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Considerações finais

No documento TRANSFAZER O ESPAÇO (páginas 168-173)

Essa significativa aceleração na velocidade das comunicações teve um resultado paradoxal tendo em vista que aumentou o abismo entre os territórios acessíveis à nova tecnologia e o resto, intensificando o atraso relativo daquelas partes do globo onde o cavalo, o boi, o homem ou o barco ainda definiam a velocidade do transporte.

Pudemos acompanhar no romance, que o público era informado diariamente do percurso de Phileas Fogg, e que isso inclusive definia a cotação na “bolsa de apostas” em Londres.

Ao refletir acerca desse processo desigual e contraditório de acesso a informação, Hobsbawm (1979, p.79), afirma que: “A selvageria do Oeste selvagem e a escuridão do continente escuro eram devidos parcialmente a estes contrastes”. (Grifos do autor).

Essa “selvageria do Oeste” foi explorada no romance com os ataques de índios americanos ao trem que transportava Phileas Fogg e seus acompanhantes – no trecho entre São Francisco e Nova York – assim como pela interrupção da viagem para dar passagem aos milhares de bisões que cruzavam a ferrovia, impedindo a locomoção do trem e a seqüência normal da viagem.

Essa contradição explica o interesse do público pelo viajante explorador que enfrentava as incertezas do desconhecido com nenhuma ajuda complementar da tecnologia moderna. Como por exemplo – no romance de Júlio Verne - no trecho entre Bombaim e Calcutá que estava programado para ser realizado através da ferrovia, não o foi por esse meio de transporte, porque a ferrovia ainda não havia sido concluída, implicando no improviso de um meio de transporte nada convencional: o lombo de um elefante, cujo caminho era a mata fechada.

Nesse sentido, o interesse do público, por aquele homem que viajava até ou a além das fronteiras da tecnologia, fora do território onde a cabine do comando do vapor, o compartimento dormitório do vagão, a pensão

ou o hotel lhe serviam. Fogg viajou nesta fronteira10, daí Hobsbawm

(1979, p.79), concluir que:

O interesse de seu empreendimento residia, simultaneamente na demonstração de que, por um lado, os trilhos, o vapor e o telégrafo praticamente enlaçavam o globo e, por outro lado, que ainda havia uma margem de incerteza, assim como algumas lacunas remanes-centes, que evitavam que viagens através do mundo se tornassem uma rotina.

Então, o romance nos mostra que a intricada rede da economia mundial trazia mesmo as áreas geograficamente mais distantes para ter relações com o resto do mundo. Contava a velocidade – cuja necessidade era cada vez mais crescente, em função do aumento dos fluxos – mas igualmente o nível de repercussão. O próprio acompanhamento diário do

10 Ainda hoje, o viajante que ultrapassa esta fronteira é admirado. Poderíamos citar Ainda hoje, o viajante que ultrapassa esta fronteira é admirado. Poderíamos citar Poderíamos citar alguns programas de televisão que exploram este nicho de público. Por exemplo, o “Globo Repórter” que, sistematicamente, apresenta reportagens “além fronteira”, em áreas desérticas, inóspitas, inexploradas ou de difícil acesso.

percurso do viajante Fogg, evidencia a escala geográfica de repercussão do fato. Ganhará a aposta? Perderá?

O romance aponta os resultados – agora possível e quase imediato – de um acontecimento que, rigorosamente, ninguém em sã consciência sequer imaginava, entretanto, graças a Revolução Industrial e a técnica era

acompanhado a partir de Londres por curiosos e apostadores11.

Repercussão inclusive científica: “Com efeito, um longo artigo foi publicado em 07 de outubro [1872] no Boletim da Sociedade Real de Geografia. Ele versou a questão sob todos os pontos de vista e demonstrou claramente a loucura da iniciativa”. (VERNE, 1998, p.29).

É mister destacar que ainda havia diversas partes do globo terrestre, inclusive na própria Europa (o centro do mundo naquele momento histórico), mais ou menos isoladas. Mas havia alguma dúvida de que, cedo ou tarde, seriam arrastadas para o centro do redemoinho econômico capitalista?

Todas as manifestações contempladas no romance – um sistema financeiro, as estradas de ferro, telégrafos e navios a vapor - afetavam apenas aquele território que já estava mergulhado na economia mundial. Como, apropriadamente, nos adverte Hobsbawm (1979, p.86), não devemos esquecer que, praticamente, toda a Ásia e África, a maior parte da América Latina e mesmo partes significativas da Europa – ainda existiam alheias de qualquer economia que não fosse a da pura troca local e longe de todos os objetos técnicos resultantes do emprego da tecnologia moderna. Não devemos exagerar, portanto, acerca do processo de unificação geográfica

11 Na verdade, o capitalismo sempre foi um negócio mundial, desde os seus primórdios. Sobre essa questão Ianni (1993, p.55) argumenta que: “A rigor, a história do capitalismo pode ser vista com a história da mundialização, da globalização do mundo. Um processo histórico de larga duração, com ciclos de

do mundo, completada entre 1848/75, do qual Phileas Fogg utilizou-se para realizar sua volta ao mundo em 80 dias. A economia mundial, neste período, estava apenas nos primórdios e como decorrência, o processo de unificação do mundo ainda era muito incipiente.

Referências Bibliográficas

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IANNI, O. A sociedade global.2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. LANDES, D. S. A Revolução industrial. In: _______. Prometeu desacorrentado: transformação tecnológica e desenvolvimento industrial na Europa Ocidental, desde 1750 até a nossa época. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 49-129.

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VERNE, J. A volta ao mundo em 80 dias. Trad. Antonio Caruccio-Caporale. Porto Alegre : L& PM, 1998.

“TRANSFAZER O ESPAÇO”:

UMA LEITURA DE “LIVRO DE PRÉ-COISAS”,

DE MANOEL DE BARROS

No documento TRANSFAZER O ESPAÇO (páginas 168-173)