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Ver além do já estabelecido, além de estereótipos ou além de leituras prévias que afiançam um caminho interpretativo não é tarefa fácil. Na presente dissertação tentou-se enxergar “ALÉM DE”, além dos estereótipos midiáticos que constroem o conceito de marginalidade e que são representados no livro e além das leituras críticas prévias feitas sobre as novelas. Assim, o título da dissertação cobra um duplo sentido e até poderíamos adicionar um terceiro “além de”, já que a novela – segundo a análise feita ao longo desse trabalho – além de exagerar os estereótipos midiáticos dos marginalizados, questiona a hegemonia desses e de outros estereótipos ancorados no imaginário coletivo. Do mesmo modo, ver além ou ver outro caminho interpretativo que abra novas leituras sobre o livro não é fácil, já que é necessário justificar essa leitura um tanto afastada do já estabelecido a partir de uma fundamentação teórica que nesse caso, resultou ser diversa passando pela teoria do cinema e a representação imagética do mundo, a hiper-simulação do simulacro e o cinismo. Contudo, acreditamos que esse percurso teórico de forte ancoragem filosófica atingiu o resultado esperado ou, pelo menos, iniciou uma fundamentação para um caminho que pode ser desenvolvido e melhorado a posteriori. Assim, a dissertação se gestou visando atender essa nova leitura que, embora não desmerece a importância da violência como aspecto importante, dá prioridade à função do narrador como o organizador das histórias apresentadas.

Assim, propomos na nossa leitura que um dos objetivos do livro Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos da escritora carioca Ana Paula Maia é expor e desconstruir os estereótipos sobre os marginalizados e mostrar a humanidade de personagens que são socialmente consideradas inferiores e que são excluídas pelo resto da sociedade. Porém, para que essa empresa tenha um final satisfatório, a autora e os narradores que ela constrói devem amoldar-se às exigências que um mundo como o contemporâneo exige. Dentre as exigências que as sociedades contemporâneas demandam está apresentar um universo que esteja em concordância com a visão de realismo que impera, quer dizer, uma visão de mundo imagético, regida e fundamentada na imagem. O lema “uma imagem vale mais do que mil palavras” parece ser o enunciado que se erige como o primeiro mandamento da “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1995) atual, que deve ser acatado quase religiosamente.

Os narradores de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos devem acomodar a representação do mundo ficcional a essas exigências, apropriando-se de elementos que formam parte das produções audiovisuais. A partir dessa perspectiva teórico-interpretativa foi possível desenvolver a análise dos narradores como entes que aparentam uma objetividade, que simulam ser uma lente de uma câmera para criar a ilusão de apresentar imagens que correspondem a uma realidade verossímil, registrada em tomadas da lente. Porém, essa objetividade se limita ao nível formal, a construção da estrutura narrativa, pois o posicionamento dos narradores tem pouco de objetivo, eles possuem uma atitude crítica sobre os estereótipos representados que estão escondidos por baixo da ironia ou o cinismo com que apresentam as suas histórias e aos marginalizados que nelas se retratam.

O tratamento que cada narrador faz dos marginalizados varia em cada novela, assim como variam os tipos de marginais apresentados em uma e outra novela. Na novela homônima ao livro se apresentam sujeitos marginalizados que vivem em um entorno violento, em um entorno em que lidar com corpos mortos (animais ou humanos) é parte do dia a dia. A marginalidade das personagens, a violência que permeia as suas atitudes e as incongruências das suas personalidades servem como referência para perceber que há algo de “errado” na sua constituição. A partir dessas marcas podemos identificar a exacerbação e exagero da sua representação. O narrador, irônico nesse caso, dota e potencializa as características violentas e brutais das personagens com o objetivo de torná-las absurdas, de questionar essas representações imageticamente elaboradas.

A representação que as produções televisivas, fílmicas ou jornalísticas fizeram, e ainda fazem, dos marginalizados é uma pequena amostra dos estereótipos que os mass-média difundem e incorporam no inconsciente da sociedade. Consciente do poder da imagem e do poder que esses estereótipos têm abarcado na sociedade contemporânea, o narrador potencializa até implodir esses estereótipos, conseguindo com esse procedimento, questionar e criticar os conceitos que foram usados para caracterizar aos marginalizados. Despojados desses estereótipos, o narrador dá passo ao segundo objetivo, investi-los de humanidade, apresentar contradições humanas que são parte de todo sujeito, independentemente da sua posição econômica, social, geográfico ou cultural. Todos os seres humanos oscilam entre o bem e o mal, entre a moral e a imoralidade e todos, absolutamente todos, sucumbem em algum momento a agir do lado errado. A contradição humana, essa que Machado apresenta em sua “Igreja do diabo” ou Edgar Allan Poe mostra em “William Wilson” não se encontram tão afastados da representação dos seres humanos de “Entre rinhas de cachorros e porcos

abatidos”. Ainda que os tempos e os modos como se representa a contradição humana são elaborados de modo distinto, por corresponderem a etapas e horizontes de expectativas muito diferentes, segundo a nossa leitura é esse um dos aspectos que as novelas visam apresentar a contradição humana a partir da representação de personagens estereotipadas.

