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4. Mecanismos de defesa, personalidade e psicopatologia

4.1. Considerações gerais

Presentemente, os mecanismos de defesa são vistos como sendo de extrema importância na compreensão do funcionamento humano, da personalidade e da psicopatologia (T. Millon et al., 2004; Wolitzky, 2006). Como já referimos, personalidade e mecanismos de defesa são conceitos que andam de mão dada – não é por acaso que esta relação entre personalidade e mecanismos de defesa estará presente nas reformulações propostas para o DSM-V, que está previsto alterar a sua definição de Perturbações de Personalidade para que representem uma falha no desenvolvimento da identidade do self e na capacidade para o funcionamento interpessoal (Associação Psiquiátrica Americana, 2010). A inclusão de um eixo para os mecanismos de defesa no futuro DSM-V é justificada por, apesar de cada indivíduo usar uma variedade de defesas, cada perturbação de personalidade parecer “preferir” um conjunto particular de defesas em detrimento de outras (T. Millon et al., 2004; Vaillant & McCullough, 1998).

Outra das limitações inerente ao facto de o DSM-IV-TR não ter em consideração os modelos de defesa do indivíduo é que avalia, por exemplo, pânico e somatização como perturbações diferentes quando poderão ser sintomas com uma etiologia semelhante (Vailliant & McCullough, 1998). Estas informações podem ser usadas para construir um perfil defensivo que ilustre como uma perturbação de personalidade se protege de fontes internas ou externas de ansiedade, stresse ou de ameaça (T. Millon et al., 2004; Vaillant & McCullough, 1998). Isto porque os mecanismos de defesa não só fazem parte do próprio construto da perturbação de personalidade como são também sintomas desta (T. Millon et al., 2004; Vaillant & McCullough, 1998).

Na personalidade Compulsiva por exemplo, de forma a lidar com pulsões agressivas suscitadas por um meio familiar controlador e excessivamente exigente, o indivíduo compulsivo recorre à formação reactiva para inverter estes impulsos. Assim, ao conformarem-se com as estruturas internalizadas do Superego, estes indivíduos aparentam ser altamente contidos

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e sob controlo de si mesmos apesar de, internamente, estarem absortos de raiva e agressividade. Esta necessidade de silenciar a sua agressividade poderá também ser acompanhada do uso excessivo da isolação do afecto, na qual pode manter os aspectos intelectuais de uma ideia desagradável, descartando-se da natureza desorganizante dos afectos desconfortáveis associados a essa ideia (T. Millon, 2004; Vaillant & McCullough, 1998). Já os histriónicos preferem o uso da repressão de forma a manterem o seu mundo simples e “cor-de-rosa”, e os narcísicos, por outro lado, utilizam principalmente a racionalização de forma a justificar o seu comportamento exploratório dos outros. Os Paranóides, no entanto, usam a projecção de forma a transferir para os outros a culpa que sentem dos seus próprios impulsos agressivos, tornando- se eles os perseguidos e as vítimas (T. Millon, 2004; Vaillant & McCullough, 1998). Já na personalidade Anti-Social, a passagem ao acto reflecte um processo no qual a imediata expressão motora de um desejo ou conflito inconsciente permite ao indivíduo manter-se ignorante da ideia ou do afecto que acompanha tal acção; e para o indivíduo Esquizóide, a sua capacidade de recorrer à fantasia como mecanismo de defesa permite-lhe diminuir o sentimento de solidão ao criar na sua mente relações humanas fantasiadas (Vaillant & McCullough, 1998).

No setting terapêutico, sendo que cada perturbação de personalidade está fortemente associada a certos mecanismos de defesa, esta característica prototípica pode auxiliar na construção de hipóteses para casos individuais que poderão comparar-se aos dados obtidos através da avaliação (T. Millon, 2004). Ao ser apresentado um cliente com um padrão Narcísico da personalidade, eventualmente pré-diagnosticado, é possível que este indivíduo possua a tendência para usar de forma exagerada a racionalização e essa informação poderá depois ser comparada com outras informações provenientes da terapia em si. No entanto, a maioria dos indivíduos combina aspectos de dois ou mais padrões de personalidade, tornando a avaliação e tratamento dos casos bastante complexos (T. Millon, 2004; Vaillant & McCullough, 1998). Apesar disso, o estudo dos mecanismos de defesa utilizados pelo indivíduo são uma boa ferramenta para compreender melhor o indivíduo e, consequentemente,

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construir um modelo eficaz de intervenção (T. Millon, 2004; Vaillant & McCullough, 1998). Para tal, deve-se enfatizar a importância de averiguar quais os mecanismos usados tipicamente pelo indivíduo, qual o impacto destes na relação com os outros, e como é que esses mecanismos exacerbam outros problemas experienciados pelo indivíduo (T. Millon, 2004). De facto, os mecanismos de defesa do indivíduo podem ser um foco do trabalho terapêutico, visto que ao melhorar as estratégias deste e tornando o seu modelo de defesa mais flexível, estamos a dirigir-nos a grande parte do seu problema (Vaillant & McCullough, 1998).

