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2. A SOLUÇÃO COTISTA COMO UM PROBLEMA DE IGUALDADE

2.3. A JURISPRUDÊNCIA DA S UPREMA C ORTE BRASILEIRA ACERCA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS EM

2.3.1. Considerações iniciais

A despeito da inexistência de norma constitucional expressa, autorizando a utilização de ação afirmativa em matéria racial (como visto), as universidades públicas brasileiras, sponte sua, passaram, gradativamente, e de forma pioneira, a operar o sistema de reserva de vagas em seus vestibulares, dando impulso a ações afirmativas nesse campo, se bem que, originariamente,

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NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 114.

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tudo tenha começado no Rio de Janeiro, por meio de uma das mais respeitadas universidades (públicas) do país: a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), no primeiro vestibular do ano de 2003, mas com supedâneo em inovadora legislação estadual editada no início da década próxima passada, no caso, a Lei (Estadual) nº 3.708, de 9 de novembro de 2001.

O fundamento jurídico usualmente invocado é que, a despeito da lacuna existente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº

9.394/1996), o art. 207, caput224 da Constituição da República garante a

autonomia (científica, administrativa e financeira) das universidades, sendo que

o art. 51225 da LDB estabelece uma obrigatória correlação com o ensino médio,

visando ao acesso para o ensino superior. Por outro lado, o Brasil, como já mencionado, é signatário da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, integrada ao ordenamento jurídico

pátrio por meio do Decreto nº 65.810/1969 que, em seu art. 1º, § 4º226 c/c art. 2º,

II227, autoriza esse tipo de ação afirmativa, tendo sido recepcionado pela

Constituição Federal, em face da cláusula de abertura material, insculpida no

seu art. 5º, § 2º228. Ademais, está positivado na Constituição, em seu art. 5º,

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“Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”

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“Art. 51. As instituições de educação superior credenciadas como universidades, ao deliberar sobre critérios e normas de seleção e admissão de estudantes, levarão em conta os efeitos desses critérios sobre a orientação do ensino médio, articulando-se com os órgãos normativos dos sistemas de ensino.”

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“Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos” 227

“Os Estados Partes tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social, econômico, cultural e outros, as medidas especiais e concretas para assegurar, como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a estes grupos, com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Essas medidas não deverão, em caso algum, ter a finalidade de manter direitos a grupos raciais, depois de alcançados os objetivos em razão dos quais foram tomadas.”

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“(...) § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

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caput229

, o princípio da igualdade, que deveria ser interpretado em sua dimensão material (tratamento igual aos que se encontrem em posição de igualdade, e desigual para os que se encontrem em posição de desigualdade, na medida em

que se desigualam), sendo autoaplicável, por força do disposto no § 1º230 do

mesmo art. 5º. E, finalmente, como se não bastasse, a medida atenderia a alguns dos objetivos fundamentais da República, consistentes, no caso, na diminuição das desigualdades sociais e na promoção do bem de todos, sem

preconceito de raça (art. 3º, III e IV, CF) 231.

Na precursora hipótese da UERJ, o edital do vestibular de 2003 pôs em execução os comandos normativos insertos em duas leis posteriormente regulamentadas, no caso, a Lei (Estadual) nº 3.524/2000, que destinava 50% (cinquenta por cento) das vagas a estudantes egressos do ensino médio público no Estado, e a Lei (Estadual) nº 3.708/2001, que estabeleceu (pela primeira vez no Brasil) cota de 40% (quarenta por cento) para estudantes negros. Sucede que, naquele ano de 2003, foram organizados dois concursos vestibulares paralelos: o tradicional e o SADE (Sistema de Acompanhamento do Desempenho dos Estudantes do Ensino Médio mantido pelo Poder Público), este último destinado somente aos candidatos egressos de escolas públicas (municipais e estaduais, desde que nelas integralmente cursado o ensino médio) do Estado do Rio de Janeiro, tendo cada um desses vestibulares ofertado metade das vagas disponíveis em todos os cursos da universidade, incidindo a cota racial de 40% (quarenta por cento) de negros autodeclarados sobre o total

das vagas, a serem preenchidas, preferencialmente, pelos inscritos no SADE.232

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“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

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“(...) § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”

231

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

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NASCIMENTO, Carlos Eduardo B.; GUEDES, Luciano Palhano. Cotas raciais na UERJ. Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Grupos

Excluídos, Movimentos Sociais e Direitos Humanos). Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/61639/mod_resource/content/1/COTAS%20RACIAIS %20NA%20UERJ.pdf.>.

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Logo, em sua origem, a discriminação positiva dos negros, no tocante ao acesso para o ensino superior (público), se deu a partir de uma conjugação dos critérios “raça” e ensino secundário integralmente público. Ou seja, para concorrer por meio da cota racial, o estudante tinha que ser preto ou pardo (= negro) e, ao mesmo tempo, ter cursado integralmente os três anos do ensino médio em escola pública do Estado do Rio de Janeiro, embora residualmente, isto é, caso não completada a cota pelo vestibular específico (SADE), os candidatos negros do vestibular tradicional fossem aproveitados na cota, em detrimento, assim, dos demais participantes.

Entrementes, o Governo Federal adotava posição de cautela sobre o assunto, resolvendo não alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, dada a conveniência de que cada universidade procurasse agir regionalmente, dentro de sua autonomia, elaborando seus próprios sistemas de cotas. A preocupação do Governo Federal, na década passada, voltou-se, assim, no que concerne ao ensino superior, ao financiamento do valor dos cursos escolhidos pelos universitários carentes (sem distinção de qualquer outra natureza), os quais não tinham condições de suportar o preço das mensalidades cobradas pelas universidades privadas.

Foi o que sucedeu com a implantação do FIES (Fundo de Financiamento ao Estudante de Ensino Superior), através da Lei nº 10.260/2001, em que, basicamente, é dado obter empréstimo a juros módicos e pagamento com prazo dilatado, para financiamento de até 100% (cem por cento) do valor do curso, desde que se trate de universitário cuja renda fique comprometida (em face do custo respectivo) em mais de 60% (sessenta por cento). E, em seguida, veio o PROUNI (Programa Universidade para Todos), criado pela Lei nº 11.096/2005, com objetivos semelhantes, já que voltado para o estudante de baixa renda, consistindo em financiar a concessão de bolsas de estudo integrais (100%), por universidades privadas, para estudantes cuja renda não ultrapasse um salário mínimo e meio, e bolsas parciais (25% e 50% do custo) para estudantes cuja renda fosse superior a um salário mínimo e meio, mas que não ultrapassasse três salários mínimos. Nesse período, também foi editada a Lei nº 10.558/2002, instituindo o Programa Diversidade na Universidade (PDU), cujo propósito era financiar, com dinheiro do BID (Banco Interamericano de

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Desenvolvimento), projetos de universidades públicas e privadas (estas sem fins lucrativos) com vistas à promoção do acesso de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente negros e indígenas, sendo que, da leitura da respectiva exposição de motivos, percebe-se que, ainda aí, a cor da pele não era fator exclusivo para caracterizar o grupo desfavorecido.