CAPÍTULO II – OS CONCEITOS FREUDIANOS DE
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DOS CONCEITOS FREUDIANOS DE “IDENTIFICAÇÃO”
UMA NOÇÃO DE “IDENTIDADE [DO „EU‟]”
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DOS CONCEITOS FREUDIANOS DE “IDENTIFICAÇÃO”
Embora Freud não tenha escrito um ensaio metapsicológico intitulado ―A
identificação‖, o conceito freudiano de ―identificação‖ seria consistentemente considerado
como um dos mais importantes de sua metapsicologia. A coerência na articulação entre uma noção de ―identidade [do ‗eu‘]‖ e um conceito freudiano de ―identificação‖ seria condição necessária à articulação metapsicológica desta noção de ―identidade‖. No entanto, este conceito freudiano, assim como o conceito freudiano de ―eu‖, não se manteve inalterado no desenvolvimento da teoria de Freud. Além disso, o autor concebeu a existência de variadas
modalidades de identificação; e, em alguns sentidos, considerou a identificação como
constituída em mais de uma etapa110.
O termo ―identifizierung‖, comumente traduzido da língua alemã à língua portuguesa como o termo ―identificação‖, se utilizou originalmente na obra de Freud em uma carta, a qual este enviou a Wilhelm Fliess em 17 de dezembro de 1896.111 Nesse contexto, Freud utilizou aquele termo de modo que designasse um desejo inconsciente de um indivíduo de ser como certo outro indivíduo.112 Assim, originalmente, o autor articulou um conceito de ―identificação‖ em um texto escrito anteriormente à criação da teoria psicanalítica.
Em sua obra intitulada ―A interpretação dos sonhos‖ (1900), a identificação
[histérica] se considerou como um evento inconsciente de apropriação de um indivíduo por
um outro – este, considerado como histérico. Nesse caso, a mencionada identificação ocorreria após uma suposta inferência inconsciente, pelo histérico, de certos desejos
inconscientes daquele indivíduo – desejos estes, também do histérico, mas recalcados,
considerados inconscientemente, por este último, como ameaçadores.
110
Freud teria descrito, em seu ensaio intitulado ―Totem e Tabu‖ (1913), certa identificação ―pré- individual‖, ―com o pai da horda primeva‖. Esta identificação, ―filogenética‖, seria concebida como condição necessária a cada uma das identificações individuais, ―propriamente ditas‖.
111
(ROUDINESCO & PLON, 1997, p. 363).
112
Em acordo com a teoria contida nesta obra, comumente, a identificação [histérica] seria utilizada [na histeria] como a expressão de uma ―comunhão sexual inconsciente‖ entre o mencionado indivíduo e o histérico.113 Roudinesco & Plon (1997, p. 364), nesse sentido, escreveram: ―[a identificação histérica] exprime um ‗como se‘ e está relacionada com uma comunhão que se mantém no inconsciente‖.
Nesse contexto, um indivíduo [histérico] se identificaria, mais comumente – mas não somente –, com: (i) os indivíduos investidos libidinalmente por ele; ou (ii) os indivíduos os quais supostamente investiram libidinalmente certos outros indivíduos, também investidos deste modo por ele. Portanto, a identificação [histérica] ocorreria como uma ―apropriação causada por uma etiologia idêntica‖ – esta etiologia consistindo, supostamente, em um mesmo
desejo inconsciente, concebido inconscientemente como articulado, de modo simultâneo, no
indivíduo e em um outro.114
Nesse sentido, na obra mencionada, a qual é comumente considerada como a obra
psicanalítica originária, uma identificação [histérica] teria sido implicitamente concebida
como resultante de um evento no qual esteve incluído um desejo inconsciente de um indivíduo; e não, meramente, como o mencionado desejo. Assim, existiria uma diferença expressiva entre os conceitos freudianos de ―identificação‖ articulados, respectivamente, em 1896 e em 1900.
Nesta obra, Freud (1900) não considerou, explicitamente, a constituição do ―eu‖ como resultante de identificações. Nem mesmo concebeu, ostensivamente, o ―eu‖ como instância
psíquica. Contudo, esta sua conceituação da identificação, em 1900, ocasionaria a
consideração desta última como resultante na constituição do ―eu‖, consideração somente ocorrida mais tarde em sua obra115. Na escrita desta obra, Freud (1900) desenvolveu seu conceito de ―identificação‖ de modo que um mecanismo tenha sido considerado como resultante na identificação – nesse caso, considerada como um evento inconsciente, e não mais como um desejo inconsciente.
