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2 O GIRO DECOLONIAL NA AMÉRICA LATINA: FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DA PESQUISA

Neste capítulo temos por objetivo ampliar a discussão sobre o significado do conceito de decolonialidade, seus fundamentos políticos, éticos e epistemológicos, bem como apresentar as ideias centrais de intelectuais de referência na constituição deste conceito na América Latina.

Abriremos o capítulo discutindo a crítica decolonial presente no pensamento de Frantz Fanon, considerado por nós e pelos teóricos da rede modernidade/colonialidade como uma das referências mais importantes para a estruturação do debate da decolonialidade. Além disso, o destaque a Fanon é relevante, considerando-se que Paulo Freire citou, em diversos escritos, a obra do pensador antilhano, o que vem a ser mais uma pista de aproximação entre a obra de Freire e a concepção decolonial.

Em seguida, o destaque do capítulo será para o programa de investigação da modernidade/colonialidade latino-americano, suas características gerais, um breve histórico e algumas das principais categorias partilhadas por seus intelectuais.

Cabe, no entanto, ressaltar, mais uma vez, que não se deve utilizar o conceito de decolonialidade para se referir apenas às ideias daqueles que desenvolveram o termo. Mais importante que nome, é a concepção política, ética e epistemológica que lhe é subjacente, concepção, aliás, que tem sido tecida desde a origem do processo colonizador na América Latina, por muitas mãos, no interior de uma plêiade de movimentos de resistência, em diversas perspectivas teóricas e filosóficas, o que justifica a ideia de que a decolonialidade tenha recebido diferentes nomes e originado distintos conceitos em sua história de pelo menos cinco séculos.

Walsh (2014), neste sentido, esclarece que ainda que a rede modernidade/colonialidade tenha começado a usar o termo em 2004, sua herança é muito mais ampla que este grupo. Afirma que as feministas chicanas queer Chela Sandoval e Emma Perez já se referiam à decolonialidade e ao decolonial desde as décadas de 1980 e 1990. Nas décadas de 1950 e 1960, Fanon pensou na descolonização em termos similares aos que sustentam a concepção decolonial de hoje. E, evidentemente, os povos indígenas da América Latina, por mais de 500 anos, têm empreendido formas de luta decolonial. Por isso, considera que a rede não inventou, propriamente, o conceito, mas contribuiu para sua visibilidade, particularmente no mundo acadêmico-intelectual, e para sua utilização como uma categoria de análise.

Propomos que o conceito de decolonialidade seja entendido, a despeito de sua diversidade, como um questionamento radical e uma busca de superação das mais distintas formas de opressão perpetradas pela modernidade/colonialidade contra as classes e os grupos sociais subalternos, sobretudo das regiões colonizadas e neocolonizadas pelas metrópoles euro-norte-americanas, nos planos do existir humano, das relações sociais e econômicas, do pensamento e da educação.

Trata-se de uma concepção, como se depreende do parágrafo anterior, marcada por uma busca persistente pela autonomia, o que só pode ser entendido se tivermos em conta que a decolonialidade tem sido elaborada a partir das ruínas, das feridas, das fendas provocadas pela situação colonial. Portanto, é a partir da dor existencial, da negação de direitos (incluindo os mais elementares, como o direito à vida), da submissão de corpos e formas de pensamento, da interdição a uma educação autônoma que nasce a concepção decolonial.

Sendo esta sua origem, a concepção decolonial, como não poderia deixar de ser, revela sua primeira face como constituída pela negação à negação. Ela é, assim, anticolonial, não eurocêntrica, antirracista, antipatriarcal, anticapitalista, em seus devidos desdobramentos, e assume um enfrentamento crítico contra toda e qualquer forma de exclusão que tenha origem na situação colonial e nas suas consequências históricas. Da negação à negação tem surgido, assim, em sua face positiva, distintas propostas de reinvenção da existência social, do pensamento, da educação, da cultura, da ciência, da filosofia.

É exatamente isso que tem sido chamado de giro ou virada decolonial. Nas palavras de Maldonado-Torres:

en primer lugar, un cambio de perspectiva y actitud que se encuentra en las prácticas y formas de conocimiento de sujetos colonizados, desde los inicios mismos de la colonización, y, en segundo lugar, un proyecto de transformación sistemática y global de las presuposiciones e implicaciones de modernidad, asumido por una variedad de sujetos en diálogo” (MALDONADO-TORRES, 2007, p.160).

