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“De que forma uma hidrelétrica modifica o modo de vida existente mesmo antes do início de sua construção?” A questão mencionada e que me fez decidir por estudar a análise de situação de fronteira em Pimental, ante a iminente chegada da UHE de São Luiz do Tapajós também me posicionou diante de realidades marcadas por muita tensão, com bastante intensidade elementos com os quais convivi durante todo o processo de elaboração deste estudo, como pontuei na primeira narrativa desta dissertação, ainda no primeiro capítulo.

Região que representa a última fronteira da América Latina (MARTINS, 2009, p. 132), a Amazônia está repleta de conflitos. Não foi outro o cenário que procurei analisar: temporalidades, atores, visões de mundo e culturas que, ao se encontrarem, se desencontram. E mais, estudar como esses conflitos são mobilizados, depois da chegada da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós.

Assim como outras localidades da Amazônia, Pimental vem sofrendo o processo de exploração e conflitos desde sua fundação. Foi-se o tempo do látex e do auge do ouro. Atualizada por meio de uma política de desenvolvimento do País, promovida pelos governos de Lula e Dilma, a exploração chega novamente a Pimental com um novo objetivo, o de aproveitar o potencial energético do rio Tapajós com vistas para o desenvolvimento do País. Mais uma vez Pimental servirá de aporte de recursos renováveis em prol dos interesses nacionais, definidos nos centros hegemônicos do poder nacional, sem ser percebido com base em sua realidade, sob o ponto de vista dos próprios habitantes, que estão à margem do poder decisório. Pimental aparece, agora, no mapa brasileiro, para ser colocada debaixo d´água.

Conquanto o processo de leilão da obra esteja parado desde o segundo semestre de 2014, a hidrelétrica existe. A partir de sua chegada, o processo de construção da obra começa e diferentes atores aparecem, novas formas de articulação e sociabilidade são construídas. Articulações entre ministérios, empresas, movimentos sociais são criadas.

Todos esses e outros acontecimentos prévios à sua construção, aliados à própria ameaça de destruição do local, têm mudado a dinâmica das relações sociais em Pimental. À primeira vista, moradores relatavam a mudança que sentiam depois de saberem da possibilidade de construção da obra, isto é , a divisão entre aqueles que se posicionam contra o empreendimento ou aqueles que não demonstram qualquer resistência à obra.

Porém, tanto os relatos dos moradores quanto a própria territorialidade de Pimental mostraram elementos para além do conflito daqueles que são contra e dos que estão

a favor da obra, revelando que a vinda dessa frente pioneira é mais um dos momentos de situação de fronteira aí vivida.

Antes dela, Pimental já esteve diante da expulsão dos índios pelos migrantes que atuavam na exploração da borracha e construíram a igreja católica, presenciou a inserção dos primeiros elementos da modernidade, com as primeiras ações do Estado por meio da construção da escola, das rodovias, por promover a colonização na Amazônia e ter recebido a igreja evangélica.

Não só os moradores, por meio de seus relatos, mostram essa trajetória, mas a própria territorialidade de Pimental a demonstra. Desde os diferentes tipos de casas construídas, que revelam diferentes tempos até o contínuo processo de deslocamento daqueles que outrora haviam sido agentes da frente de expansão e que hoje são expulsos da centralidade de Pimental por novos agentes, mostram o que está por trás dos conflitos e mudanças mobilizadas pela usina hidrelétrica.

Uma das principais constatações do estudo foi o fato de o conflito em relação à hidrelétrica, mais do que ser expresso por meio de discursos políticos formalizados, como a questão político-partidária ou em relação aos impactos socioambientais, produziram figurações de oposição tendo por referência a localização de moradia e a confissão religiosa, elementos peculiares na forma de enfrentamento da questão em Pimental.

Pude perceber na localidade que, além daqueles que estão contra e a favor da obra, há também outras duas principais distinções: os católicos e evangélicos e aqueles que moram na ponta de baixo e os que estão na ponta de cima. São essas as distinções que, nas entrelinhas das entrevistas e na configuração do território, expressam os diversos momentos da fronteira e dos agentes de expansão.

Por meio dos elementos de figuração (Elias&Scotson, 2000) que os moradores de Pimental usam para distinguir aqueles que moram na ponta de cima e os que estão na ponta

de baixo, constata-se que, enquanto a centralidade de Pimental está na ponta de baixo, onde se

localizam os “ricos” e os principais serviços (escola, padaria, bares), a periferia está na ponta

de cima, onde vivem os “barraqueiros”.

A ponta de baixo representa,,ainda, a entrada dos agentes de expansão, já que nela se deu o início da ocupação e foi construída a primeira sede da Igreja de São Sebastião e é a partir dela que o fluxo de deslocamento de fronteira acontece, pois os agentes da frente de expansão que chegavam, expulsaram os que lá estavam para a ponta de cima.

Nesse fluxo de deslocamento, apresentou-se para mim, durante a pesquisa de campo, o seguinte cenário: os católicos, que no início do século XX eram os agentes de

expansão em Pimental, com o advento da construção da usina hidrelétrica, estão à margem, na

ponta de cima, enquanto que a centralidade de Pimental é ocupada pelos evangélicos.

Não só o fluxo de deslocamento mostra as transformações nas relações sociais e de poder, mas, durante as entrevistas, ficou claro que os católicos estão perdendo espaço também em seus adeptos, já que todos os entrevistados que não declararam ter religião, têm origem católica.

