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Apresentar os percursos de um projeto de revisão de uma tradução bíblica e comentar as decisões da equipe, registrando o trabalho que foi feito, foi o principal propósito desta pes- quisa. O objeto deste estudo foi uma tradução clássica da Bíblia para o português, considerada fiel pelos leitores e que há muitos anos não recebia atualizações. Assim, a caracterizamos como um texto tradicional, marcado por questões de sensibilidade.

Por meio da delimitação de um corpus de excertos, analisados a partir de seis categorias, este trabalho, à luz das reflexões de Eugene Nida, da analítica de Berman e do conceito de sensibilidade em tradução, propôs oferecer subsídios para uma descrição pormenorizada do projeto de revisão da Bíblia de Almeida na versão Revista e Atualizada. Dentre outras coisas, isso foi feito por meio da revisitação das escolhas da comissão revisora, da qual a autora deste trabalho fez parte.

Em primeiro lugar, cabe ressaltar uma questão importante: os dilemas e desafios de co- mentar um trabalho do qual se fez parte. Kaisa Koskinen, em seu livro Translating Institutions, na parte intitulada “Who is Who: Positioning Myself”, propôs uma autorreflexão, colocando em discussão seu papel como pesquisadora com a experiência de já ter sido, no passado, tradu- tora da União Europeia, instituição que ela analisa. Dentre tantas questões que pontua, Kaisa Koskinen menciona a natureza paradoxal do trabalho do pesquisador que também é tradutor (ou, no caso desta dissertação, revisor). A identidade do pesquisador, quem ele é, onde atua e com que olhar se apresenta diante de seu objeto impactam os rumos e os resultados da pesquisa, além de o colocarem em uma posição nem sempre fácil ou isenta de conflitos.

A autora deste trabalho também participou da revisão que ela comenta — o que significa ter atuado como revisora e, ao mesmo tempo, ter refletido em âmbito acadêmico sobre o pro- cesso de revisão da tradução, apresentando-o na forma desta dissertação. É verdade que, quando do ingresso no programa de pós-graduação em Estudos da Tradução, da FFLCH-USP, a revisão da tradução de Almeida estava em curso havia alguns anos. Os princípios de tradução tinham sido delineados em conjunto com as igrejas e o trabalho já estava avançado. Apesar disso, ainda não havia uma “forma final” do texto, nem reações ou repercussão da publicação da revisão, embora já houvesse certa pressão para o término do trabalho.

Nesse momento, de integração de um trabalho prático com as reflexões acadêmicas, toma- se consciência da situação ambivalente à qual o pesquisador se sujeita ao criticar o próprio traba- lho. Essa posição assumida, como se percebeu ao longo do tempo, facilitou, por um lado, o acesso

a meandros do projeto talvez indisponíveis a outros pesquisadores. Um observador externo pro- vavelmente teria tido mais dificuldades de adentrar certas particularidades do trabalho. Além disso, a pesquisadora teve à disposição suas próprias vivências e memórias para compor a pes- quisa. Porém, houve momentos em que essa posição levou a situações pouco confortáveis.

À medida que o conhecimento no campo da tradução se aprimorava, por meio dos pro- dutivos encontros com o orientador, dos cursos frequentados na USP, das trocas com colegas do departamento, das conversas com professores da área, das leituras e do estudo, a revisão avançava, e, com um olhar em constante transformação, a pesquisadora via esse novo texto ganhar forma, não apenas de maneira passiva, mas participando de suas mudanças junto à equipe. Mirando tudo isso em retrospecto, é possível perceber que o desconforto tem sua natu- reza justamente no conflito existente entre o que se aprende e entende sobre tradução e aquilo que é possível realizar dentro de um projeto com um escopo pré-determinado.

O que se observou, ao comentar os textos, por meio também da tentativa de explicitação do raciocínio que levou à tomada de determinadas decisões de revisão, é que bíblias são um objeto de análise singular. Há várias questões sui generis diretamente relacionadas ao trabalho de tradução da Bíblia, dentre as quais a noção de “texto sagrado”, que implica reconhecimento da importância e do valor que não apenas os leitores dão a essa obra, mas também os próprios tradutores. Além disso, o status desse texto para a comunidade religiosa é o de revelação da própria divindade, o que também pressiona e impacta o trabalho.

