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Até agora temos revisado os recursos audiovisuais usados pelos narradores a partir de uma perspectiva individual. Cada novela foi analisada separadamente, mas com alguns elementos que são compatíveis entre ambas. Porém observando as duas novelas como integrantes da unidade “livro”, percebe-se que elas têm uma relação ainda mais próxima que a temática de universos marginais e a caraterização de Edgar Wilson, Gerson, Erasmo Wagner, Alandelon e Edivardes como seres automatizados e brutalizados pelo trabalho. A procura da unidade “livro” também transcende o fato de que essas personagens marginalizadas e as suas histórias fazem parte da trilogia denominada pela autora como “Saga dos brutos”.

Nas novelas aparece o recurso da simultaneidade, não só como a sincronia entre o tempo do discurso e o tempo das histórias, ela também está vinculada ao tempo e ao espaço da trama, pois as duas histórias acontecem em um mesmo espaço e tempo. É possível observar essa ligação pelo uso parcial do crossover31. O crossover é um recurso usado para determinar os vínculos que se estabelecem entre duas ou mais obras por meio de personagens de histórias que se entrecruzam embora não tenham relação nem repercussão entre si. Nas duas novelas se apresentam dois episódios em que as personagens principais de cada novela se cruzam. Os encontros entre eles são produto do “acaso”, por eventos circunstanciais. Embora as personagens sejam marginalizadas, elas não compartem o mesmo espaço, cada uma delas pertence a distintos guetos, motivo pelo qual nunca antes tinham se encontrado. A greve é um evento que escapa à rotina do lixeiro, o desencadeamento dela provoca que ele deva trabalhar como ajudante do seu primo, modificando as sua rotina laboral e o seu espaço habitual de trabalho, a cidade urbana, especificamente as zonas ricas da cidade, para se adentrar em espaços da periferia.

31 O termo crossover vem sendo usado com uma dupla significação: “Por un lado hace referencia a la

interrelación de personajes e historias de diferentes lugares que en principio no tienen nada en común (en el cómic hay varios famosos ejemplos, como las uniones de personajes que realizan Marvel y DC). Por otro, la expresión crossover books engloba todos aquellos títulos que se dirigen indistintamente a un público joven o adulto, ya sea a propósito o no. De igual forma, denominamos crossover writers a los autores que publican para todo tipo de públicos (Lorenzo Silva, Fernando Marías, Care Santos…); y crossover paths a los ‘lugares comunes’ mediante los que un relato puede alcanzar ambas audiencias”. Essa definição foi feita por Lorenzo A.

Soto Helguera no artigo intitulado “Breve diccionario de nuevos términos para lectores despistados” no dia 13 de abril de 2015 no site http://revistababar.com/wp/breve-diccionario-nuevos-terminos-lectores-despistados/

O primeiro cruzamento se dá quando Erasmo e Edivardes vão trabalhar no desentupimento de uma caixa-d’água em “uma casa velha, com cercas de pau, uma criação de porcos, galinhas espalhadas pelo quintal e uma caixa-d’água nos fundos” (MAIA, 2009, p. 142). Nessa casa também está Edgar que está escolhendo porcos para levar ao matadouro. Os dois homens mantêm uma conversa fútil e Edgar desaparece. Deve-se anotar que esse evento não é referido em “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”.

O segundo evento em que se efetua o cruzamento aparece nas duas novelas, mas a partir de perspectivas diferentes. Em “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos” se descreve um acidente de estrada em que um dos porcos é atropelado por uma mulher com seu carro e devido ao choque o veículo acaba incrustado numa árvore. Edgar e Gerson estão procurando o porco perdido, em um momento determinado “Gerson cruza a pista pouco depois de uma Kombi laranja passar. Os dois homens na Kombi não percebem o carro acidentado, mas sim os porcos na caçamba da caminhonete” (MAIA, 2009, p. 53). Já em “O trabalho sujo dos outros” o narrador conta o fato desde a perspectiva dos homens dentro da Kombi laranja que são Erasmo Wagner e Edivardes, “Passam por uma caminhonete estacionada com porcos na caçamba. Um homem espera para atravessar. Têm a impressão de ver um carro abatido contra uma árvore” (MAIA, 2009, p. 147). O último cruzamento é feito por uma rota frequentemente utilizada por Edgar Wilson e Gerson, mas que Erasmo só conhece quando se vê obrigado a trabalhar com o seu primo. Os dois homens “seguirão por seis quilômetros até chegarem ao restaurante Mandioca Frita da dona Elza. Limparão a caixa de gordura. Ao menos terão um bom almoço, pois dona Elza gosta de tratar bem as pessoas que lhe prestam serviço” (MAIA, 2009, p. 146).

Vistos os cruzamentos de espaços (a estrada e o boteco Madioca Frita) podemos argumentar que esses três eventos são peças chaves para observar o uso do crossover nos textos que afiançam o caráter de trilogia. Essas passagens aproximam às personagens física e espacialmente, embora esses cruzamentos não alterem nem modifiquem a rotina e a vida delas e não sejam transcendentes para entender o desenvolvimento de nenhuma das duas histórias. Porém são importantes para entender que as histórias e personagens estão unidas não só pela marginalidade dos trabalhos e a segregação que sofrem como também porque compartem espaços comuns. Algo parecido acontece com o romance Carvão animal, que fecha a trilogia. A história desse romance se desenvolve muitos anos antes de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, mas ela, se bem que centrada na vida de Ernesto Wesley, permite entender a

vida passada de Edgar Wilson como mineiro e de Erasmo Wagner na prisão. Desse modo, o crossover das três histórias é realizado para estabelecer nexos entre as personagens. Em alguns casos esses nexos são afetivos, já que o bombeiro Ernesto Wesley salva a vida de Edgar Wilson e Erasmo Wagner vinga o assassinato na prisão de Vladimilson, um dos irmãos de Ernesto Wesley. Em vista disso, a relação entre as personagens vaza a simples ligação das personagens pela sua condição de marginalizados.