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2 PARA UM CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No Brasil, a “tradicional” doutrina administrativista que assenta o regime jurídico administrativo sob as balizas do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular,3 amplamente difundida e aceita quase sem contestação, passou mais recentemente a sofrer uma série de importantes e qualificadas críticas, que propõem uma sofisticada releitura do regime jurídico administrativo, a partir dos paradigmas do Estado constitucional de direito, da teoria dos direitos fundamentais e da ponderação de interesses.4

Conforme já se disse alhures,5 a ideia da supremacia do interesse público, alçada à condição de “verdadeiro axioma do moderno Direito Público”,6

acabou por ser entronada no posto máximo e inapelável de do capítulo terceiro. Para uma panorâmica análise desse movimento, a partir do marco do neoconstitucionalismo, consultar: BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, ano 81, p. 233-289, 2005.

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O estudo do princípio da supremacia do interesse público, enquanto princípio estruturante do regime jurídico administrativo, será realizado no item 2.2 do capítulo segundo. Desde já, para uma análise da teoria clássica da supremacia do interesse público, indica-se a obra do seu maior difusor na literatura jurídica nacional: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 58-62.

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A análise crítica do princípio da supremacia do interesse público, a partir das teorias da ponderação de interesses, será realizada no item 2.3 do capítulo segundo. Para um estudo panorâmico, consultar: BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2008; SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.

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Algumas das considerações sobre o conceito de interesse público no Estado constitucional de direito, aqui debatidas, já foram abordadas anteriormente, ainda que de forma breve, no seguinte texto: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O conceito de interesse público no Estado constitucional de direito. Revista da ESMESC, Florianópolis, v. 20, n. 26, p. 223-248, 2013.

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justificação de toda a atividade administrativa. Como um claro “mantra de legitimação da atividade administrativa”, o argumento da supremacia do interesse público tudo explica e tudo justifica, inclusive escamoteando toda sorte de arbitrariedades, autoritarismos e ofensas a princípios constitucionais (mormente a impessoalidade e a moralidade administrativa). Tudo passou a ser “magicamente legitimado” a partir de uma retórica frouxa e órfã de racionalidade, o que não escapou à percuciente crítica de Lenio Luiz STRECK, para quem o interesse público se traduz atualmente em uma “expressão que sofre de intensa ‘anemia significativa’, nela ‘cabendo qualquer coisa’”.7

Na literatura jurídica nacional pós-abertura constitucional e democrática, coube a José Eduardo FARIA uma das primeiras análises críticas da noção de interesse público,8 já atento à inafastável problemática dos recorrentes conflitos entre legítimos interesses contrapostos (públicos e privados), traço comum em uma Constituição aberta e pluralista como a brasileira. Denunciando o caráter excessivamente vago e genérico do conceito de interesse público, FARIA o descreve como “um conceito quase mítico, cujo valor se assenta justamente na indefinição de seu sentido e que, por ser facilmente manipulável por demagogos, populistas e tiranos da vida pública, acaba sendo analiticamente pobre”.9

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A expressão é de Lenio Luiz STRECK, em artigo publicado no sítio “Consultor Jurídico”, onde aborda a problemática dos limites à atuação do Poder Judiciário e o desprestígio à lei, a partir da multifuncional e oca retórica da defesa do “interesse público”. STRECK, Lenio Luiz. Ministros do STJ não devem se aborrecer com a lei. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, jun. 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jun-07/senso- incomum-nao-aborreca-lei-ministra-nancy-andrighi>. Acesso em: 10 jun. 2012. 8

Importa assinalar que são raros os estudos específicos e aprofundados acerca do conceito de interesse público, tanto na doutrina nacional como na estrangeira. Isso, inclusive, não escapou à crítica do administrativista lusitano Luís Filipe Colaço ANTUNES, que expressamente denuncia esse esquecimento do interesse público pelo discurso juspublicista, relegado a alguns pares de linhas dos manuais de Direito Administrativo. Nas palavras de ANTUNES, “apetece perguntar por que razão a noção categorial de interesse público tem sido votada, nas últimas décadas, ao ostracismo pelos administrativistas?”. ANTUNES, Luís Filipe Colaço. O Direito Administrativo e a sua Justiça no início do século XXI: algumas questões. Coimbra: Almedina, 2001, p. 14. 9

FARIA, José Eduardo. Antinomias jurídicas e gestão econômica. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 25, p. 167-184, abr. 1992, p. 173.

Com efeito, este é o cenário jurídico-político no qual se insere a tônica central do debate aqui travado: partindo da premissa de que o Estado constitucional de direito, fundado na teoria dos direitos fundamentais10 e na centralidade do princípio da dignidade humana,11 engendra e reclama uma profunda redefinição dos contornos do regime jurídico administrativo, impõe-se a construção de um conceito de interesse público compatível com esta nova engenharia constitucional, indelevelmente marcada pelo traço humanista12 da “personalização da ordem normativa constitucional”.

Inequivocamente, em uma ordem constitucional caracterizada pelo movimento de constitucionalização de uma complexa, dinâmica e até (na prática) colidente gama de direitos fundamentais (interesses individuais e coletivos), a problemática da concretização e defesa destes legítimos interesses passa pela reconformação dos parâmetros do regime jurídico administrativo, a partir dos contornos e limites de um conceito de interesse público afinado a esse novo quadrante constitucional.

Isto impõe, inclusive, a revisão da tradicional centralidade do princípio da supremacia do interesse público, propalado como princípio estruturante do regime jurídico administrativo, a ser superado pelos novos vetores normativos do Estado constitucional de direito, fundados na defesa dos direitos fundamentais e no primado da dignidade humana.

Antes, porém, do debate acerca dos atuais contornos jurídicos do conceito de interesse público, oportuno iniciar a empreitada pela recuperação, ainda que de modo geral e sem pretensão exauriente, da noção política de bem comum na evolução do pensamento político ocidental, desde a Antiguidade clássica até o advento do pensamento moderno.

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O debate acerca da teoria dos direitos fundamentais será realizado no subitem 2.5.2.1 do capítulo segundo. Para uma análise panorâmica sobre o tema, consultar: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

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A análise do princípio da dignidade da pessoa humana será realizada no subitem 3.4.1 do capítulo terceiro. Apenas para adiantar, sobre o tema consultar: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

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Para uma abrangente análise do humanismo a partir de uma ampla recuperação histórica das suas bases, desde a Antiguidade pré-socrática, passando pelo Medievo, Renascimento, até a Modernidade e o conhecimento transpessoal, consultar: OLIVEIRA, Odete Maria de. Conceito de homem: mais humanista, mais transpessoal. Ijuí: Editora Unijuí, 2006.

2.2 A EVOLUÇÃO DA NOÇÃO DE BEM COMUM NA HISTÓRIA

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