A revisão é um tema que se revelou extremamente importante no campo da tradução bíblica, a despeito da pouca abordagem que recebeu no âmbito acadêmico. Por meio de alguns exemplos, observou-se que essa é uma atividade constante no campo da tradução bíblica e que merece maior exploração.

No comentário aos textos da revisão, o que se buscou propriamente foi contextualizar e discutir os elementos trabalhados em cada passagem bíblica do corpus. Além disso, foram apre- sentadas dúvidas que surgiram ao longo da revisão, caminhos possíveis (e rotas efetivamente tomadas), discussões que ocorreram em equipe (e as posições, por vezes divergentes, daqueles que fizeram parte dela) — até se chegar ao texto tal qual se apresentou ao fim da revisão.

As principais mudanças identificadas tiveram a ver com atualização lexical, eliminação de mesóclises e rearranjos na sintaxe e na pontuação dos textos. Isso tudo foi feito a fim de facilitar a leitura e a compreensão. Além dessas, houve a mudança da segunda pessoa prono- minal para as formas “você” e ”vocês”, “senhor” e “senhores”, “senhora” e “senhoras” e a

adoção, em certos casos, de uma linguagem inclusiva de gênero, substituindo termos como “homens” por palavras como “pessoas”, “seres humanos” e “gente”.

Espera-se que esse intento tenha possibilitado uma visão abrangente do trabalho de re- visão, incluindo os desafios, em diferentes níveis, desse projeto.

Quanto à analítica de Berman, ela se mostrou, por um lado, um método interessante de análise. Ela avalia a tradução à luz do original. No caso de uma revisão, há, na prática, dois “ori- ginais”, por assim dizer: o primeiro, aquele na língua de composição do texto (no caso da Bíblia, os textos em hebraico, aramaico e grego); e o segundo, o “original” na língua de chegada, ou seja, a tradução que é objeto da revisão (nesse caso, o texto de Almeida em português). Ambos os textos são fundamentais, embora o texto na língua de partida seja o norteador da avaliação, de onde se buscará as conclusões quanto à existência ou não das tendências deformadoras. Isso por- que as deformações que a tradução promove destroem sistematicamente o texto na língua de ori- gem, prejudicando a qualidade da tradução e o contato do leitor com a obra.

Ao mesmo tempo, o trabalho com os textos permitiu, em certo sentido, repensar a pró- pria crítica que Berman faz. Não é recomendável que os parâmetros que ele propõe levem à desqualificação das traduções, de forma sumária. É preciso, antes, observar o escopo dos pro- jetos de tradução e avaliar de que modo essas tendências que ele aponta se apresentam.

Na Nova Almeida Atualizada, observou-se, por exemplo, um esforço em adotar opções que corrigissem problemas na tradução anterior, como no caso de Gênesis 1.27, com a substitui- ção do termo “homem” (adam) por “ser humano”, mantendo a palavra “homem” como tradução de zakar, pessoa do sexo masculino. Esse é um ganho bastante significativo dessa tradução em termos de enquadrar-se ao original, além de ter potencial para impactar as comunidades leitoras. Em outras passagens bíblicas, por outro lado, evidenciou-se um alongamento dos textos, justamente pelo acréscimo de clarificações e pela necessidade de introduzir mais pronomes, com a mudança da segunda para a terceira pessoa. Além disso, algumas atualizações da lingua- gem, ao eliminar certos verbetes e expressões, substituindo-os por vocábulos conhecidos, pro- duziram uma perda de especificidade nos termos.

Um exemplo está em 2Cr 13.5, um texto que não entrou na análise do corpus, mas que vale a pena mencionar. A atualização proposta ali clarificou a tradução, porém tirou do texto bíblico uma imagem importante. Onde originalmente a Almeida trazia “aliança de sal”, e o hebraico, a mesma coisa, depois da revisão ficou “aliança perpétua”. A justificativa da equipe foi facilitar a compreensão do leitor. Porém, o sal é um elemento importante no contexto da