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Penso que as considerações tecidas em cada um desses estudos permitiram evidenciar a tese defendida: as práticas de cuidado à saúde mental infantil são construídas em meio às negociações de saberes de distintas ordens e da experiência vivida face às demandas e às circunscrições das condições concretas sociais e de trabalho.

Nesse sentido, reservou-se esse espaço (considerações finais) para apontar outras reflexões que podem servir como mote para o desenvolvimento de pesquisas e outras produções humanas, tais como políticas públicas. Os resultados apresentados nesta tese ratificam o título: “(In)visibilidades da infância no campo da Saúde Mental”. Conclui-se que, de fato, da criança existe uma dimensão de invisibilidade nesse campo, seja no nível das instituições (políticas públicas), seja no nível das organizações e grupos sociais (serviços, profissionais de saúde e educação, e pela própria família).

Resta agora, refletir sobre o porquê disso. Argumenta-se que a criança em sofrimento psíquico usuária do SUS é invisibilizada pelo atravessamento de 3 (três) marcadores: O primeiro se refere à infância enquanto categoria geracional40. Nega-se à criança sua condição de ser falante e sujeito de desejos: a criança foi e continua não tendo “voz nem vez”. Por isso, todas e todos falam por ela e sobre ela: profissionais, professores e familiares. O segundo marcador diz respeito à “loucura” enquanto objeto que remete à alteridade radical. A loucura é estranha, é incompreendida, é ameaçadora, e por isso, requer modos de normatização e controle para superar o caráter de imprevisibilidade e, por conseguinte, periculosidade imbricadas em suas representações sociais. No caso da infância ainda há um agravante: A loucura parece ser tão ameaçadora que se anula inclusive a possibilidade de a criança “portar o enigma da loucura”, tal como expressa Couto e Delgado (2015, p. 31). Por isso, o histórico e atual tamponamento do sofrimento psíquico infantil sob o manto da deficiência: admite-se que a criança possa ser deficiente, porém “louca” não. Por fim, reconhece-se a marca da pobreza, e todos os preconceitos subjacentes a essa e aos estereótipos do pobre: o pobre é violento, é ignorante, desprovido de saberes e emoções necessários à tarefa de cuidar de um outro. A cultura da pobreza é inferior à cultura da classe média. “Nós” sabemos como cuidar de uma criança no bojo de uma família “estruturada”, “eles” não.

40 A sociologia da infância distingue semântica e conceptualmente infância, que significa uma categoria social do tipo geracional, de criança, referente ao sujeito concreto que integra essa categoria geracional e que, na sua existência, para além da pertença a um grupo etário próprio, é sempre um actor social que pertence a uma classe social, a um género, etc. (SARMENTO; 2005;).

196 Reflete-se ainda que esses três marcadores possuem características que eminentemente nos remetem à alteridade. Os adultos não são crianças, portanto, não conseguem reconhecê-las, escutá-las e observá-las. Os profissionais de saúde também não se consideram “loucos”, portanto, a loucura persiste como objeto radicalmente distante e estranho. Do mesmo modo, a pobreza. Há um limite discursivamente delimitado pelos entrevistados entre sua classe social e a classe social do usuário do SUS. Por isso, o pobre, assim como suas concepções, crenças e práticas permanecem destituídas de legitimidade. Reiterando: a família do pobre é “desestruturada”. Logo, lhe faltam ferramentas para prover um cuidado adequado às crianças. Logo, cabe às/aos psicólogas/os prover essas ferramentas. Nesse processo, a Psicologia ainda é constantemente convocada, por diversos atores sociais (profissionais de saúde, professores e famílias), a realizar seu tradicional papel de normatizar comportamentos desviantes. Tal como relembrado por Eidelwein (2007), a Psicologia (assim como o Serviço Social) são profissões que emergem como tecnologias voltadas para a manutenção de determinado status quo, agindo “sobre as “disfunções” do social na direção de torná-las funcionais, sob termos como ressocializar, reabilitar, resgatar, incluir, dentre outros” (p. 307).

Nesse sentido, ainda se levanta um questionamento: Por que o usuário de crack incomoda tanto ao ponto de mobilizar sociedade civil e governo a construírem tantas medidas de repressão e cuidado? O crack teve lugar de destaque na análise da legislação em saúde mental. Outro exemplo notório se verifica nas propostas de internação compulsória que retomam a lógica higienista do modelo asilar: limpar das ruas tudo aquilo que incomoda, todos os indivíduos que representem rupturas à norma social. Em concordância com Santos e Acioli Neto (2015), trabalha-se com a hipótese de que o usuário de crack incomoda tanto por objetivar constantemente a miséria, a pobreza e tantos outros processos de exclusão social.

Já as crianças e adolescentes não incomodam tanto assim por que, afinal, por onde transitam? Há insuficiência de espaços de lazer e de serviços para que elas possam circular e, efetivamente, ocupar a cidade. As crianças estão privadas do espaço público devido à violência urbana e reservadas ao espaço privado, onde junto às suas famílias também estão suscetíveis a uma série de violências. Assim, passam “quase” despercebidas. Pelo menos até agora. Pelos resultados apresentados, parece que uma epidemia de microcefalia foi “necessária” para que o poder público e a sociedade civil começassem a se mobilizar em torno do cuidado à infância.

