda. (CAMARGO et al, 1989, p. 61)471

Os instrumentos dispostos na legislação não seriam suficientes para combater esse novo tipo de crime. A Lei de Segurança Nacional foi uma tentativa de adequar e disponibilizar à repressão policial novos instrumentos e uma nova linguagem para o combate ao comunismo: o crime não era mais cometido contra a ―segurança do Estado‖, mas com finalidades subversivas da ordem política e social. Instaurava-se, assim, um regime de exceção contra a constituição (PINHEIRO, 1991).

Paralelamente ao mito da conspiração comunista, persistiu o mito da nacionalidade ―que anulava a dimensão individual do cidadão integrando-o no corpo da Nação‖ (CARNEIRO, 2003). Aqueles que não se enquadravam no modelo idealizado pelo regime eram rotulados de ―indesejáveis‖. Na opinião de Maria Tucci Carneiro (2003), ―este é o processo de metamorfose que acompanha o declínio de todo Estado liberal: suspeita, vigilância e eliminação‖.

Posteriormente ao Levante Comunista, a nova compreensão de criminalidade política seria posta à prova. Desde os primeiros momentos após a revolta, denunciava-se a inadequação dos instrumentos legais para combater os subversivos. Para o governo, a Constituição de 1934, com o seu viés eminentemente liberal, seria insuficiente para conter a investida comunista. A primeira providência foi solicitar ao Legislativo a autorização para decretar o estado de sítio. Além disso, reformou-se a Lei nº 38, tornando-a mais arbitrária. Diferentemente das revoltas tenentistas da década de 1920, a repressão política empreendida em 1935, ao mesmo tempo em que politizava a luta contra o crime, criminalizava o preso político. Dessa forma, além de transformar todo tipo de ―vadio‖ e ―ladrão‖ em revolucionários em potencial, a prisão política, fundamentada no estado de sítio, passava a ser criminalizada por meio do enquadramento em algum dispositivo da Lei de Segurança Nacional.

471 Acrescente-se a isso a tentativa de associar o comunismo ao mal que vem de fora, pois o povo brasileiro, em especial o trabalhador, é cristão, pacífico, honesto. O discurso anticomunista apresentava, ainda, a sociedade brasileira como justa, democrática e isenta dos defeitos existentes nas demais sociedades. Retoricamente, ―se está tentando criar uma visão do paraíso, uma Shangrilá tropical, não com o ensejo de criar uma visão ingênua do nosso país e do nosso povo, mas porque, assim procedendo, agiganta-se a malignidade do inimigo a ser combatido‖ (FERREIRA, 2005, p. 165).

O trabalho pretendeu mostrar que a decretação do estado de sítio, de início voltado exclusivamente ao sufocamento da rebelião comunista, passou a revelar-se conveniente aos fins políticos de Vargas e dos seus aliados. A continuidade do argumento da insuficiência das normas legais frente à sempre crescente ameaça comunista possibilitou o surgimento da idéia da equiparação do estado de sítio ao estado de guerra. A despeito de todos os protestos da minoria parlamentar, Vargas conseguiu reformar a constituição, de modo a, paradoxalmente, suspendê-la. Com a medida, o governo conseguiu tirar do seu caminho as parcas resistências ainda existentes ao regime. O estado de guerra foi um elemento chave para o aprofundamento do regime e para a articulação dos elementos necessários para o golpe de 1937.

As medidas de exceção adotadas não foram aprovadas, contudo, sem resistências. Se na maioria das vezes, o que contava eram as manobras políticas, em outros casos, como ficou claro no debate sobre as imunidades parlamentares e sobre a licença para processar os parlamentares presos, o Legislativo tentava defender a sua independência. Todavia, isso era feito ao preço de explicitar ainda mais os pressupostos autoritários e inconstitucionais adotados.

Se na primeira parte do trabalho a preocupação foi com a elaboração das medidas de exceção, principalmente no âmbito legislativo, no capítulo 2 observou-se a dinâmica da exceção constitucional em outra perspectiva: a do judiciário. Como a pesquisa tentou demonstrar, a criação de um conjunto de normas jurídicas ideologicamente afinadas com o regime não seria suficiente se o governo não tivesse, também, um órgão judicial orientado pelos mesmos valores. Apesar do o Tribunal de Segurança Nacional ter sido criado para realizar a repressão judicial, demonstrou-se na análise do processo específico dos deputados João Mangabeira, Octavio da Silveira, Domingos Velasco, Abguar Bastos, e do senador Abel Chermont, que argumentos políticos foram relativizados diante do conjunto probatório apresentado. Ademais, os ―ganhos‖ realizados com as críticas e emendas da minoria, durante a discussão legislativa da Lei nº 244, com a inserção do duplo grau de jurisdição, amenizou o grau de autonomia do referido tribunal, na medida em que várias das suas decisões foram reformadas pelo Supremo Tribunal Militar.