Para Maldonado-Torres (2008), o conceito de giro decolonial, em sua expressão mais básica, põe no centro do debate a questão da colonização como componente constitutivo da modernidade, e a descolonização como uma quantidade indefinida de estratégias e formas de contestação com vistas a uma mudança radical nas formas hegemônicas atuais de poder, ser e conhecer.

De outra maneira, Mignolo (2007, p. 26) compreende o giro decolonial como “la conceptualización misma de la colonialidad como constitutiva de la modernidad”, o que

significa dizer que a perspectiva decolonial procura revelar o terror, a morte, a discriminação e o epistemicídio escondidos por detrás da retórica salvacionista da modernidade, assunto que será explorado mais adiante.

Note-se, por esta apresentação bastante sumária da ideia de decolonialidade ou giro decolonial, a possibilidade de se identificar um conjunto de nomes de intelectuais, ativistas, movimentos sociais, líderes revolucionários que poderiam ser inscritos na genealogia do pensamento decolonial, ainda que não tenham utilizado o termo, o qual tem história recente.

É a partir dessa ideia que Walter Mignolo (2007) sustenta que o pensamento decolonial emergiu quando da fundação da modernidade/colonialidade, como sua contrapartida, fato ocorrido nas Américas com o pensamento indígena e o afro-caribenho, nos séculos XVI e XVII, considerado pelo autor como o primeiro momento da genealogia deste pensamento.

O segundo momento, conforme Mignolo, ocorreu na Ásia e na África, nos séculos XVIII e XIX, não relacionado com o pensamento decolonial nas Américas, mas como a resposta da reorganização da modernidade/colonialidade do império britânico e do colonialismo francês.

O terceiro momento, em sua análise, teve lugar na interseção dos movimentos de descolonização na África e Ásia, concorrentes com a Guerra Fria e a liderança ascendente dos Estados Unidos e da União Soviética. E é após a Guerra Fria que o pensamento decolonial começa a traçar sua própria genealogia, conforme Mignolo (2007).

Observamos, assim, que a genealogia do pensamento decolonial proposta por Mignolo estabelece que as produções intelectuais dos integrantes da rede modernidade/colonialidade são herdeiras diretas dos pensamentos de resistência indígena e afro-caribenho que se desenvolveram na América Latina. Isto implica considerar, retomando o que já foi dito, que desde a implantação da matriz colonial de poder, tem havido uma fecunda prática epistêmica decolonial, ainda que uma reflexão mais sistemática sobre o giro decolonial seja recente, por volta dos anos 90 do século XX em diante, quando começa a se articular os principais conceitos que desembocarão no programa de investigação da modernidade/colonialidade latino-americano.

Neste mesmo sentido, Maldonado-Torres (2008) entende que o giro decolonial como uma mudança de atitude que confronta o colonialismo em algumas de suas formas é talvez tão velho como o mundo colonial mesmo, e que esta atitude contestatória tem inspirado distintos projetos decoloniais em vários momentos da modernidade. No entanto, assim como

Mignolo, Maldonado-Torres afirma que é somente no século XX que estes projetos decoloniais começaram a se encontrar e chegaram a criar uma consciência global sobre a relevância do projeto inacabado da descolonização.

el giro des-colonial se trata pues de una revolución en la forma en que variados sujetos colonizados percibían su realidad y sus posibilidades tras la caída de Europa en la Segunda Guerra Mundial. Ya las bases del giro des-colonial estaban planteadas de antemano en el trabajo de intelectuales racializados, en tradiciones orales, en historias, canciones, etc., pero, gracias a eventos históricos particulares, se globaliza a mitad del siglo XX. De ahí en adelante puede decirse que se planteó un giro, ya no sólo al nivel de la actitud de sujetos o de comunidades específicas, sino al nivel del pensamiento mundial (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 70).

Como não é nosso propósito nos aprofundarmos na história mais ampliada da decolonialidade, mas tão só esclarecer o seu significado, em diálogo com autores cujos conceitos e ideias foram construídos no mesmo tempo histórico de Paulo Freire e Orlando Fals Borda (e que, portanto, estão entre si unidos em uma mesma ou assemelhada estrutura de sentimentos), priorizaremos neste capítulo o diálogo com intelectuais do terceiro momento da genealogia proposta por Mignolo.

