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CAPÍTULO 2 Penha: um subúrbio paulistano

1.2 Considerações iniciais.

Até a chegada da ferrovia, no final do século dezenove, fora a importância da religiosidade, a Penha tinha pouco a oferecer à cidade de São Paulo. Os motivos do isolamento estavam diretamente associados à distância, ao que se produzia, ao estado das vias e dos meios de transporte que tornavam difíceis as trocas.

Como já assinalado, a única via de ligação com a cidade era a antiga Estrada da Penha, que, por atravessar áreas alagadiças durante as cheias dos rios Tietê, rio Aricanduva e rio Tatuapé, apresentava-se sempre em condições precárias para os carros de tração animal216. O uso das canoas, via rio Tietê, era uma opção de transporte, mas pelas próprias características destas embarcações naquela época, pequenas e lentas e a remo, não se apresentavam nada interessantes para traslados de pessoas e mercadorias

Alias, não só o Bairro da Penha se apresentava isolado, em termos econômicos, toda a região leste da cidade de São Paulo encontrava-se na mesma condição.217 A ausência de produção para a exportação e a prática da agricultura de subsistência fazia a região desinteressante até para a cobrança de impostos, o que contribuía ainda mais para seu distanciamento da cidade de São Paulo. Somava-se a isso, o fato da região estar distante das rotas do café.

No último quartel do século dezenove, a paisagem nada mudara. A Penha continuava sendo uma capela, uma porção de casas, muitas vazias, e um pequeno equipamento comercial pontuando um topo de colina. Como já observamos, a maioria dessas casas era de agricultores que residiam no campo e somente as utilizavam nas épocas de festividades, para efetivar trocas comerciais e em ocasiões especiais, também relacionadas à religiosidade, como batizados, casamentos e enterros. Desta forma, podemos dizer que a vida do pequeno aglomerado tinha caráter intermitente.

Segundo Langenbuch, nas últimas décadas do século dezenove o aglomerado penhense se destacava pela religiosidade:

[...] grande número de casas urbanas pertenciam a agricultores que a elas acorriam apenas em dias de ofícios e festas religiosas. É de se supor que tal fato fosse comum, em maior ou menor escala, nos demais aglomerados de categoria superior. Ora, se muitos agricultores tinham casas no aglomerado, para nela se alojarem nas mencionadas ocasiões, era também grande o número de agricultores que não dispunham dêste luxo, mas que igualmente eram atraídos ao povoado

216. SANTARCANGELO, M. C. V., op. cit., 1968, p.21. De acordo com a autora, os bondes de tração animal

chegavam à Penha depois de ter seus animais trocados no Marco de Meia Légua e no Brás, onde se localizava a “Cocheira dos Bondes”. Antes a população da Penha era obrigada a seguir a pé, a cavalo ou de tílburi até o bairro.

com a mesma finalidade religiosa [...] A freguesia da Penha era o aglomerado que mais se distinguia neste particular, constituindo verdadeiro centro de peregrinação [...]218

Afirma Langenbuch, ao analisar a relação entre o aglomerado penhense e a cidade de São Paulo,

[...] Através de sua função religiosa, a Penha mantinha ligações muito estreitas com a Capital, tendo sido, provavelmente, o aglomerado dos arredores mais diretamente com ela relacionado [...]219

Assim, acreditamos que no final do século dezenove, os laços somente se acentuavam nos períodos de festas religiosas e procissões e passado esse momento, tudo voltava ao de sempre: o velho bucolismo retornava à paisagem, as barracas de comes e bebes, de vendas de artigos religiosos e suvenirs e de jogatinas desapareciam, o comércio voltava a sua normalidade e a maioria das casas e pousadas para o atendimento dos visitantes tinham suas portas fechadas, pois seus donos retornavam às suas moradas no campo.

À época, a Penha apresentava um número muito pequeno de habitantes, segundo Languenbuch, em 1876, o aglomerado penhense possuía não mais que 1983 habitantes.220 Para se ter uma idéia de como a Penha pouco havia se desenvolvido ao longo do século dezenove, Lungenbuch apresenta os dados da população penhense no ano de 1836: 1206 habitantes, sendo 610 (51%) brancos, 361 (30%) pardos (caboclos, mulatos e cafuzos), 235 (19%) negros e nenhum índio.221 O número pequeno de negros permite a suposição de que o poder aquisitivo dos moradores da região era limitado; assim, ter escravos deveria se tratar de um luxo que a maioria dos penhenses não podia sustentar.