A judicialização da repressão política levanta várias questões. Como explicar os laços entre o aprofundamento do autoritarismo e a manutenção ou criação de instituições judiciais para responsabilizar os dissidentes políticos? Qual a razão para Vargas optar por levar seus opositores a julgamento? A tentativa de legitimação da repressão talvez seja um indício. É sintomático que, excluindo a prisão dos parlamentares e a primeira decretação do estado de

guerra, todas as medidas emergenciais e leis de exceção foram obtidas por Vargas através do procedimento previsto constitucionalmente. De todo modo, independente de uma condenação ou absolvição, a judicialização teve sua eficiência, na medida em que legitimava a prisão de opositores políticos e os retirava da arena da discussão pública. Para Anthony Pereira (2010, p. 84), a prática de repressão judicial da oposição política é uma característica do Estado brasileiro. Certamente, a experiência vivenciada com o Tribunal de Segurança Nacional contribuiu muito para essa opinião. Para Pereira (2010, p. 73), as razões para a judicialização da repressão são as seguintes:

Em suma, os processos por crimes políticos são tentadores para os governantes autoritários, por terem a capacidade de desmobilizar os movimentos populares de oposição, de angariar legitimidade para o regime ao convencer setores importantes do público de que os oponentes são tratados com justiça, de criar imagens políticas positivas para o regime e negativas para a oposição, de auxiliar uma facção do regime a ganhar ascendência sobre as demais, e de estabilizar a repressão, ao fornecer não apenas informações como, também, um conjunto de regras previsíveis, em torno do qual as expectativas tanto dos opositores quanto das autoridades podem se aglutinar.

Não obstante o TSN tenha sido extinto junto com o Estado Novo, a sua existência foi importante por ter sido vivenciada pelos generais que subiriam ao poder em 1964. Embora não tenha existido um tribunal especial para o julgamento de crimes políticos na década de 1960, para Anthony Pereira (2010) a judicialização da repressão política foi uma das características da ditadura militar brasileira se comparada ao Chile e à Argentina. Outro ponto de contato entre a forma da repressão entre 1935-1937 e 1964-1985 é a legislação de Segurança Nacional. Foi a partir de 1930 que se consolidou a mudança de sentido na noção de criminalidade política e de Segurança Nacional. De acordo com Ingraham (apud PEREIRA, 2010, p. 81), ―essa tendência autoritária dissolveu a distinção entre ameaças internas e externas à segurança nacional, de modo a que certas formas de oposição interna ao governo passassem a ser vistas como sediciosas, em especial após a Revolução Bolchevique de 1917‖.

O exame da atuação da Corte Suprema, por outro lado, revelou que a relação hierárquica entre público e privado pautou o entendimento dos ministros em casos importantes envolvendo a discussão dos limites constitucionais à execução do estado de sítio. Embora a Corte tenha relativizado a radicalidade da emenda constitucional nº 01 e a despeito de serem encontrados alguns votos nos quais se assume uma perspectiva em favor da constituição, na maioria das decisões prevalece a ―razão de Estado‖ como guia interpretativo. O exame dos processos da Corte Suprema é relevante, pois denuncia o grau de legitimação das práticas de exceção pela estrutura judicial ordinária. Salvo raras exceções, os integrantes

do mais alto tribunal do país não discutiram a constitucionalidade das medidas, baseado na premissa de que ―questões políticas‖ autorizavam a Corte a decidir que não decidiriam.

Não teríamos condições de compreender as decisões tomadas, as escolhas feitas, se não inserirmos cada um desses atores no seu contexto histórico específico. Afinal, longe de ―julgar‖ a história, devemos compreendê-la. Trata-se, antes de tudo, da ―escolha de uma postura intelectual, e não moral ou política‖ (PROST, 2008, p. 258).

O período de 1930 a 1937 foi uma época de indefinição, quando inúmeros projetos estavam sendo postos em pauta e quando, também, a sociedade se mobilizou intensamente em torno deles. O campo de possibilidades era imenso e o governo movia-se em um terreno onde os aliados ainda não estavam definidos. Contudo, se o projeto político autoritário e centralizador, que chegou ao poder junto com Vargas em 1930, não conseguiu manter-se durante todo o período, principalmente diante da reconstitucionalização do país em 1934, não demoraria muito para que ele fosse levado às últimas consequências em 1937.

