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Considerações finais 107

Vivenciar o processo de terminalidade revelou-se para os familiares como uma experiência desconhecida, impactante e assustadora. Falar desse momento significou transcender o tempo presente, remetendo-se a outra temporalidade, distante daquela na qual estavam inseridos. Assim lembraram inicialmente dos “sinais” manifestados pelo paciente em período que precedeu a constatação do diagnóstico. Desse modo, lançando-se ao novo demonstraram dificuldades iniciais, como a de receber a notícia de um câncer e, em alguns casos, ser comunicado, ao mesmo tempo, de um prognóstico restrito e fechado, cuja única intervenção vislumbrada era o cuidado paliativo. A descoberta da doença mostrou-se como um divisor de águas em suas vidas marcado por um “antes” e “depois”, dadas as mudanças significativas que passaram a enfrentar, mesmo não sendo uma realidade escolhida.

O encontro com a doença foi descrito pelos familiares como sendo um contexto nos quais se viram sozinhos e desamparados. Perceberam que a vida de seus entes se encontrava sob ameaça. O modo como receberam a informação foi recordado e destacado em suas falas, apresentando-se como uma passagem marcante envolvida de terminologias técnicas, comunicações ambíguas e, em alguns casos, ausentes de sentidos. Diante dessa experiência desconcertante, assinalaram o quanto se sentiram à deriva, desprovidos de suporte, acenando falta de empatia e atitude clínica por parte daquele profissional que lhe forneceu o diagnóstico. Vale ressaltar que tais expressões aludem à capacidade de o profissional se colocar no lugar do outro, daquele que carrega consigo angústia e desespero pela perspectiva de um horizonte estreito imposta ao ente e ao familiar que passa a conviver com o anúncio de morte. Teceram associações acerca do surgimento do câncer, passando a conjecturar sobre alguns aspectos que poderiam ter sido desencadeantes, embora cada familiar tenha produzido um sentido próprio para suas hipóteses, justificado pela singularidade de suas histórias. Discorreram sobre comportamentos de pacientes considerados “inadequados” como também apontaram possíveis fatores emocionais para seu adoecimento e agravamento.

Nesse contexto, à medida que os familiares iam tomando contato com uma terapêutica refratária ao tratamento curativo, aproximavam-se da possibilidade de morte dos seus entes. Logo, a brevidade de vida desvelava-se como algo angustiante e desesperador para eles, pois, esses sentimentos, de certa forma, equivalem à idéia de desaparecimento, de aniquilação, de tornar-se “invisível” para o mundo, mobilizando a sensação de impotência diante da proximidade da finitude.

Vivenciar o processo de terminalidade do ente querido significou para os familiares ter constantes e progressivas perdas atravessadas em suas vidas, sobretudo pela ausência da saúde evidenciando a fragilidade. Revelaram infindáveis perdas que tiveram de experimentar, tendo

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obrigatoriamente que vivenciar o processo de luto, não sendo tarefa fácil desligar-se do que fora investido afetivamente daquilo que representava ser importante para eles.

Com isso, a necessidade de se desligar e reinvestir seus afetos durante esse processo de terminalidade de vida mostrou-se como uma longa travessia, não sem dores e dificuldades tornando-se imensurável o sofrimento de cada familiar que se viu mergulhado em dimensões amplas e profundas de perdas. Pude perceber que a experiência de luto para eles figurou além de uma morte dita real, pois o desligamento do que era significativo e que se perdeu é iniciado com o ente ainda vivo, o que também pode despertar intensa angústia e culpa por experienciar um contexto de dualidade onde ainda há vida, mas também há morte.

Uma das lembranças mais difíceis para mim foi perceber a dor desmedida de Alice por estar vivendo a perda de um filho, a perda de um amor incondicional. Seu sofrimento configurou-se como algo indescritível, difícil de transpor para o texto. Comoveu-me sua dolorosa experiência de se perceber pouco a pouco com os vazios sinalizados pelas ausências de funções que o filho passou a apresentar.

Outras perdas foram sendo sublinhadas pelos familiares, a exemplo das funções físicas e psíquicas, bem como daquelas exercidas no grupo familiar e também da perda relacionada à ilusão de infinitude. Estar ao lado daquele que está morrendo significa romper com a ilusão de eternidade, pois a vida assim funciona, com a coexistência da morte. Portanto, esbarrar-se nesta realidade, é entrar em contato com a própria finitude, é constatar que a mortalidade é a condição que nos torna humanos.

Nesse contexto, a fragilidade do paciente impõe a necessidade de ser cuidado e esse cuidar, conforme observado nesta pesquisa apresentou-se multifacetado, repleto de sentimentos e significados atribuídos pelos familiares a essa elaborada relação cuidador- paciente. O processo de cuidados descrito por eles compara-se aos exigidos e demandados por um filho pequeno guardando relações simbólicas com a função materna. Demonstraram o quanto tiveram que se dedicar, bem como identificar-se e ser devoto a esse paciente, ou seja, estar em perfeita harmonia para assim atender de forma sensível a suas necessidades, visto que a perda de autonomia figurou-se como parte do processo de terminalidade, passando então a exibir o comportamento regredido solicitando incessantemente a presença do cuidador.

Os entrevistados enfatizaram as diversas formas de abnegação por estarem inseridos nessa profunda díade de cuidados, negligenciando com isso, inclusive, sua própria vida. Remeteram-se à experiência de solidão sentindo-se como se estivessem num “deserto sem saída”, cenário onde não é possível vislumbrar uma saída, tampouco perspectivas.

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Assim sendo, sem desconsiderar a singularidade de cada um dos familiares, a vivência de terminalidade mostrou-se penosa, difícil de atravessar, apresentando ser um universo de sofrimento inominável e ausente de acolhimento em suas dores. Mostraram-se desamparados, mergulhados num estado de urgências que lateja a cada dia findado. Enfrentam os vazios irrompidos em seus cotidianos de forma solitária, com intenso custo psíquico, desprovidos de sustentação e alento para sua dor. A falta da rede de suporte familiar também torna o processo mais doloroso. Nesse sentido, o auxílio de um profissional de saúde pode ser essencial neste momento, abrindo possibilidades de espaço para o não-dito onde temores, conflitos, angústias e fantasias possam ter escuta, “autorizando” suas expressões, legitimando o seu sofrer permitindo assim, dar sentido à sua difícil experiência.

Finalizo este trabalho sem a pretensão de ter alcançado uma verdade absoluta, mas sim com a sensação de ter aberto possibilidades para se sentir, pensar e discutir essas vivências, reveladas para mim, de forma profunda e marcante. Adentrar o mundo destas pessoas tão vulneráveis possibilitou-me não só construir um trabalho nas tramas científicas, mas levou-me a compreensão e transformação pessoal, a refletir sobre a minha vida que também não existe sem a morte, sem as dores que estão inscritas na existência humana. Concluir este trabalho, portanto, está para além dessas linhas escritas...

Assim, espero ter propiciado o emergir de novas e muitas interrogações/inquietações sobre o fenômeno ao qual me propus a pesquisar.

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