Ademais, reflete-se que “loucura” e “pobreza” são objetos e fenômenos sociais extremamente mobilizadores. Não por menos, os profissionais de saúde expressam tão fortemente suas emoções quando tratam desses por meio de palavras como: medo, receio,

197 dúvida, angústia, impotência e preconceito. Todavia, cabe ressaltar que esses afetos estão implícitos na narrativa dos entrevistados. Não são apreendidos por todo e qualquer tipo de recurso metodológico. Essas nuances e particularidades foram passíveis de interpretação a partir da narrativa de suas experiências e de uma aliança entre uma perspectiva psicossocial e hermenêutico-dialética. Reconhece-se a pertinência o uso de distintas estratégias metodológicas para alcançar o objetivo geral desta tese, a saber, analisar as dimensões da prática profissional na construção dos cuidados em saúde mental infantil em suas imbricações com as representações sociais.

É importante destacar que a ação discursiva de narrar possui uma natureza conjunta, delineada por se constituir como um processo situado e relacional (dialógico) sempre dirigido a plateias e situações sociais distintas. São, portanto, embates na legitimação de sentidos, sendo fundamental considerar o “quem” se conta a história, assim como o “onde”: agente alvo e contexto (BASTOS; BIAR, 2015), além do “para quem”. Com isso, torna-se possível observar como

Narradores e personagens narrados são discursivamente construídos através do uso de noções como posicionamento, agência, alinhamentos, entre outras. A partir delas, é possível elaborar articulações com o contexto macro-contextual ou sócio-histórico, perguntando-se, por exemplo, como estereótipos são aceitos ou rejeitados, ou como as identidades localmente instituídas relacionam-se com discursos especializados ou de senso-comum que circulam na sociedade (BASTOS; BIAR, 2015, p.109).

Tanto as políticas públicas quanto as narrativas dos profissionais são construídas tomando por base aquilo que é canônico, normativo, “politicamente correto”, como por exemplo, “eu gosto muito do meu trabalho”, “eu sinto muito prazer no que eu faço”, “eu tenho encontrado muita realização no meu trabalho aqui no NASF” (sic). Todavia, seus discursos e práticas também são interpelados por constantes conflitos, negociações e contradições. Esses movimentos se evidenciam quando os entrevistados descrevem suas atribuições e condições de trabalho, e refletem sobre suas experiências profissionais. Cabe lembrar que psicólogas/os também estão “submetidos a relações e condições de trabalho que são determinantes de suas possibilidades e limitações, fazendo com que não possuam o domínio completo sobre o próprio processo de trabalho” (EIDELWEIN, 2007, p. 308).

É fundamental que as problemáticas apresentadas sejam compreendidas enquanto construções sociais, evitando-se a reprodução de práticas orientadas pela crença de que “é natural que isso aconteça” (sic). Desse modo, concebe-se que as representações e práticas profissionais são passíveis de mudança, transformação e invenção, desde que sejam reconhecidas como “frutos de construções históricas da sociedade em determinadas épocas

198 temporais, caracterizadas por determinadas formas de acumulação do capital” (EIDELWEIN, 2007, p. 307). Em outras palavras, cabe aqui compartilhar as reflexões de Eidelwein (2007):

É possível “olhar” apenas para as situações de desigualdade e exclusão social sem “olhar” para os modos como os sujeitos significam tais experiências? É possível “olhar” para os significados que os sujeitos atribuem a suas experiências de vida sem “olhar” para as condições materiais de (re)produção da sociedade na qual se encontram inseridos? (EIDELWEIN, 2007, p. 308).

No tocante ao tema desta pesquisa, cabe lembrar que “o cuidado de crianças e adolescentes demanda ações intrinsecamente intersetoriais”. Portanto, “todos devem participar do processo desde o início, assumindo e compartilhando responsabilidades” (MATEUS, 2013, p. 326). Assim sendo, este é um campo que merece ser refletido à luz de diversas áreas de conhecimento, pautado pelo constante exercício da interdisciplinaridade.

No que concerne à Psicologia se reconhecem as potenciais contribuições das atualidades da Psicologia Clínica, Psicologia da Educação, Psicologia do Desenvolvimento e Psicologia Social para o campo, entre outras. Da Psicologia Clínica em interface com as propostas da Atenção Psicossocial e Clínica Ampliada, superando olhares e práticas individualistas, a- políticas e a-históricas. Da Psicologia da Educação, em contribuir para a consolidação de uma escola que, de fato, inclua, acolha e cuide das crianças em suas múltiplas possibilidades e modos de ser, existir, desenvolver e aprender, e que não apenas enfoque os processos cognitivos envolvidos na aprendizagem. Uma escola que esteja disposta a rever seus modelos e práticas pedagógicas falidos, que não ensinam, ao contrário, segregam, excluem e culpabilizam as crianças por seus “fracassos”. Da Psicologia do Desenvolvimento, quando se volta para suas perspectivas sócio-interacionistas, em detrimento de tendências clássicas preocupadas apenas etapizar a curva “normal” do desenvolvimento infantil. Compreende-se que, o campo da saúde mental, englobando instituições, serviços e saberes-fazeres, pode se configurar como um contexto de desenvolvimento, onde conhecimentos e práticas específicas são dirigidas às crianças, oferecendo limites e possibilidades para o desenvolvimento. Apresenta-se, portanto, como lócus profícuo de estudos, na medida em que evidencia outros modos de subjetivar e vivenciar os diferentes ciclos de vida. Da Psicologia Social, a partir de correntes ternárias, que se proponham a lançar um “olhar psicossocial”, como diz Moscovici (1984), sobre a realidade social. Correntes que efetivamente resgatem o “social”, muitas vezes tamponado por pesquisas que tomam o “indivíduo” e a “primazia do método” como foco de análise. Considero que a Teoria das Representações Sociais constitui um referencial que pode cumprir este papel. Aliada a esta, apontam-se ainda a potencialidade da Psicologia Sócio-Histórica:

Essa perspectiva está guiada por princípios que pensam e querem o mundo em movimento; que pensam e querem o humano pensado como ser ativo, social e