Não é, portanto, nova a noção de que a investigação das perturbações de personalidade beneficia da inclusão dos mecanismos de defesa (Yu et al., 2008). Já Anna Freud afirmava que os mecanismos de defesa tinham como papel principal a redução da ansiedade e eram responsáveis pela origem e manutenção de várias perturbações mentais, estabelecendo a relação entre perturbações mentais e mecanismos de defesa específicos (Ihilevich & Gleser, 1986). Além disso, em concordância com as teorias de relação objectal e da vinculação, experiências precoces positivas estão associadas a um estilo de defesa flexível e adaptativo onde predominam defesas maduras (sublimação e intelectualização, por exemplo) (Bornstein, 2006). Experiencias precoces negativas, por outro lado, conduzem à formação de estilos de defesa menos maduros e, portanto, menos eficazes, caracterizados por estratégias de coping que implicam uma maior distorção de eventos internos e externos (regressão e projecção, por exemplo) (Bornstein, 2006). Resumidamente, as defesas psicológicas determinam a forma como se interpreta aquilo que é percebido, tendo uma profunda influência nas crenças e decisões do indivíduo. Para além de terem, portanto, um papel central na psicopatologia, têm também funções vitais na adaptação e no desenvolvimento normal da personalidade (Ihilevic & Gleser, 1986).

A relação entre mecanismos de defesa e estilos de personalidade tem sido conceptualizada de diferentes formas. Blatt (1990) postula dois grandes estilos de personalidade definidos através do processo desenvolvimental do indivíduo – ou seja, pela configuração da sua personalidade. O estilo de

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personalidade anaclítico engloba indivíduos que colocam maior ênfase no relacionamento interpessoal – são, regra geral, mais figurativos no seu pensamento, focando-se sobretudo em afectos e imagens visuais. Já o estilo de personalidade introjectivo engloba indivíduos que colocam maior ênfase na autodefinição. O seu pensamento tende a ser mais literal, sequencial e crítico, e a acção, o comportamento manifesto, a lógica, a consistência e a causalidade estão realçadas e são diminuídas as relações e os sentimentos (Campos, 2003). Estas duas configurações básicas da personalidade implicam diferentes tipos de mecanismos de defesa (Blatt, 1990; Campos, 2003). Os indivíduos anaclíticos usam sobretudo mecanismos defesa de tipo evitante (como a negação, a repressão, entre outros), enquanto que indivíduos introjectivos usam sobretudo mecanismos de defesa neutralizantes (como a

projecção, a intelectualização, entre outros) (Blatt, 1990; Campos, 2006). Estes

dois tipos de mecanismos de defesa têm o mesmo objectivo – manter os aspectos psíquicos dolorosos fora da consciência – mas fazem-no de forma diferente. Os mecanismos de tipo evitante impedem que o indivíduo reconheça a existência de questões conflituais, eliminando assim da consciência o estimulo ansiogénico; os mecanismos de tipo contra-activo não evitam o conflito, mas transformam os conflitos de forma a que estes se possam expressar de uma forma mais aceitável (Blatt, 1990; Campos, 2006).

A relação entre mecanismos de defesa e Perturbações de Personalidade tem sido estudada de forma aprofundada e os resultados indicam que são constructos distintos e separados, mas que quando estudados em conjunto, trazem uma melhor compreensão do funcionamento do indivíduo (Mullen, Blanco, Vaughn, & Roose, 1999; Vaillant & McCullough, 1998). Isto está em concordância com a teoria psicanalítica que implica a noção de que a maioria dos sintomas das Perturbações de Personalidade reflecte os tipos de defesa característicos do indivíduo (Bornstein, 2005), estando estes, portanto, ligados ao próprio funcionamento da psicopatologia.

Alguns estudos debruçam-se sobre esta relação entre tipos de defesa e diferentes perturbações de personalidade, sendo que cada manifestação de patologia da personalidade parece ter uma certa “preferência” por certos tipos

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de defesa (T. Millon et al., 2004), apesar de alguns resultados contraditórios entre estudos (Bornstein, 2005). Olhando para a personalidade – da normal à patológica – num contínuo, o modelo de Millon define uma relação entre cada padrão de personalidade e um tipo de mecanismo de defesa específico. Assim, Millon (1994) associa o padrão Esquizóide à intelectualização, o padrão Evitante à fantasia, o padrão Dependente à introjecção, o padrão Histriónico à Dissociação, o padrão Narcísico à racionalização, o padrão Anti-Social ao

acting-out, o padrão Agressivo à isolação, o padrão Compulsivo à formação

reactiva, o padrão Negativista ao deslocamento, o padrão Autodestrutivo a um mecanismo de exageração, o padrão Esquizotípico à anulação, o padrão Borderline à regressão, e finalmente o padrão Paranóide à projecção.