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Considerações finais: superando obstáculos epistemológicos e didático-epistemológicos

Os resultados obtidos até o momento permitem avançar algumas conclusões sobre as dificuldades a serem enfrentadas na transposição de conteúdos de Física Moderna e Contemporânea para o Ensino Médio. Os problemas enfrentados podem ser entendidos em termos de obstáculos de dois tipos: epistemológicos e didático-pedagógicos. A noção de obstáculo epistemológico foi introduzida por Bachelard (1938) ao tratar a formação do espírito científico. Os obstáculos propostos por Bachelard são limitados a uns poucos tipos, e adequados para interpretar a superação do pensa- mento científico em relação ao nascimento e desenvolvimento da ciência moderna. Inspirados na abordagem bachelardiana, buscamos associar as dificuldades presentes no processo de ensino/aprendizagem ligadas à es- truturação/desenvolvimento do conhecimento das Teorias Modernas e Contemporâneas como obstáculos epistemológicos. Da mesma forma, as dificuldades ligadas à inserção de tais conhecimentos no Sistema do Ensino Médio serão tratadas como obstáculos didático-pedagógicos.

A idéia de propor a existência de obstáculos epistemológicos espe- cialmente ligados à Transposição Didática da Física Moderna, e que dife-

rem daqueles eventualmente ligados à Física Clássica, parte da hipótese de que a Física Clássica assume idéias forjadas a partir do cotidiano, enquanto a Física Moderna é resultante da exaustão de idéias clássicas.

Os obstáculos epistemológicos seriam de quatro tipos: Fenome- nologia, Linguagem/formalização, Estruturação conceitual, Ontologia de base. De maneira sucinta, cada um desses obstáculos se fundamenta nas dificuldades observadas na construção de Saberes a Ensinar, destinados ao ensino-aprendizagem em Nível Médio. Abaixo, descreveremos de maneira sucinta cada um destes obstáculos.

Fenomenologia – A grande maioria dos fenômenos sobre os quais

estão alicerçados os conteúdos da Física Clássica estão acessíveis no coti- diano e/ou em laboratórios didáticos na forma de atividades experimentais simples. Os fenômenos sobre os quais se fundamentam as Teorias Mo- dernas e Contemporâneas pertencem a um mundo para além dos limites do cotidiano: do muito pequeno, do muito rápido, do muito antigo, etc. Tais fenômenos não são acessíveis no cotidiano, nem passíveis de serem apresentados por meio de experimentos simples em laboratórios didáticos. Apenas para ilustrar essas afirmações, enquanto um gotejar que gera uma onda circular num lago ou numa cuba de ondas pode ser utilizado para iniciar uma discussão sobre o conceito de onda mecânica, qual fenômeno pode ser utilizado para se discutir a natureza dual da luz?

Linguagem/formalização – Grande parte dos conteúdos de Física

Clássica pôde ser transposto para o ambiente escolar por meio de um forma- lismo matemático simplificado, composto por Álgebra e Geometria básicas. Em contrapartida, as Teorias Modernas e Contemporâneas estão estruturadas sobre Matemáticas complexas, como as funções de probabilidade, os tenso- res, etc. Não estão disponíveis transposições didáticas destinadas ao Ensino Médio que diminuam a exigência em termos de linguagem matemática para esses conteúdos. Esse tipo de problema tem sido tratado na literatura de duas formas: uma em termos de exigência de pré-requisitos instrumentais (por exemplo, MÜLLER, R. e WIESNER, H. 2002, que pesquisa o ensino/ aprendizagem de estudantes de classes avançadas de Física); outro, optando por uma Física mais conceitual e qualitativa. O trabalho de Brockington (2005) e Brockington e Pietrocola (2005) enfrentam esse obstáculo por meio de uma abordagem epistemológica sobre o tema dualidade onda-partícula.

Estruturação conceitual – Os Conceitos científicos clássicos po-

dem ser entendidos como extensão de conceitos presentes no conhecimen- to de senso comum, mantendo compromissos deterministas: força, tempe- ratura calor, energia, tempo e espaço absoluto são exemplos de conceitos

que encontram equivalentes no contexto do conhecimento intuitivo sobre o mundo. Tais conceitos foram/são objetos de pesquisas sobre concepções alternativas11, processos e desenvolvimento cognitivo12. Os conceitos pre-

sentes na Física Moderna e Contemporânea rompem com idéias cotidianas e, mais do que isso, necessitam de idéias contra-intuitivas que rompem com a base do entendimento humano, como o determinismo probabilístico: posição, orbital, spin, massa reduzida, tempo e espaço relativos são nomes passíveis de associação com conceitos intuitivos; no entanto, devem ser entendidos como “cemitérios de linguagem anterior”.

