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Sobre os aspectos metodológicos levaremos dois pontos em consideração: o primeiro diz respeito à pesquisa bibliográfica cujo objetivo foi o de contextualizar nosso problema a partir da literatura sobre o tema. Esta pesquisa foi apresentada a partir de um levantamento entre diferentes áreas do saber que nos serviram de base para delimitar, num segundo momento, as possíveis contribuições da psicanálise para os casos de TDAH. Propusemos com isto, ressaltar a importância deste diálogo num contexto acadêmico onde se observa a intensificação da pretensão de cada saber em universalizar sua área de conhecimento e aprofundar o estudo de seu objeto dentro de uma especialidade. A especialização do conhecimento em uma única base epistemológica pode ser satisfatória no âmbito das ciências duras, mas falha quando a pretensão investigativa envereda para um entendimento sobre o sujeito e suas modalidades de sofrimento psíquico.

O aumento da fragmentação e especialização distancia a possibilidade de consenso sobre os critérios valorativos através da particularização de uma ética própria a cada campo do conhecimento. O problema se instala quando se eleva a hegemonia de determinadas visões sobre o objeto, opondo-se a um entendimento sobre o sujeito baseado no reconhecimento de diferentes domínios da vida humana, biológico, subjetivo, histórico e social. Romper a barreira que existe entre as disciplinas não implica necessariamente na criação de uma linguagem comum, mas numa troca que permita a equalização do peso dado a cada uma destas facetas de análise em prol da ampliação da discussão em problemas maiores.

Seguindo o objetivo de considerar diferentes perspectivas sobre nosso objeto de pesquisa, foram revisados estudos oriundos da psiquiatria, neuropsicologia, psicomotricidade e psicanálise, contemplando temas como as concepções atuais sobre o TDAH, as características clínicas, comorbidades, epidemiologia e etiologia. Foram consultados estudos e revisões nas bases de dados Scielo, PsycINFO, Cochrane Library e também livros e textos históricos.

Mesmo ocupando lugares diferentes do campo do conhecimento, este percurso entre diferentes áreas visou identificar possíveis pontos de encontro sobre o tema em defesa da ampliação deste diálogo. A preocupação que restou foi engajar as contribuições da psicanálise ao TDAH, categoria diagnóstica advinda da psiquiatria, e situar o fenômeno a partir de sua via epistemológica própria. Os estudos sobre o tema no campo psicanalítico, ainda que escassos, contribuíram para o entendimento dos fenômenos estudados desde uma perspectiva que analisa

a posição subjetiva do sujeito. Em se tratando de contribuições da psicanálise, especificadamente, sobre as repercussões destes fenômenos na vida adulta, nenhum estudo foi encontrado. Assim, buscamos valorizar alguns conceitos em Freud e Lacan que ajudassem a situar metapsicologicamente as manifestações dentro do que entendemos como infantil, sem desconsiderar as especificidades da incidência no cotidiano inerente à maioridade. Considerando que as novas modalidades subjetivas, nas quais se inclui o TDAH, denunciam certos impasses anteriores ao processo de identificação e alienação ao discurso social, escolheram-se conceitos que contribuíssem mais amplamente para o entendimento deste tempo constitutivo, como narcisismo, angústia e ato.

O segundo ponto a ser discutido refere-se à pesquisa de campo, que se fez necessária para que alcançássemos o objetivo de averiguar as implicações subjetivas relacionadas ao diagnóstico de TDAH em adultos. Diante deste objetivo, a escolha foi pela pesquisa qualitativa a partir de uma abordagem qualitativa, cujo instrumento foi a entrevista semi-dirigida (fundamentada em algumas perguntas disparadoras). A aplicação e posterior análise foram psicanaliticamente orientadas através do referencial teórico freud-lacaniano. Buscou-se através deste instrumento de pesquisa, assegurar a liberdade narrativa do sujeito e permitir que as problemáticas fossem delineadas e significadas a partir de sua própria percepção. Turato (2008) oferece alguns elementos que podem ser aproveitados para pensar a pesquisa qualitativa em psicanálise. De acordo com o autor, pesquisas que visam valorizar a perspectiva dos entrevistados, e não da visão do pesquisador a partir da literatura, seguem um modelo de estudo

êmico, ou seja, buscam investigar processos mentais inconscientes e/ou os processos

socioculturais subjacentes, nos quais objetos gerais e ideias partem de outros elementos.