A importância política e econômica do aglomerado era tão pequena que em 24 de maio de 1880, a freguesia de Conceição de Guarulhos foi elevada à categoria de vila e a freguesia de Nossa Senhora da Penha de França, junto com a freguesia de Juqueri, foram a ela anexadas. Somente depois de seis anos, em 3 de maio de 1886, mais por solicitação da Igreja que qualquer outro motivo, a freguesia da Penha voltou a fazer parte do município de São Paulo

Quanto ao comércio penhense também não se destacava: pequenos armazéns, casas de artigos religiosos. Havia, também, pousadas para viajantes com seus pastos para acolhimento de tropas.

Fora a religiosidade, a Penha era apenas ponto de passagem.

Os serviços prestados a viajantes e visitantes até que tinham seu destaque, pois

218. LANGENBUCH, J. R., op. cit., 1971, p.52. 219. Idem.

garantiam rendimentos aos moradores do aglomerado. Langenbuch, ao analisar as práticas comerciais dos aglomerados paulistanos do século XIX, afirma

[...] que a prestação de serviços à circulação tenha sido uma das mais importantes, quiçá principal, em apreciável número de aglomerados, quer grandes, quer pequenos. Comércio e aluguel de animais de carga e montaria, hospedagem de viajantes, compreendendo pernoite, alimentação e fornecimento de víveres, engajamento de população urbana como tropeiros, são as principais atividades ligadas à circulação, que constituem um dos meios de subsistência [...]222

Quanto à prática da agropecuária local: encontrava-se praticamente alheia aos moldes do capitalismo comercial (plantation de cana-de-açúcar e café), e o lucro com a produção era insignificante. Podemos supor que a produção agropecuária da região, pelo menos até o aparecimento de transportes mais eficientes, era destinada à subsistência e ao escambo entre os moradores.

A prática agropastoril dos camponeses penhenses era favorecida pela presença de água em abundância, de solo fértil, de clima favorável e de pastagens naturais. O que permitia aos pequenos proprietários da região plantar cana-de-açúcar, algodão, vinha, trigo, mandioca, milho, café, hortaliças, entre tantos outros, e criar gado bovino, porcos, aves, eqüinos, mulas para transporte.

No mais, a localidade pouco se diferenciava das demais freguesias que compunham a cidade de São Paulo. Como podemos observar neste documento encontrado na Ata da Câmara Municipal de São Paulo de 28 de maio de 1874:

[...] que na auzencia de dados officiaes quer nos archivos desta Camara quer [...?] apenas a Camara informar pelo conhecimento que tem do municipio o seguinte: Quanto ao primeiro quesito - Quaes as superfícies cultivadas e não cultivadas? - que não sendo o municipio desta capital dado a grande lavoura, mas occupando- se com raras excepções, os seos agricultores no plantio de cereaes, cultivão para este fim poucos alqueires de terras, pelo que parece, attendendo a isto e a grande quantidade de terras incultas, que não ha exageração em estabelecer que apenas um decimo, quanto muito, da superfície do municipio é cultivado. Quanto ao segundo quesito - Quaes os productos das diversas culturas com relação as superficies que ellas occupão? É fora de duvida que um terço da superficie cultivada é ocupada pelo milho, seguindo-se immediatamente a mandioca, o feijão, o arros, a batata e a canna de assucar. Quanto ao terceiro quesito - Quaes os animaes dos estabelecimentos ruraes que são nelles produsidos e servem-lhes de instrumento de trabalho? São os animaes de raças bovina e cavallos os unicos que servem no municipio de instrumentos de trabalho agricola, sendo em sua quase totalidade creados no municipio. Quanto ao quarto quesito - Quaes os systemas de cultura das terras, seos processos e ferramentas agricola? Sendo a lavoura do municipio quazi esclusivamente de cereaes é o seo systema o commum e rotineiro, que começa pela derrubada, seguindo-se a queimada, preparo da terra, plantio, limpa e colheita: as terras não são estrumadas. Pouco é uzado o arado e a enxada é o instrumento geral que prepara a terra.223

221. Ibidem, p.70. 222. Ibidem, p.52.

223. Cf. Atas da Camara da Cidade de São Paulo - 1874, Departamento de Cultura, Prefeitura Municipal de

Para completar, outro parecer, datado de 30 de julho de 1874, esclarece que:

[...] relativamente a terrenos do municipio em que se podem estabelecer colonos é do parecer que se responda ao governo: Que não sendo terras do municipio da capital proprios para cultura do café, e sendo em geral aproveitadas para o plantio de cereaes e canna, só para esta especie de lavoura se poderão formar com vantagens colonias agricolas no mesmo municipio, e que sendo todos estes terrenos em roda da capital em zona limitada, é mui facil a condução ao principal mercado consumidor da provincia e mesmo no cazo de exportação é facil accesso ao porto maritimo de Santos.224

Em termos de manufatura, na Penha do final do século dezenove se destacava apenas produção de vinho e cerveja.225

Mesmo com a chegada das primeiras linhas de transporte público, feita por veículos de tração animal pouca coisa se alterou na relação entre a localidade e a cidade de São Paulo. Esses veículos lentos, ruidosos, caros e irregulares, começaram a atender o aglomerado a partir de 1872, mesma época em que começaram a circular por Santo Amaro,226 e se apresentaram insuficientes para melhorar vínculo com a cidade.