Ontologia de base – As entidades clássicas são construídas a partir

de objetos presentes no mundo perceptível: partículas, onda, espaço, tem- po, energia etc. As entidades presentes nas teorias modernas e contempo- râneas são construídas contra o senso comum: massa reduzida, quantum de energia, partículas virtuais, espaço curvo são entidades que gozam de características particulares e encerram propriedades e comportamento mui- to distintos dos objetos que povoam o mundo cotidiano13.

Os obstáculos didático-pedagógicos são aqueles tratados por Brous- seau (1986) e oriundos de práticas de ensino, hábitos e enfoques didáticos presentes no sistema de ensino. Da mesma forma, usaremos a noção de Obstáculos Didático-pedagógicos de forma a definir os condicionantes do sistema de ensino que dificultam/impedem a introdução dos conteúdos de Física Moderna e Contemporânea. Os condicionantes foram forjados ao longo de mais de 200 anos de história de ensino de Física e colaboram para que a Física Clássica esteja tão bem estabelecida nas salas de aula.

A idéia de que existem obstáculos didático-epistemológicos parte da hipótese de que o Ensino de Física Clássica é fruto de um processo de

Transposição Didática validado historicamente. Erros e acertos seleciona-

ram conteúdos, definiram atividades, aperfeiçoaram formas de avaliação, gerando um saber escolar adaptado ao sistema de ensino, por isso altamen- te estável.

Os obstáculos didático-pedagógicos para a introdução das Teorias modernas e Contemporâneas no Ensino Médio são: Hierarquia conceitual de pré-requisitos; Didática intuitiva dos professores, Seleção de conteúdos, Tipos de atividades propostas, Avaliação.

Cada um desses obstáculos se fundamenta nas dificuldades obser- vadas na construção dos Saberes Ensinados destinados ao ensino-aprendi-

11 Tradição do Movimento das Concepções Alternativas. 12 Tradição Piagetiana.

zagem em Nível Médio. Abaixo, descreveremos de maneira sucinta cada um destes obstáculos.

Hierarquia conceitual de pré-requisitos – indica que os concei-

tos mais simples devem anteceder os mais complexos Essa crença liga- da a uma concepção de que a história da Física evidencia uma seqüência conceitual crescente impede que se tomem as teorias do século XX como fontes para uma Transposição Didática. Nessa perspectiva, o mais velho é conceitualmente dependente do mais novo, e não pode ser ensinado sem o ensino do primeiro.

Didática intuitiva dos professores – existe uma forma intuitiva

de ensinar Física, que se manifesta na prática e na fala de professores e alunos. Essa prática sugere que o ensino de Física contém, por exemplo, problemas e exercícios fechados. Também indica o que não se configura como ensino de Física, como por exemplo a leitura de textos ou as questões conceituais.

Seleção de conteúdos – Os programas tradicionais de Física agru-

pam conteúdos que se pretendem historicamente validados como saberes ensináveis. Inovar, buscando outros conteúdos, é assumir riscos, muitas vezes desnecessários.

Tipos de atividades propostas – Assim como os conteúdos, exis-

tem atividades exemplares que “funcionam” no ensino/aprendizagem de Física. Por exemplo, a resolução de problemas fechados, amplamente estu- dados e pesquisados na área, são a maneira exemplar de desenvolver ativi- dades nas aulas de Física. Isso fica claro quando se tenta alterar o cotidiano escolar com atividades diferentes, como, por exemplo, o desenvolvimento de projetos, etc.

Avaliação – Finalmente, a avaliação é um dos pontos mais sensíveis

no gerenciamento do sistema de ensino14. Na Física há um consenso sobre

como e o que avaliar, e muitas vezes mudanças nos saberes escolares invia- bilizam as formas tradicionais de avaliação, produzindo resistência.

A Transposição da Física Moderna para a sala de aula do Ensino Médio deve ser vista como uma tarefa das mais complexas. De um lado têm-se as exigências epistemológicas inerentes ao campo de conhecimento produzido pela Física Moderna, muito distantes dos padrões de entendi- mento forjados no mundo cotidiano. Por outro lado, as exigências do domí- nio escolar não são menores; Ideologia, necessidades de natureza didática e tradição se entrelaçam na constituição de um domínio particular. Tem-se

14 Ver o papel desempenhado pela avaliação na consolidação do que Brousseau definiu como “contrato didático” (RICARDO; SLONGO; PIETROCOLA, 2003).

de fato um problema complexo e com solução não óbvia: como satisfazer ambos os domínios? Será possível manter o rigor conceitual e ao mesmo tempo satisfazer as exigências do sistema didático? Questões como esta precisam ser respondidas em termos de pesquisa aplicada, na forma de pro- postas e análises de atividades de sala de aula. Somente a sala de aula será capaz de fornecer elementos capazes de guiar os processos de atualização dos currículos de Física da Educação Básica.

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Considerações finais sobre