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3.2 A tradução da tradição poética nas vozes de Adriana Calcanhotto e Angélica Torres

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou demonstrar que a pós-modernidade, com seus processos intrínsecos de viabilização, influencia potencialmente as questões ligadas à constituição dos sujeitos. O processo complexo da globalização, que não é um fenômeno recente, configura a desestruturação dos saberes e padrões estabelecidos, produzindo laços sociais instáveis, haja vista que esse fenômeno se caracteriza por ser fluido e ter suas fronteiras diluídas.

Os anos de 1990, período em que o termo globalização tornou-se efetivamente difundido, configuram-se como um momento de conturbação mundial. Muitas são as mudanças, e o ritmo com que acontecem é alucinado, reflexo de uma sociedade cada vez mais urbana. Politicamente ocorreram mudanças radicais como a queda do muro de Berlim e do socialismo soviético. Tecnologicamente há uma aproximação dos meios de comunicação de massa com o cotidiano das pessoas, tornando-as praticamente dependentes dos mesmos. Nesse cenário, os progressos tecnológicos em todos os campos ultrapassaram fronteiras, criando um sistema cultural, transnacional, múltiplo e profundamente híbrido.

Nesse sentido, pretendeu-se relacionar esse conceito com a questão da identidade cultural, mediado pelo conceito de pós-modernidade e centrado na tese difundida por Hall (2004), que afirma que as velhas identidades – responsáveis pela estabilidade do mundo social – estão entrando em declínio. Agora, estas são substituídas pelas novas identidades, caracterizadas entre outras coisas pela fragmentação do indivíduo moderno, fato que, para Hall, tem promovido mudanças estruturais nas sociedades. Essa “crise” não se dá apenas no âmbito do feminismo, mas é parte constitutiva de um processo mais amplo, no seio das ciências sociais, da arte e da cultura de modo geral, significando, para alguns, uma ruptura epistemológica denominada de pós-modernidade.

Num tempo de transições e de rupturas de ordem política, social, econômica, cultural, existencial e do conhecimento científico, os elementos de permanência não têm assegurado uma compreensão da realidade em que vivemos. Nessas circunstâncias, segundo Beck, Giddens e Lash (1994), ocorreram transições importantes na vida cotidiana, tanto no caráter da organização social, na estruturação dos sistemas globais e principalmente nas relações sociais que atualmente se efetivam. Desse modo, se anteriormente o peso da tradição normatizava e perpassava valores como verdades absolutas e imutáveis, com o advento da globalização as diásporas culturais se intensificaram. “Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes

94 tradições culturais” (HALL, 2001, p. 88). Assim, a tradução, que etimologicamente vem do latim traduco, significa transferir, transportar entre fronteiras e ressignificar os valores tradicionais possibilitando assim o surgimento de novas identificações globais e novas identificações locais.

Dentro desse cenário, a pesquisa procurou situar – com base numa exposição teórica – os elementos que caracterizam o período atual, a pós-modernidade, como também os efeitos na constituição dos sujeitos pós-modernos e principalmente inserir o feminismo como um dos descentramentos conceituais do sujeito cartesiano. Esse movimento histórico nos anos de 1960, desbravadoramente, abriu o espaço para a contestação da posição social das minorias historicamente silenciadas, dentre elas, as mulheres.

Com base em análises comparativas dos signos sociais e culturais presentes nos poemas de Adélia Prado e Angélica Torres e nas letras de canção de Adriana Calcanhotto, procurou-se perceber o posicionamento do eu lírico feminino no que diz respeito às questões amorosas, existenciais e religiosas, além de verificar como essas questões se inserem no cotidiano feminino atualmente.

A pesquisa deixou claro que a escrita de autoria feminina busca estabelecer representações que questionam as posições ocupadas por homens e mulheres na sociedade e pretende, por intermédio da voz feminina, falar da luta da mulher por espaço, reconhecimento, igualdade, mas, sobretudo, da reformulação da identidade feminina na sociedade.

Nesse sentido, nos textos poéticos selecionados para análise deste estudo, os referenciais simbólicos analisados, a voz do sujeito lírico e o local de enunciação apontam para um tempo marcado por profundas transformações socioculturais, geradora de novos sentidos para a experiência feminina. Assim, é perceptível a afirmação positiva do sujeito feminino na constituição de sua identidade, como no poema “Com licença poética” de Adélia Prado e “Mulheres” de Angélica Torres; ou ainda a demonstração do descentramento e da angústia do sujeito feminino perante as novas configurações da pós-modernidade, como nos poemas “Travessia” e “Labirintos” de Angélica Torres, e a individualização e a desterritorialização do sujeito presentes nos textos poéticos da canção em “Minha música” e “Esquadros” de Adriana Calcanhotto, ou que se possa fazer uma declaração de amor para o amado falando do cotidiano e da convivência de anos como no poema “Para o Zé”, de Adélia Prado.

Em suma, é possível constatar que o amor continua sendo o elemento que move a expressão lírica de autoria feminina, mesmo que utilizando diferentes modos de apresentá-

95 lo. E não se pode negar que os determinantes culturais firmados na tradição ocidental continuam a exercer, em diferentes graus, forte influência na literatura de autoria feminina, mas verifica-se que a pós-modernidade abriu a possibilidade de se ter um novo olhar sobre como as mulheres atualmente se relacionam cultural e socialmente. Porque, ao saírem da invisibilidade imposta pelo regime patriarcal, as mulheres estão circulando por ambientes sem fronteiras definidas. E perante as conflitantes e incertas transformações advindas por meio da pós-modernidade, elas, as mulheres, atualmente revelam e desvelam por intermédio do seu discurso, da sua escrita, a fragmentação que faz parte desse sujeito, o não caber em si, o desejo de satisfação, a sua erotização, sua vivência amorosa e, principalmente, as mulheres passaram a considerar a sua condição feminina dentro da perspectiva de sujeitos e não mais de assujeitadas.

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ANEXO

Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teu ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.

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DISCOGRAFIA

(2010) O micróbio do samba. Sony Music: Minha música (2008) Maré (Adriana Calcanhotto). Sony Music: BMG. CD (2002) Cantada (Adriana Calcanhotto). Sony Music: BMG. CD (2000) Público (Adriana Calcanhotto). Ao vivo

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