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“ONDE CANTAM AS SERIEMAS”: Percepções Identitárias

No documento TRANSFAZER O ESPAÇO (páginas 81-85)

Robinson Santos Pinheiro Cláudio Benito Oliveira Ferraz

Palavras que iniciam

A geografia há muito vem buscando o diálogo com as outras es -feras dos saberes para compreender determinados conceitos pertinentes a sua alçada como para melhor analisar a materialização de determina-dos fenômenos que se presentificam na realidade vivida hodiernamente1. Nesse sentido, com o intuito de compreendermos a formação identitária sul-mato-grossense, é que buscamos o diálogo com a literatura, trazendo especificamente para a discussão a obra memorialística Onde cantam as

seriemas, escrita pelo escritor e engenheiro agrônomo sul-mato-grossense2

Otávio Gonçalves Gomes. Uma obra que busca retratar o seu período de aventura e desventura de infâncias vivida na década de 1920, desenroladas na atual cidade de Ribas do Rio Pardo.

1 Ver: FERRAZ, Cláudio Benito Oliveira. Geografia e paisagem: entre o olhar e o pensar. São Paulo, 2001. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade de São

Paulo; MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo. O mapa e a trama: ensaios

sobre o conteúdo geográfico em criações romanescas. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2002.

Onde cantam as seriemas é:

Composto de capítulos curtos e extremamente líricos, Onde cantam as seriemas fixa recordações ligadas à fauna e à flora da região e aos

personagens mais marcantes da cidadezinha localizada a aproxima-damente cem quilômetros da capital (BUNGART NETO, 2009, p. 118).

Uma obra que busca recompor os cacos das reminiscências de sua infância, falar das brincadeiras nas árvores, como selecionar os pássaros que mais o agrada ou o instiga para, com isso, o adjetivar, como também selecionar pessoas que no momento que escreve e recorda traz para lumi-nar os sentidos de orientação subjetiva expressa em sua obra. Desta ma-neira, nos colocamos como um possível narrador que irá buscar recompor

os cacos destas reminiscências, assim como o narrador do romance

Crô-nicas de uma morte anunciada, escrita por Gabriel García Marques, ao tentar ajuntar as peças que ajudam a formar o quadro imagético que o permite visualizar o assassinato de Santiago Nasar. Assim o narrador do referido romance expõe seu argumento:

Ela o viu da mesma rede e na mesma posição em que encontrei prostrada pelas últimas luzes da velhice, quando voltei a este po-voado abandonado, tentando recompor, com tantos estilhaços dis-persos, o espelho quebrado da memória (MARQUES, 1998, p. 13).

Esta passagem também nos auxilia a compreender que a memória participa de um constructo social mais amplo, dentro dos processos de co-letivização. Neste sentido, as reminiscências tecidas por Gomes adentram num universo maior, um universo em que deveremos nos apropriar de ou-tras memórias (poemas, crônicas, artigos em revistas científicas ou jornais etc.) e colocar num grau de comparação com as lembranças arquitetadas pelo autor do livro em apreço. A finalidade de tal investida é de buscarmos costurar os fios que tecem esta história memorialística contata por Gomes

a partir do diálogo com outras formas de expressão da sociedade, perscru-tando os esquecimentos, os silenciamentos ou a marginalização de deter-minados grupos sociais como a própria natureza que circunda a produção da sua existência espacial. Consideramos que tanto a espacialidade como a temporalidade muito influem na organização, sistematização e, junto a estes, na seleção de suas memórias.

Também aqui não procuraremos inverter a lógica excludente e pragmática da seleção dos elementos que pertencem à construção discur-siva e seletiva das memórias presentificadas na presente obra em apreço. Como argumenta o historiador Alburquerque Júnior (2009), analisando a construção discursiva da região nordeste, as invenções que buscam criar estereótipos a determinada espacialidade são frutos de relações de poder e do “grau” de saber delas correspondentes. Nesse sentido, Alburquerque Júnior nos faz pensar que não é invertendo a ótica do discurso que os pes-quisadores da construção identitária espacial devem se pautar, devido isto acatar na crença dos que foram estereotipados possuírem uma verdade em si que poderá ser revelada. Como ele mesmo formula (2009, p. 31):

O Próprio Nordeste e os nordestinos são invenções destas deter-minadas relações de poder e do saber a elas correspondente. Não se combate a discriminação simplesmente tentando inverter de di-reção o discurso discriminatório. Não é procurando mostrar quem mente e quem diz a verdade, pois se passa a formular um discurso que parte da premissa de que o discriminado tem uma verdade a ser revelada.

Pensar as reminiscências expressas no romance memorialístico Onde

cantam as seriemas deve levar em consideração o diálogo que traga à tona os elementos esquecidos na presente obra e assim construa um processo de identificação territorial capaz de incorporar as tramas identitárias com um maior agrupamento de informações. Isso permitiria posicionar e entender os processos de identificação territorial, auxiliando a tecer uma teia refle

-xiva que nos oriente na construção de uma identidade territorial que seja multicultural e, por conseguinte, multicolor. Como Stavenhagen (2003) ressalta no fim de seu trabalho, chamando atenção para a necessidade da construção do entendimento do real a partir do diálogo e interação com os diferentes, deve-se promover a “produção” do conhecimento como as redes iucategas, multicoloridas, que servem para muitas coisas, inclusive “para fazer o amor”:

Façamos esforços conjuntos para transformar a linha de cor em um tecido multicultural e multicolor. Como essas redes iucategas multicoloridas e familiares, que servem não para descansar da dura labuta cotidiana, mas também, se assim preferirmos, para sentir a lua e a vida e, inclusive, para fazer o amor (STAVENHAGEN, 2003, p. 55).

Este deve ser, a nosso ver, o papel do geógrafo, um pesquisador que busca escutar e perscrutar as verdades expressas no cotidiano, incor-porando, assim, o máximo de verdades na sua construção discursiva de entendimento das tramas, presentificada na realidade. Sendo que a ordem do discurso aqui exposto é dada a partir das nossas especificidades e limi -tações enquanto geógrafos, não almejamos realizar um trabalho de análise literária. Muito pelo contrário, o que buscamos realizar é uma leitura ge-ográfica de uma obra romanesca, averiguando em que medida o entendi -mento da espacialidade pode ser enriquecido com este diálogo.

Não se trata de negarmos as formas analíticas de produzir ciência –

que tem sua base alicerçada pelo pensamento moderno3. Pelo contrário, a

partir do diálogo almejamos acrescentar elementos que contribuam para a compreensão das significações que os indivíduos constroem em suas espa

-3 Ver: HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens

da mudança cultural. 16. ed. Trad. Adail Ubirajara Sobral; Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2007.

cialidades4. É pensarmos a realidade não mais através de discursos genera-lizantes e sim trazermos a riqueza dos detalhes construídos entre os mais diferenciados grupos sociais durante o ato de viver cotidiano. Não nos esquecendo que a subjetividade pode se apresentar como possuidora das relações do mundo, neste sentido, ao analisarmos a subjetividade pode-mos compreender como o “mundo” acaba sendo recebido e (re)significa -do pelos mais diferencia-dos sujeitos, possui-dores das suas idiossincrasias.

Do onde ao lugar:

No documento TRANSFAZER O ESPAÇO (páginas 81-85)