A pesquisa qualitativa, segundo Turato, permite a realização do contexto com o particular, enfatizando a diferença presente em tudo àquilo que compete ao ser humano. É justamente esta contextualização que define a clínica enquanto campo de investigação. Através disso, é possível ao pesquisador receber as interferências, o “ruído indesejável” (p24), o não esperado durante uma investigação, pois são justamente as intercorrências que se estabelecem entre o homem e seu meio que o qualitativo privilegia.

A preocupação durante a realização das entrevistas foi abarcar os sentidos e significados atribuídos a esta condição psicopatológica ao longo de cada trajetória de vida, incluindo as vicissitudes do recebimento do diagnóstico, tratamentos realizados e as dificuldades cotidianas nos campos acadêmico, laboral e afetivo. Em posse destes conhecimentos, espera-se alcançar uma melhor compreensão da natureza dos fenômenos estudados e apontar novos rumos de

pesquisa que possam contribuir para a prática clínica com estes pacientes.

Contudo, é necessário retroceder nossa discussão para situar as condições metodológicas que serão necessárias para esta modalidade de pesquisa de campo. O entrave metodológico que surge é associar o método de pesquisa em psicanálise ao uso do instrumento de entrevistas fora do contexto clínico, stricto senso.

Desde sua origem, pesquisa e prática em psicanálise estiveram associadas e organizadas em torno da investigação de seu objeto fundamental, a saber: o inconsciente. Sob transferência, sua prática clínica visa resgatar a história pessoal do sujeito com o intuito de identificar montagens psíquicas em seu sentido estrutural, latente e manifesto. Ao compreender tais montagens é possível ao analista enunciar hipóteses para certos padrões psicodinâmicos, assegurando, contudo, que tal formalização somente deverá ser utilizada se na prática clínica for considerada a particularidade dos sujeitos em primeiro plano. Nesse sentido, o método de pesquisa mais utilizado em psicanálise é baseado na análise de casos clínicos, onde se garante o estabelecimento do setting analítico e a transferência entre analista e analisando para acesso do conteúdo inconsciente.

O recurso a outros dispositivos de investigação, contudo, não deve ser destacado desta modalidade de pesquisa, como buscam apontar alguns autores a partir de uma perspectiva ampliada de pesquisa em psicanálise, ressaltando a importância do pensamento clínico e da experiência do pesquisador em situações de investigação que não envolvem um tratamento em si. Turato (2008) discorre sobre o uso do referencial teórico psicanalítico como ferramenta para o pesquisador clínico-qualitativista, tanto na aplicação de instrumentos auxiliares de pesquisa, quanto na discussão e interpretação dos resultados. Dentre outras conceituações, o autor destaca a importância do fenômeno transferencial nas propostas metodológicas. Referindo-se a Freud, o autor evoca a via da transferência para que se considere na pesquisa qualitativa a peculiaridade da relação do indivíduo com seu interlocutor, fundamentada em relações emocionais (boas ou hostis) com figuras pessoais da história de cada sujeito.

Com isto, julgamos interessante buscar também apoio em aspectos de outras bases com vistas a aprimorar nosso instrumento de investigação. Assim, encontramos uma forma de integração dentro da perspectiva da história oral, que visa lançar luz sobre as entrevistas em profundidade, articulando as fontes orais à subjetividade do expositor, bem como a implicação deste em sua história (Portelli, 1979).

Alguns autores apontam o uso de entrevistas em pesquisas qualitativas a partir de um ponto de intersecção entre a história oral e a psicanálise. Esta é, por exemplo, a análise de um

trabalho argentino (Capella et.al, 2009) que aproxima as duas disciplinas a partir de um vínculo que nutre, por um lado, a vertente psicanalítica, sempre preocupada com as histórias dos sujeitos articulada a subjetividade humana e seus contextos históricos, e por outro a história oral, que desloca o conteúdo informativo das entrevistas para dimensões da memória, ideologia, desejos, destacando a construção narrativa dentro dos tempos, repetições, ausências e sentidos.

