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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No documento Thomas Kuhn e o Relativismo (páginas 125-127)

Toda a confrontação de Popper e Kuhn assenta na dicotomia relativismo-realismo. Popper tentou reduzir Kuhn a um contexto relativista, mas a sua argumentação não é suficientemente sólida como se tentou demonstrar neste trabalho.

Pelos critérios de Popper uma posição relativista é aquela que caracteriza a ciência como um processo arbitrário. E isso acontece, como afirma, quando se descreve a actividade científica, sem ter em atenção vários requisitos essenciais:

• Que nela as decisões são premeditadas e baseadas em critérios lógicos;

• Que parte do seu processo de selecção se faz através do confronto entre conteúdos e fenómenos naturais;

• Que todas as teorias podem ser comparadas racionalmente;

• Que existe uma realidade e que é ela a referência última do progresso científico.

Com o propósito de se saber se as teses de Kuhn são ou não relativistas à luz dos critérios de Popper, desenvolveram-se duas linhas de raciocínio.

Em primeiro lugar, com o propósito de verificar se Kuhn cumpre os requisitos de racionalidade popperianos. E concluíu-se afirmativamente: a sua filosofia cumpre todos os requisitos acima mencionados, o que bastaria para que não se deva considerar Kuhn um relativista simples.

Em segundo lugar procurou-se averiguar porque razão Popper acusou Kuhn de ser relativista apesar de cumprir nas suas teses todos os referidos requisitos. E concluíu-se que aparentemente Popper não respeitou nessa análise as suas próprias condições abstractas de racionalidade. De facto, é notória a inconsistência entre os requisitos de avaliação de Popper e as conclusões que retira, face aos princípios epistemológicos assumidos nas teses de Kuhn.

A explicação para esta manifesta incapacidade de Popper deve-se, nos termos desta investigação, à sua incompreensão do processo de emergência dos conteúdos abstractos, um processo que, segundo Kuhn, é imanente ao próprio desenvolvimento da estrutura global de uma teoria, seja científica ou filosófica. Popper assumiu como princípio orientador da sua filosofia a separação entre o contexto da descoberta e o contexto de justificação, no qual se crê que a justificação objectiva permite transcender as condições do contexto e da sua evolução histórica. E no entanto, apesar de ter elaborado critérios abstractos de racionalidade, avaliou a filosofia de Kuhn através da lógica que é imanente aos princípios, argumentos e métodos que os contextualizam e lhes conferem significado concreto, um caminho que não o deixou ver toda a profundidade da arquitectura conceptual de Kuhn.

Sem o confronto entre as duas interpretações as teses de Popper parecem internamente claras e coerentes. Foi essa coerência que lhe permitiu legitimar epistemologicamente as suas teorias ao

mesmo tempo que lhe “travaram” o espírito crítico e nomeadamente a possibilidade de aprender com a filosofia de Kuhn.

De facto, quando Popper isola toda a subjectividade do empreendimento científico do processo de justificação racional, deixa entrever como a sua visão é limitante.

Kuhn, pelo seu lado, inovou, apresentou uma solução consistente para o problema da referencialidade e da complexificação das estruturas científicas, e foi capaz de desenvolver uma explicação para o relacionamento entre as dimensões subjectiva e objectiva. A solução passou por demonstrar a influência multidimensional na edificação da estrutura do processo de escolha circunstancial. É essa complexidade que explica, segundo a admirável visão de Kuhn, o elevado grau de determinação do progresso e da complexificação das teorias científicas.

Esta ruptura sustentou e sustenta-se na emergência de quatro conceptualizações – os valores, a percepção, a incomensurabilidade e a realidade-nicho – e da consequente reorganização da epistemologia. Todos estes conceitos convocam inúmeras questões sobre a efectividade do processo lógico da descoberta e justificação científica e não permitem manter um “olhar” simplificado sobre a sua dinâmica.

Esta tese representa a ciência khuniana como luta pelo poder.

Mas este poder é de um tipo diferente, porque tem como objectivo último ligar o homem à natureza. E fazê-lo da melhor forma possível. É luta pelo poder porque exactamente esse “caminho” não é predeterminado. A trajectória do progresso faz-se através de inúmeras alternativas e onde o processo de escolha depende, também ele, de inúmeras pequenas escolhas que são feitas diariamente pelos cientistas, de acordo com o seu estado referencial. Neste sentido, a ciência é criação de realidade. Mas, simultaneamente, existem fenómenos naturais regulares que funcionam como estímulos que constrangem as escolhas, dos quais emanam instruções que permitem edificar estruturas cognitivas ajustadas a esses estímulos. Logo, neste sentido a ciência também é descoberta da realidade.

É esta, assim, a essência conclusiva da nossa tese: Kuhn concebeu uma teoria do conhecimento com argumentos que conciliam a dicotomia relativismo-realismo. Kuhn desenvolveu uma filosofia cuja lógica é diferente da de Popper, o que não significa que seja um relativista simples, bem pelo contrário: respeita todos os princípios realistas e é substancialmente mais abrangente, lógica e empiricamente.

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