Por outro lado, em seu ensaio intitulado ―Psicologia das Massas e Análise do Eu‖ (1921), mantendo a sua consideração da identificação como um evento psíquico, evidenciou, mais complexamente, ao menos três modalidades de identificação, caracterizando os
mecanismos constitutivos destas modalidades – alguns dos quais, posteriormente discutidos
nesta dissertação. Nesse ensaio, Freud (1921) considerou uma das mencionadas modalidades
113
(ROUDINESCO & PLON, 1997, p. 364).
114
(ROUDINESCO & PLON, 1997, p. 364).
115
de identificação – denominada, nesta dissertação, ―identificação pré-edipiana‖ – como o
modo mais remoto de vinculação afetiva na existência de um indivíduo116; anterior, mesmo, a quaisquer investimentos objetais.
A segunda dentre estas modalidades, o autor considerou como ―substituto regressivo‖ de um investimento objetal inviabilizado – reiterando sua conceituação da identificação ocorrida em 1915, em seu ensaio metapsicológico intitulado ―Luto e Melancolia‖. Já a
terceira, concebeu como uma identificação com um objeto o qual não tenha sido antes
libidinalmente investido, o indivíduo se identificando com este último depois da inferência
inconsciente de uma similaridade entre ambos – reiterando sua conceituação da identificação histérica.
A identificação seria considerada como um evento psíquico inconsciente por meio do qual um indivíduo assimilaria um traço supostamente constitutivo de um outro, vindo a se assemelhar a este último nesse aspecto. Freud (1921, p. 100) considerou o ―eu‖ como constituído em conformidade a este objeto, seu modelo de identificação117. E o autor considerou que, comumente, a identificação de um indivíduo com um outro resultaria de um
desejo inconsciente deste indivíduo de se inserir em uma situação idêntica à situação na qual
este outro – o seu modelo de identificação – estaria inserido118.
Já nesse ensaio, sistematizando a situação edipiana, Freud evidenciou certos resultados da identificação de um ―menino‖ com seu ―pai‖, e com sua ―mãe‖; assim como, de uma ―menina‖ com cada um destes seus responsáveis. Os objetos considerados como modelos
de identificação do ―eu‖ – com os quais este se conformaria em certos aspectos –,
consistiriam, inicialmente, em seus responsáveis. Além disso, ainda nesse ensaio, Freud considerou que o reconhecimento [inconsciente], pelo indivíduo, de uma similaridade de ―si mesmo‖ com um objeto seria condição necessária à sua identificação com este último.
Porém, em seu ensaio intitulado ―O Eu e o Isso‖, originalmente publicado em 1923, assim como no ensaio antes mencionado, o autor não somente desenvolveu um conceito de ―identificação‖, mantendo algumas de suas suposições anteriores, mas o articulou com seu conceito de ―complexo de Édipo‖. Não manteve meramente sua suposição de que a
identificação de um indivíduo com seus responsáveis seria constituidora de seu ―eu‖ – assim
116
―A identificação é o modo mais original de ligação afetiva com um objeto.‖ (FREUD, 1921, p. 101, tradução).
117
―Podemos apenas ver que a identificação esforça-se por moldar o próprio ‗eu‘ de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo.‖ (FREUD, 1921, p. 100, tradução).
118
como de seu ―supereu‖ –, mas desenvolveu sua ―teoria da identificação‖, acrescentando, a esta, algumas outras suposições, evidenciadas em uma das seguintes seções deste Capítulo.
Em certas obras de Freud – algumas das quais, analisadas no Capítulo III desta
dissertação –, este considerou o complexo de Édipo, relacionado com importantes identificações, como estruturante da sexualidade. Nesse sentido, em um indivíduo, o complexo ocasionaria certa modalidade de investimento libidinal objetal e certa atitude sexual
– relacionada com certos caracteres sexuais psíquicos.
Posteriormente no Capítulo II, se analisou o conceito freudiano de ―identificação‖ articulado em cada um destas duas últimas obras – ―Psicologia das Massas‖ (1921) e, ―O Eu
e o Isso‖ (1923) –, nas quais Freud não apenas desenvolveu seu conceito de ―identificação‖,
mas o articulou com o seu conceito de ―eu‖ e com sua noção de ―complexo de Édipo‖. Esta noção, assim como o conceito de ―identificação‖, consistiu, nesta dissertação, em importante instrumento na sustentação teórica da coerência de uma noção de ―identidade sexual‖ com a
teoria de Freud. Precisamente nesse contexto, nas duas seguintes seções do Capítulo II, se
reconstituiu o desenvolvimento freudiano de seu conceito de ―identificação‖ em algumas de suas obras mais tardiamente escritas.
2.2 “PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU” (1921): ARTICULAÇÕES