Os pesquisadores, contudo, ressalvam também as diferenças entre as duas perspectivas, que incluem a demanda (o paciente procura seu analista enquanto que o historiador oral busca seus entrevistados); enquadre (consultório para os psicanalistas e para o historiador oral qualquer espaço que conecte o entrevistado a suas memórias) e transferência (para o psicanalista a relação de transferência com o paciente em direção à cura e, com o historiador, um vinculo de confiança com o entrevistado). Vale ressaltar, sobre este último aspecto, que a situação de entrevista através do marco da história oral supõe um vinculo que não deve contribuir deliberadamente a fazer emergir uma angustia que não poderá ser contida, tendo em vista não se tratar de um contexto de tratamento. Nesse sentido, há um aspecto ético importante, no qual a entrevista sob o marco da história oral não visa uma interferência psiquica, sendo que o entrevistador elabora suas questões, com maior ou menor estruturação, em função dos objetivos que guiam sua investigação, enquanto que o psicanalista não sabe a priori os caminhos que se seguirão nas entrevistas, já que as perguntas disparadoras funcionam como estímulo para que o sujeito comece a falar de si. As semelhanças entre as duas modalidades estariam em torno dos processos de restituição da memória, ressimbolização, reconstrução de sentido e a abertura em se oferecer uma interpretação das histórias em articulação à dimensão social da experiência humana.

Se, a partir deste estudo, vemos a história oral buscar bases próximas ao método psicanalítico, uma inversão desta ordem agora pode emergir, de modo que a psicanálise possa ir de encontro ao espectro da história oral para delinear uma forma de escuta fora do contexto clínico. Neste sentido, as diferenças ressaltadas pelos autores entre os contextos de investigação, podem agora se dissolver na direção da ampliação das situações de pesquisa em psicanálise a partir de outro vínculo transferencial (fora da situação de tratamento), outro tipo de enquadre (fora do setting analítico) e outro estabelecimento da demanda (analista procura entrevistado).

Rosa (2004) explica que para Freud, a transferência não se reduz a situações analíticas, do mesmo modo que a manifestação do inconsciente se faz presente em diferentes fenômenos humanos, sociais e culturais. Mezan (2002) resgata a noção de pensamento clínico em Green para justificar que a investigação psicanalítica está para além da situação analítica e, portanto,

as críticas que sustentam o pensamento contrário tornam-se enfraquecidas. Assim, justifica-se a possibilidade do uso de entrevistas na pesquisa em psicanálise, valorizando as impressões do analista nas diversas situações por ele investigadas.

Ainda sobre o uso de entrevistas, Dor (1991) argumenta que o tempo da “observação”, ou seja, o tempo inicial da escuta é anterior à decisão de um tratamento, mas está, desde então, inserido na proposta psicanalítica. É o tempo dedicado às entrevistas preliminares, ou ainda, recuperando a expressão freudiana, ao “tratamento de experiência”. O autor assinala: “Por pouco que seja um tempo de observação, esse tempo preliminar permanece inscrito, desde seu começo, no dispositivo analítico” (p.16). O uso da entrevista preliminar pode ser útil para pensar situações de pesquisa que não saltam de um contexto de análise. Tais situações reservam um tempo “pré-analítico”, um lugar de passagem até a construção de uma questão para o tratamento, mas que está, mesmo neste interim, articulado ao pensamento clínico do analista.

No entanto, como vimos, outro problema nos é colocado quando o trabalho de pesquisa, além de não partir de um contexto clínico, apresenta o agravante da origem da demanda ser do entrevistador, e não do entrevistado. Trata-se, segundo Costa&Poli (2006), de uma “inversão do modelo clínico no qual o paciente endereça uma demanda ao analista supondo-lhe um saber.” (p.18) As autoras descrevem este tipo de entrevista como “testemunho”, na qual o sujeito é colocado a narrar àquilo que viveu, representando a experiência a partir da transferência com o

analista/pesquisador.

Esta inversão do modelo clínico é encontrada também no dispositivo que Lacan recuperou ao realizar as apresentações clínicas. Nelas o sujeito consente em apresentar-se diante de um público de analistas para falar sobre seu funcionamento e de suas relações sociais. Para Sauret (2003), a apresentação clínica é uma “extrapolação das entrevistas preliminares”, em que o analista busca extrair condições para a análise e o sujeito pode desejar de certa maneira “preservar sua liberdade de “não transferência” (p.97).