A Constituição de 1934 foi, nesse sentido, a expressão de um compromisso entre os princípios liberais das antigas elites econômicas e os corporativos dos novos dirigentes do Estado, que culminou com a eleição indireta de Vargas à Presidência da República. A ordem institucional de 1934 começou, portanto,

[…] sob o signo da composição entre princípios contrários – os liberais e os corporativos – composição essa que se tornou insustentável com a crescente radicalização política no país, protagonizada, à direita, pelo cada vez mais influente Partido Integralista, criado em 1932 por Plínio Salgado, e, à esquerda, pela Aliança Nacional Libertadora, criada em 1935, ambos com larga penetração nas Forças Armadas. (VIANNA, L., 2001, p. 113).

A radicalização entre a esquerda e a direita apenas representava uma crise mais profunda, e que parecia indicar, desde o começo dos anos 30, para a superação do liberalismo. O crack da bolsa de Nova York, em 1929, desencadeou uma crise que foi, por toda parte, sucedida pelo intervencionismo do Estado em matéria econômica em todos os demais aspectos relevantes da vida social (VIANNA, L., 2001, p. 113). O liberalismo, ainda preservado parcialmente na Carta de 1934, passaria a ser entendido, nesse contexto, como instrumento inidôneo para enfrentar os novos tempos.472 O contexto internacional parecia claro:

De todos os fatos da Era da Catástrofe, os sobreviventes do século XIX ficaram talvez mais chocados com o colapso de valores e instituições da

472 Aduz Eric Hobsbawm (2002, p. 115): ―O século XX multiplicou as ocasiões em que se tornava essencial aos governos governar. O tipo de Estado que se limitava a prover regras básicas para o comércio e a sociedade civil, e oferecer polícia, prisões e Forças Armadas para manter afastado o perigo interno e externo, o ‗Estado-guarda- noturno‘ das piadas políticas, tornou-se tão obsoleto quanto o ‗guarda-noturno‘ que inspirou a metáfora‖.

civilização liberal cujo progresso seu século tivera como certo (...). Em resumo, o liberalismo fez uma retirada durante toda a Era da Catástrofe, movimento que se acelerou acentuadamente depois que Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha em 1933. Tomando-se o mundo como um todo, havia talvez 35 ou mais governos constitucionais e eleitos em 1920 (...). Até 1938, havia talvez dezessete desses Estados, em 1944 talvez doze, de um total global de 65. A tendência mundial parecia clara. (HOBSBAWM, 2002, p. 113-114).

Afora a tendência mundial, os limites do liberalismo seriam ditados, também, pelas circunstâncias internas. Para Aspásia Camargo (1989, p. 10), o modelo liberal não foi consistente nem como ideologia, nem como prática: ―como ideologia, o modelo liberal entrou nos anos 30 em franco desuso. Como prática, jamais existiu. Não se cogitou de fato em efetivar a implantação de eleições livres e do voto secreto previstos na Constituição de 1934, prevalecendo, ao contrário, as resistências ao alargamento da cidadania e da participação‖. Embora a proposta liberal tenha saído vitoriosa com a constitucionalização de 1934, numa demonstração da importância que os grandes Estados ainda possuíam na política nacional, não demoraria muito para que ela fosse subvertida. Isto ficou claro quando a radicalização política e o aumento das manifestações sociais levaram o Legislativo a autorizar todas as medidas constitucionais de emergência solicitadas por Vargas, bem como a aprovar a Lei de Segurança Nacional e o Tribunal de Segurança Nacional.

O Estado Novo, fruto do golpe de 10 de novembro de 1937, não só abortou o processo de sucessão presidencial, como, principalmente, significou uma dramática ruptura com os valores e princípios do liberalismo e da democracia representativa constantes do ideário republicano brasileiro disposto na Carta de 1891 e 1934. Para Luiz Werneck Vianna (2001, p. 115), ―com o Estado Novo se resolvem os impasses acumulados desde a Revolução de 30, a qual mantivera, até a Intentona Comunista de 1935, um compromisso entre princípios da ordem liberal e da ordem corporativa‖. Porém, como a pesquisa tentou apontar, o Estado Novo não foi uma decorrência obrigatória e natural da ―Revolução‖ de 1930. Ao contrário, ―foi um dos resultados possíveis das lutas e enfrentamentos diversos travados durante a incerta e tumultuada década de 1930‖ (PANDOLFI, 2003, p. 35). Foi preciso a ocorrência dos eventos de 1932, 1934 e 1935 para que houvesse a depuração das elites e a reorganização das alianças necessárias a Vargas para a implantação do projeto político autoritário do Estado Novo (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 1987).