Cabe ainda ressaltar que tampouco é nossa intenção abordar cada um dos autores que serão aqui discutidos de forma ampla, exaustiva e completa, mas sim destacar alguns dos aspectos de suas ideias que consideramos mais centrais para uma melhor compreensão do significado de decolonialidade, de modo que nos capítulos seguintes da tese possamos articular este significado à educação popular.

2.1 A CRÍTICA DECOLONIAL EM FRANTZ FANON

Frantz Fanon é considerado um autor-chave na constituição do pensamento decolonial22. Suas obras e sua militância em movimentos anticoloniais são reconhecidas como um testemunho de luta contra as mais diferentes formas de opressão perpetradas pelo colonialismo, particularmente o racismo, categoria que, como veremos, é central a todo e qualquer teórico decolonial. Fanon costuma também ser apresentado como precursor dos estudos pós-coloniais e suas ideias, segundo Lewis Gordon (2008, p. 12), “estimularam obras influentes no pensamento político e social, na teoria da literatura, nos estudos culturais e na filosofia”.

22 Veja-se, por exemplo, os textos “Apuntes hacia una metodología fanoniana para la decolonización de las ciencias sociales” de Ramón Grosfoguel (2009) e “Frantz Fanon y la opción decolonial: el conocimiento y lo político” de Walter Mignolo (2009).

No entanto, de acordo com este mesmo autor, apenas na década de 1980, com a ascensão dos estudos pós-coloniais e, sobretudo, nos anos 1990, com a visibilidade da filosofia da Diáspora Africana, que o conjunto da obra de Fanon passou a ser mais reconhecido. Cabe destacar que antes disso, desde os anos 1960, Paulo Freire já lia e citava Fanon em suas obras, incorporando problemáticas centrais da filosofia fanoniana à sua pedagogia.

Fanon nasceu em 1925 em Fort-de-France, na Martinica, em uma família de classe média, que lhe possibilitou estudar no Liceu Schoelcher, a mais prestigiada escola de ensino médio da época, onde Fanon foi aluno do escritor Aimé Césaire, que exerceu uma forte influência em sua obra e vida política desde então. Nos anos 1940 muda-se para a França, onde se forma em medicina/psiquiatria, e lá também estuda filosofia, antropologia, literatura e teatro. Participou de vários movimentos anticolonialistas, destacando-se sua atuação como psiquiatra e jornalista político em países do Norte da África, como Argélia e Tunísia, onde lutou ao lado das forças de resistência contra a colonização europeia. Fanon morreu em 1961, com apenas 36 anos, vítima de leucemia.

Em função de sua prematura morte, a obra de Fanon, apesar de influente, não é extensa. Escreveu quatro livros: Pele Negra, Máscaras Brancas (1952); L’an V de la révolution algérienne (1959), também publicado em inglês com o nome A Dying Colonialism; Os Condenados da Terra (1961); e Pela Revolução Africana (1964), publicação póstuma.

Destes, os livros de 1952 e 1961 foram os mais lidos e influentes, particularmente Os Condenados da Terra, que contou com um prefácio de Jean-Paul Sartre, o mais importante intelectual do período e que ajudou a disseminar a obra. Estes foram também os livros que utilizamos para compreender a crítica decolonial de Fanon, que passamos a esboçar.

Ambos os livros buscam traçar o perfil da situação colonial, a utilização do racismo como recurso de domínio, os impactos econômicos, culturais e psicológicos do colonialismo, a complexa e ambígua relação colono-colonizado e as estratégias de resistência dos oprimidos, dos condenados da terra, ante a violência colonizadora. Ao fazer isto, Fanon recorre, teoricamente, ao marxismo e à psicanálise, mas vai além de um e de outro ao introduzir sua própria experiência de vida, sua militância, na construção do seu pensamento, o que lhe leva a evitar o economicismo, por um lado, e o subjetivismo, por outro lado.