Sobre esta modalidade de intervenção, consideramos também o argumento de Rosa (2002) que, através de Freud (Psicopatologia da vida cotidiana), e Laplanche&Pontalis (1971), esclarece que o inconsciente está presente nas mais variadas manifestações humanas. A interpretação “pode estender-se às produções humanas para as quais não dispõe de associações livres” (Laplanche&Pontalis apud Rosa, 2002) desta maneira explica a autora: “se pode trabalhar a partir de uma escuta psicanalítica de depoimentos e entrevistas, colhidos em função do tema do pesquisador que, por sua vez, reconstrói sua questão nessa relação.” (p.342)

Mesmo justificando o uso da entrevista como instrumento de investigação válido para nosso propósito, há de se considerar que, a disponibilidade dos entrevistados em participar da pesquisa também sugere uma demanda dirigida àquele que o escutará e, portanto, tais expectativas serão consideradas na condução da análise do material das entrevistas.

Reconhecendo que há possibilidade do uso da entrevista-testemunho a partir do suporte da história oral como forma de obtenção de dados dentro de nossa pesquisa em psicanálise, concluímos, seguindo o argumento de Sauret, que se faz necessária uma distinção entre psicanálise e método psicanalítico. O dispositivo de análise permite ao sujeito engendrar na relação aquilo que lhe é desconhecido, desde uma perspectiva que alia os quatro conceitos fundamentais em psicanálise: inconsciente, transferência, repetição e pulsão. Já o método psicanalítico, segundo o autor, pode ser considerado de forma mais ampla, constituído dos elementos da análise em outros contextos:

(O método psicanalítico é constituído) daquilo que, pela experiência de análise, é transponível fora dela, sem romper o laço com o discurso analítico. Uma concepção do sujeito como falante e dividido, a hipótese do inconsciente como fundamento de todo fato psíquico, o que implica verbalização (entrevista), escuta, a análise, transferência, intervenção (ainda que imposta pela consequência do encontro). (p.98)

Sendo assim, é perfeitamente possível que o sujeito do inconsciente possa surgir numa situação de entrevista semiestruturada, se contarmos com um entrevistador psicanalista que possa manejar este tipo de escuta e a circunscreva dentro dos objetivos específicos de seu estudo e em consideração às questões éticas que uma entrevista fora do contexto clínico exigem. Sobre a intervenção, usar a narrativa oral é uma forma de resgate da história pessoal que também serve como ferramenta de reconstrução subjetiva para o entrevistado, partindo do princípio que sempre existirá alguma forma de experiência subjetiva neste tipo de encontro.

Entrevistas

Os critérios de inclusão dos participantes para a pesquisa foram: adultos, diagnosticados com TDAH desde a infância e do sexo masculino, considerando que a incidência do TDAH é maior em homens do que em mulheres. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, sugeriu-se um número de cinco a dez entrevistados para que as análises pudessem proceder com minuciosidade.

Considerando a pesquisa enquanto qualitativa, o uso de entrevistas semiestruturadas foi fundamentado em questões abertas disparadoras, sendo, então, a pergunta mais adequada para a investigação proposta: “quais os sentidos e significados que você atribui ao TDAH em sua história”.

Propôs-se a aplicação de determinada entrevista, investigadora e entrevistado, num encontro de aproximadamente uma hora. Foram tomados os cuidados de expor ao participante o compromisso ético com os dados obtidos e seu aproveitamento, exclusivo, para fins de pesquisa. Considerando que o método da pesquisa prevê entrevistas individuais, foram respeitadas as exigências éticas da pesquisa clínica, que envolvem o consentimento do sujeito e sigilo da identidade (anexo 1).

As entrevistas, previamente agendadas, foram realizadas em recinto preservado, mediante autorização formal do participante, documentada em conformidade com as diretrizes éticas de pesquisa aprovadas pelo comitê de ética e pesquisa do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo em agosto de 2012. As entrevistas foram gravadas com duração de aproximadamente uma hora. As transcrições foram utilizadas para a discussão teórica e, ao término da pesquisa, o material gravado e transcrito foi inutilizado. Houve dificuldades para encontrar um número maior de sujeitos, então as entrevistas foram realizadas com 6 sujeitos.