Diferente tratamento é o utilizado pelo narrador de “O trabalho sujo dos outros”, mas nele também pode identificar-se a necessidade ou o objetivo de apresentar às personagens como seres humanos que devem e precisam retomar a sua condição humana, além do seu trabalho, aparência, cheiro ou condição física. O narrador aqui já não se apresenta como uma lente que apresenta objetivamente os fatos que acontecem. É possível observar com certa clareza a inclinação e preferência por parte do narrador para com as personagens marginalizadas. A crítica aqui não está direcionada a apresentar os estereótipos e sim o confronto entre a sociedade e os marginalizado, entre os que ostentam algum tipo de poder e os que são subjugados. Embora a narrativa se centre na vida de Erasmo Wagner, seus colegas e seus familiares, o objetivo que acreditamos como o mais importante ou principal é o de confrontar essas personagens com o olhar do resto da cidade.

Assim, se configura na novela dois tipos de cínicos (senhoriais e resignados) em uma relação constantemente tensa. Por meio das descrições, o narrador consegue que o leitor se incomode não só pelas descrições escatológicas que faz dos espaços ou dos trabalhos, e sim pela identificação que pode estabelecer com as visões e atitudes cínicas representadas. Do mesmo modo, o narrador incomoda ao leitor quando se representa com muita naturalidade os detritos que são produzidos pelo homem. O narrador novamente confronta ao leitor com a sua falta de educação no que respeita ao universo somático. Desse modo, consegue que o leitor questione os preceitos, ou preconceitos, que dirigem a sua vida e a da sociedade em que vive.

Pelo exposto e pela analise feita de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, acreditamos que essa tentativa de interpretar o livro desde outra aresta, que não fica pressa à violência, e ver as personagens além dos estereótipos com que fabricamos e enxergamos aos outros, sirva como ponto de partida para novas análises, que concordem, discordem ou encontrem novos caminhos para entender melhor as personagens apresentadas nessa e noutras obras da autora. O que enriquece um livro são as leituras que possam ser feitas dele e não os padrões que, infelizmente, determinam o que é canônico ou não canônico, o que deve ou não deve ser lido ou estudado. Que esse texto se torne, assim como propunha Diógenes, uma provocação para que outros consigam enxergar também além dos estereótipos que a

sociedade nos impõe. Porém, não podemos cair na armadilha de dizer que o livro pretende mudar a sociedade ou que é a representação naturalista da sociedade e do pensamento contemporâneo. “Os livros – como dissera o poeta Mario Quintana – não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”. A esses versos podemos acrescentar que os livros só mudam algumas percepções que se tem do mundo e das pessoas.

Por último e para encerrar, diremos – sem querer ser muito pretenciosos – que o marco teórico elaborado e empregado nessa análise pode ser considerado como uma pequena contribuição aos estudos sobre a narrativa contemporânea ou pós-moderna e ao papel que os narradores exercem. O emprego da hiper-simulação por parte do narrador e o cinismo- quinismo são, na nossa perspectiva, duas caraterísticas que podem ser identificadas não só no livro analisado, e sim como uma das caraterísticas ou posicionamentos que os narradores da literatura contemporânea usam para criticar o seu tempo sem ser contestatários ou de se confrontar diretamente com os modos de produção e circulação da arte contemporaneamente. Eclodindo o universo midiático e os seus estereótipos desde dentro do que temos denominado como simulacro e o posicionamento cínico-quínico dos narradores são – possivelmente – duas das caraterísticas mais marcantes dos narradores contemporâneos que, a causa da importância que tem a Indústria Cultural, para a circulação e visibilidade que os autores podem ou não ter, precisam fingir estar de acordo com as imposições, criticando-as com sutileza ou implicitamente. Desse modo, acreditamos que os aspectos teóricos desenvolvidos na presente dissertação servem para abrir novas leituras sobre as narrativas que reproduzam ou “aparentem” reproduzir os estereótipos midiaticamente criados e disseminados.

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