Sem negar a importância da economia na imposição da violência colonial, Fanon também teoriza, segundo Mohammed Harbi (2005, p. 371), “o conflito identitário e cultural e tenta mostrar os verdadeiros condenados da terra, os explorados absolutos, que são os colonizados”. Para Alice Cherki (2005, p. 12), da mesma forma, os condenados da terra aos

quais Fanon se dirigia “eram os deserdados dos países pobres, que queriam realmente terra e pão”, eram as populações periféricas do além-mar, muitas vezes ignoradas até pela classe operária europeia, a mesma que, segundo a autora, muitas vezes reprodutora do racismo, demonstrava uma relativa indiferença pelo destino das colônias de que se beneficiava indiretamente.

Articulando desejo e poder, estrutura e subjetividade, economia e cultura, Fanon procurou analisar, da forma mais ampla possível, as táticas de reprodução do colonialismo. Como psiquiatra, Fanon procurou entender as doenças mentais como consequências do processo colonizador. É a esta conclusão que chega quando atua como psiquiatra na Argélia, isso é, que a alienação é derivativa de uma realidade que desarticula as referências de vida das populações colonizadas. É aí que Fanon introduz a “social-terapia”, que havia aprendido com François Tosquelles, um psiquiatra catalão do seu tempo, procurando restaurar as referências culturais dos colonizados, sua língua, enfim, tudo aquilo a que atribuísse sentido e pudesse reorganizar seu modo de vida23.

Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon explicita sua abordagem.

A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo:

- inicialmente econômico;

- em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade (FANON, 2008, p. 28).

A epidermização da inferioridade a que se refere Fanon, que se processa pari passu à dominação econômica, à imposição do domínio pela exploração do trabalho, articula- se a partir do uso da linguagem como instrumento de invasão cultural, de imposição de um mundo de significados estranho ao colonizado, com vistas a levá-lo a internalizar e aceitar a dominação. “Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura”, reconhecia Fanon (2008, p. 50). Dizia, neste mesmo sentido, que “um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito” (p. 34). E é baseado nesta tese que Fanon conclui:

23 Fanon é explícito na compreensão de que muitas das doenças mentais sofridas por homens e mulheres de países colonizados são produzidas, precisamente, pela situação colonial, que a tortura desarticula muito profundamente a personalidade do torturado, que a negação do outro (do negro, em particular) obrigou o povo a perguntar-se constantemente por sua identidade. A verdade, dizia Fanon (2005, p. 287), “é que a colonização, na sua essência, já se apresentava como uma grande provedora dos hospitais psiquiátricos”.

o negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará mais do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa [...] Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará de sua selva. Quanto mais rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será [...] O antilhano que quer ser branco o será tanto mais na medida em que tiver assumido o instrumento cultural que é a linguagem [...] (FANON, 2008, p. 34-50).

Uma vez que o complexo de inferioridade do negro tenha surgido largamente em função do epistemicídio e etnocentrismo provocados pela cultura metropolitana, o projeto decolonial de Fanon consiste na tentativa de fazer o negro desvencilhar-se dessa epidermização da inferioridade. “O que nós queremos”, dizia ele, “é ajudar o negro a se libertar do arsenal de complexos germinados no seio da situação colonial” (FANON, 2008, p. 44). Daí o papel central que Fanon atribuiu à linguagem, à cultura e à educação no seu pensamento. Não bastava que a situação colonial, como domínio político-econômico, cessasse. Era também preciso que o negro se libertasse do racismo que lhe inferiorizou como ser humano e que negou todas as suas formas e expressões culturais.

É precisamente a partir desta compreensão do processo de dominação que Fanon analisa a relação colono-colonizado, questão que tão fortemente influenciou a pedagogia de Paulo Freire, como veremos em outro lugar. Para Fanon, o colonialismo se infiltrou tão fortemente no colonizado, se apoderou tão profundamente dos seus modos de pensamento, que o colonizado sonha instalar-se no lugar do colono. “Não tonar-se um colono, mas substituir o colono”, esclarece Fanon (2005, p. 69).

O colonizado é um perseguido que sonha permanentemente tornar-se um perseguidor [...] Os colonizados, em sua imensa maioria, querem a fazenda do colono. Para eles, não se trata de entrar em competição com o colono. Eles querem o seu lugar (FANON, 2005, p. 70-78).