Ao analisar essas mudanças com relação à usina hidrelétrica, observa-se que a maioria dos católicos está contra a obra, ao mesmo tempo em que a maior parte dos evangélicos não oferece qualquer resistência ao empreendimento. Seguindo essa análise, são os chamados “barraqueiros” os católicos que se posicionam contra a hidrelétrica, enquanto que os “ricos”, os evangélicos, não exercem qualquer manifestação de resistência.

Pelo fato de os católicos serem os que vêm sofrendo há mais tempo o processo de expulsão, há por parte deles uma resistência maior, ao mesmo tempo em que os evangélicos, sendo os agentes de expansão da fronteira, ganham mais espaço em Pimental e abrem caminho para a chegada da hidrelétrica. Importa citar que, durante as entrevistas, os evangélicos foram os que mais se apropriaram dos valores do capitalismo, como o trabalho, por exemplo.

Depois da chegada dos evangélicos em Pimental, as festas diminuíram, as partidas de futebol passaram a ser cada vez mais escassas e os valores culturais vêm, aos poucos, dando lugar a símbolos e eventos pátrios. A Festa de São Sebastião, motivo pelo qual Pimental recebia até a década de 1980 visitantes de toda a região do Alto e Médio Tapajós, não consegue receber apoio da totalidade dos moradores de Pimental, enquanto que a comemoração do Dia da Independência do Brasil é realizada em toda a comunidade, desde a

ponta de baixo até a ponta de cima.

Ao promover a mudança da celebração do santo que significava o messianismo, isto é, o permanente deslocamento pelo território em busca do messias e da terra prometida, pelos ritos pátrios do Dia da Independência (desfile, hino nacional, etc.), a Assembleia de Deus, como agente mais recente de expansão e com mais adeptos, mostra que esta frente de expansão não se desloca em direção ao passado, como é próprio dos movimentos milenaristas, mas abraçam o futuro, ainda que o preço seja o alagamento definitivo da região: eis a porta aberta para a entrada da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós.

São os diferentes códigos e figurações que me foram apresentados durante as entrevistas e observações no trabalho de campo, que me levaram à constatação de que mais do que criar uma divisão em Pimental entre aqueles que estão contra e os que estão a favor da

obra, a usina hidrelétrica mobiliza os diversos conflitos existentes, a partir dos momentos de fronteira pelos quais tem passado. São os diferentes agentes da frente de expansão, com perspectivas de mundo, temporalidades e culturas distintas que convivem, ou melhor, estão em conflito em Pimental.

Todo esse cotidiano de encontro nos desencontros são vividos mais de perto pelas pessoas que estão mais presentes no cotidiano. Dado que os homens passam a maior parte do tempo (semanas, meses e, em alguns casos, anos) fora de Pimental, seja na pesca, no garimpo, na roça ou na extração de madeira e palmito, são as mulheres que convivem dia a dia todas essas transformações.

As 34 mulheres de Pimental que entrevistei, pontuaram em suas falas, principalmente, elementos como a preocupação com os filhos e a presença de Deus como aquele que vai determinar um melhor destino para ela e sua família diante da ameaça da hidrelétrica. Elas se colocam em uma posição que acreditam que deva pertencer à mulher, ou seja, passiva diante dos acontecimentos. Essa imagem que elas têm da mulher, obviamente, é aquela que, culturalmente, está representada na sociedade à qual pertencem, isto é, mulher é sempre, como mostra Spivak (2010), o ser subalterno, sempre aquela que está à margem (Martins, 2009, p. 141).

Ainda assim, em seus depoimentos – ou mesmo nas entrelinhas de suas entrevistas captadas por uma constante observação de seus cotidianos – essas mulheres revelam diferentes saídas para viver seu dia a dia e a posição de subalternas. Seja na cantoria de Maria José que, apesar de ser proibida de cantar, encontra um meio para fazê-lo, ou no fato de Marsuíta ignorar a opinião do companheiro e continuar indo às festas, ou na escolha que Ana fez pelo esporte e não pela igreja, as mulheres resistem, pouco a pouco, passo a passo a sua posição à margem, à subalternidade.

Esses são alguns dos elementos que esta pesquisa captou e que podem somar aos futuros estudos com relação ao cotidiano dessas mulheres e como ele se reproduz na História, nas tomadas de decisões e mudanças sociais.

O dia a dia dessas mulheres, o processo de expulsão vivido pelos católicos que outrora expulsaram os índios, a chegada dos novos agentes da frente de expansão, os evangélicos, que, com uma crescente aceitação por parte de outros moradores de Pimental, abrem caminhos para a chegada da hidrelétrica, constroem um conjunto de elementos e códigos que não poderiam ser analisados em um momento posterior à instalação do empreendimento hidrelétrico.

Pimental, passada mais de uma década do século XXI, ainda vive em uma situação de fronteira e mostra que a temática está cada vez mais atual e continua sendo um pilar na estrutura da sociedade brasileira. Dessa forma, conhecer e analisar os diversos conflitos presentes em Pimental, mobilizados diante da Usina Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, contribuiu para “decifrarmos a fronteira fundante do que somos, mergulhar nos desvendamentos por meio dos quais podemos nos reconhecer no conhecimento do que a sociedade brasileira é” (MARTINS, 2009).