Nesse panorama, teve papel preponderante a corporação militar. Do pondo de vista político, criou-se um vínculo duradouro entre as Forças Armadas, segurança nacional e combate ao comunismo. A partir de 1930, coube paulatinamente aos militares ampliar sua

participação dentro do Estado, assegurar condições efetivas para seu funcionamento e participar da construção de um projeto nacional acima dos regionalismos. O Levante Comunista de 1935 foi de extrema utilidade para essa configuração, na medida em que instalou definitivamente no imaginário político a presença de um inimigo comum: o comunismo. Com isso, ―garantiu-se ao Exército como corporação um papel de liderança no processo político – em nome da salvaguarda das instituições ameaçadas – abrindo-se caminho para um intervencionismo crescente‖ (CAMARGO et al, 1989, p. 253). Para Aspásia Camargo (1989, p. 259),

[...] com o êxito que acumularam durante o Estado Novo, os militares prepararam-se para intervir mais diretamente na política, seja em 1945, derrubando Vargas, seja em 1954 e 1955, estabelecendo alianças com os partidos políticos, seja ainda em 1964, disputando frontalmente com os civis a direção do novo regime. De um modo geral, os tenentes de 1930 seriam os generais de 1964, trazendo com eles a carga traumática da luta contra o comunismo e o populismo, e a desconfiança contra os políticos.

É importante entender que, devido ao contexto histórico, foi possível para o pensamento autoritário do entre guerras capturar a bandeira da democracia e da constituição, preenchendo-os de sentidos inteiramente novos e encontrando ampla aceitação, tanto junto às elites, como nas camadas populares. Nesse sentido,

O significado da palavra democracia, particularmente na experiência brasileira, esteve associado à dimensão social e não política, o que permitiu a construção de um conceito aparentemente paradoxal: ―democracia autoritária‖. O Estado brasileiro pós-1930 pôde então se proclamar, franca e claramente, um Estado forte, centralizado e antiliberal, sem perder a conotação de democrático, isto é, de justo e protetor socialmente. (GOMES, 2007a, p. 84).

Como foi visto nos episódios analisados, como na aprovação dos institutos de emergência e na elaboração da lei de Segurança Nacional, o conceito de democracia foi entendido simplesmente como vontade da maioria, seja como essa viesse a se constituir. Ademais, e como entendeu o pensamento constitucional que fundamentou o golpe de 1937, a afirmação da crença na supremacia do Executivo sobre o Legislativo, na racionalidade e eficiência dos técnicos da burocracia estatal e sua importância natural sobre os políticos, na anarquia da democracia representativa e sua incapacidade para lidar com os desafios de uma sociedade de massas, acabou consolidando uma dramática contraposição entre democracia social e democracia política. Esta terá sido, talvez, ―a pior das heranças, que fez tantas vezes

colidir a prática institucionalizada da participação segundo as regras do jogo democrático com as almejadas metas do desenvolvimento econômico‖ (CAMARGO et al, 1989, p. 259).473

Por outro lado, a idéia de constituição como forma, como paramount law, foi relativizada. A constituição já não podia ser encarada simplesmente como norma que ordena os poderes públicos e estabelece os direitos individuais. Era a ―ordem fundamental da convivência civil, construída a partir das vontades particulares das concretas forças sociais e dos mesmos indivíduos, mas de maneira que ao final se produza a supremacia do universal, do interesse geral, da soberania do Estado‖ (FIORAVANTI, 2001, p. 138). Ganhava força a concepção de que o Estado era soberano enquanto ordenamento originário; a constituição era sentida como algo que se vinha depois, como um artigo de ―luxo‖. O Estado poderia, em casos de emergência e momentos de crise, atuar pelo interesse público – entendido como estatal –, pela manutenção da sua autoridade, inclusive além da constituição ou mesmo sem constituição (FIORAVANTI, 2001, p. 139). A prática autoritária do período 1935-1937, embora tentasse se legitimar por meio dos procedimentos constitucionais, conseguiu tornar plausível o argumento da ―salvação pública‖ em detrimento da formalidade constitucional. A constituição, para grande parte dos homens do pós-1930 era encarada como um mero instrumento de governo, totalmente disponível aos detentores do poder.474

O contexto de exceção não impede, todavia, de aprender com a história constitucional do governo Vargas. Isto requer a produção de uma nova memória do período autoritário estudado, ―como forma de resgate de uma experiência que foi inteiramente deixada de lado pelas instituições jurídicas formais. Com isso, será possível rever a história, projetando para o futuro uma narrativa que reconstrói o passado‖ (PAIXÃO, 2007). Assim, captar a prática constitucional em regimes autoritários pode-se mostrar bastante produtivo.475 A dissertação

473 Para Werneck Vianna (2001, p. 152), ―O Estado Novo pavimentou, de fato, o caminho para a modernização econômica do país, assim como refundou a República, ‗ampliando‘ o escopo do Estado a fim de abrigar os novos personagens sociais nascidos do mundo urbano-industrial. Mas o preço da modernização autoritária e da ‗ampliação‘ por cima da cidadania importará a perda da autonomia da sociedade quanto ao Estado e uma herança