A consciência do colonizado é fraturada, poderia ter dito Fanon. A violência simbólica praticada em nome da Civilização, da Ciência, do Desenvolvimento é tão forte que o colonizado se apropria, em diferentes níveis, da cultura do colono. Sabemos hoje que se não se trata da substituição de uma cultura por outra, que as culturas são miscíveis (GRUZINSKI, 2001), híbridas e marcadas por uma ambiguidade e ambivalência, o que corresponde ao caráter sempre polifórmico e dinâmico dos processos de criação e reprodução cultural. No entanto, Fanon denuncia o uso estratégico que o colonialismo fez da língua, da cultura, da ciência, da educação na imposição do regime de domínio.

E se Fanon reconhece que o universo simbólico do colonizador se infiltra na mente e nos corpos dos colonizados é porque foi capaz de cruzar esta compreensão da cultura como um artefato híbrido a uma compreensão dialética que opõe, unificando, estes dois polos.

Reconhece, neste sentido, que o mundo colonial é um mundo compartimentado, cortado em dois, dicotômico.

Mundo compartimentado, maniqueísta, imóvel, mundo de estátuas: a estátua do general que fez a conquista, a estátua do engenheiro que construiu a ponte. Mundo seguro de si, esmagando com suas pedras as colunas dorsais esfoladas pelo chicote. Este é o mundo colonial. (FANON, 2005, p. 68-69).

Esta capacidade de Fanon de entender a complexidade do mundo colonial é ressaltada por Sartre (2005). Para o existencialista, Os Condenados da Terra é um livro que desmonta as táticas do colonialismo, o jogo complexo das relações que unem e opõem os colonizados aos metropolitanos. Mais do que isso, no famoso prefácio de Sartre ao livro, ele revela uma tese decolonial que é fundante na obra de Fanon e que será explorada anos depois pelos teóricos da decolonialidade: a compreensão de que a colonialidade é o lado obscuro da modernidade.

Diz Sartre (2005), ao analisar a obra de Fanon, e já assumindo sua mea culpa, como europeu: “Nossas vítimas nos conhecem pelas chagas e pelos ferros: é isso que torna irrefutável o seu testemunho” (p. 30). Ou, no mesmo sentido: “Nada mais conseqüente, entre nós, do que um humanismo racista, pois o europeu só pôde fazer-se homem fabricando escravos e monstros” (p. 43).

Fanon, de forma ainda mais radical, posto que não apenas consciente da culpa da Europa na imposição do racismo colonial, mas também vítima desse processo histórico, é categórico: “A inferiorização é o correlato nativo da superiorização européia. Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado” (2008, p. 90).

Mas assim como é o racista que cria o inferiorizado, Fanon compreende, dialeticamente, que a Europa é criação do Terceiro Mundo, argumento que, como veremos, antecipa, de certa forma, a teoria do sistema mundo elaborada por Immanuel Wallerstein e assumida com ressalvas por alguns teóricos decoloniais. A riqueza da Europa (econômica e cultural) é a riqueza produzida pelos colonizados dos países periféricos e deles saqueada, é o que quer dizer o antilhano.

Essa opulência européia é literalmente escandalosa, pois foi construída sobre as costas dos escravos, alimentou-se do sangue dos escravos, vem em linha direta do solo e do subsolo desse mundo subdesenvolvido. O bem-estar e o progresso da Europa foram construídos com o suor e os cadáveres dos negros, dos árabes, dos índios e dos amarelos (FANON, 2005, p. 116-117).

Mas não só a riqueza material da Europa é uma dívida que deveria ser assumida diante do Terceiro Mundo, como também o conhecimento científico e filosófico produzido pelas metrópoles. O colonialismo é um regime que saqueou, também, amplos conjuntos de conhecimentos, mesmo que afirmando, paradoxa e hipocritamente, a superioridade da sua razão em contrapartida à inferioridade imposta aos conhecimentos dos colonizados.

Consciente desta contradição, Fanon inicia Pele Negra, Máscaras Brancas com uma crítica à razão totalitária, absoluta, essencialista que caracteriza a racionalidade moderna eurocêntrica. Admite, de início, que sua racionalidade é outra: “Não venho armado de verdades decisivas. Minha consciência não é dotada de fulgurâncias essenciais” (FANON,

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