Segundo Santarcangelo,

[...] ela Lei Provincial de nove de março de 1871, era outorgada a exploração do transporte sobre trilhos ao engenheiro Nicolau Rodrigo de França Leite, que a transferiu à Companhia Carris de Ferro de São Paulo. A primeira linha de diligências sobre trilhos de ferro ia do Largo do Carmo à Estação da Inglesa. A inauguração dessa linha de bondes do Brás deu-se a primeiro de julho de 1877, com os carros ornamentados com bandeirolas e altos convidados. Surgiram duas linhas a vapor. Uma para o Ipiranga e outra para a Vila Mariana. A do Ipiranga teve curta duração, a segunda estendeu-se até Santo Amaro. Nessa época, só existiam, sobre trilhos, duas formas de transporte: - bondes alimentados a vapor (Santo Amaro) e bondes puxados por parelhas de burros, que entraram em circulação a partir de doze de outubro de 1872. Em 1889, já funcionavam várias linhas por tração animal. Quatro companhias exploravam esse transporte. A de Rudge Ramos, foi a que obteve autorização para extensão da linha Penha.227

Com a chegada da ferrovia esse meio de transporte entrou em decadência e desapareceu na localidade.228

uma pesquisa que permitisse fornecer um parâmetro geral da produtividade agropecuária no município.

224. Ibidem, p.112.

225. BRUNO, E. S. op. cit., 1984, p.690. Segundo o autor, desde 1850 já se falava da cerveja da Penha; “em

1850 os estudantes da Academia, quando iam cear em um dos dois restaurantes paulistano , ou mesmo apenas tomar um copo de cerveja da Penha [...]”

226. LOPES, M. B. P. O. Pequena história dos transportes públicos de São Paulo. Museu CMTC dos

transportes públicos, 2º ed., São Paulo, 1985. Segundo a autora, “os primeiros registros da

organização dos transportes públicos em São Paulo datam de 1865, quando foram regulamentados os serviços de tílburis (veículos de duas rodas puxados por um cavalo, ou carruagem de quatro rodas

puxada por uma parelha) [...] em 21 de agosto de 1865, o italiano Donato Severino regulamentou por

conta própria o uso de tílburis, transformando-os em carros de praça com tabela de horários e preços. Dois anos depois, as leis municipais regulamentaram a profissão de cocheiro [...] Para ir do centro à estação Norte Igreja da Luz, Igreja da Consolação, Arouche ou riacho Lava-pés, o preço das viagens era a metade daquele cobrado para lugares mais distantes, como a Várzea de Santo Amaro, Caminho da Penha ou cemitério da Consolação [...] Para viagens mais distantes, como Santo Amaro ou Penha, usava-se os carros de boi [...]” p.18.

227. SANTARCANGELO, M. C. V., op. cit., 1968, p.21. 228. BRUNO, E. S. op. cit., 1984, p.582.

Para ilustrar o parágrafo anterior temos interessante citação de Hadfield encontrada no trabalho de Richard M. Morse:

O número de velhas carroças ou carros com duas rodas inteiriças de madeira [na cidade de São Paulo] puxados por ‘juntas’ de bois de acôrdo com o pêso a ser transportado, e a constante passagem dos mesmos e de burros e cavalos... indicam a natureza dos meios de transportes que existiam antes da abertura da estrada de ferro [...] [os agricultores] se agrupavam junto a lojas ou armazéns nas ruas em que se realizam seus negócios, descarregam as mercadorias e uma certa porção dos animais é carregada de novo e levada aos seus respectivos destinos.229

As terras da região não entraram de imediato no processo especulativo que já se acelerava em outras áreas da cidade de São Paulo. Voltaremos a falar desse fenômeno mais adiante.

Nos primeiros anos da ferrovia, o isolamento socioeconômico começou a diminuir, pois reforçou a condição de área tributária da cidade de São Paulo (fornecimento de produtos primários e mão-de-obra). No entanto, a região continuou fisicamente separada da cidade.

Tal situação também contribui para a formulação da hipótese de que a região vivenciou uma condição de subúrbio. Vamos aprofundar nossa análise partindo do estudo da chegada da ferrovia no bairro.