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Toda pesquisa empírica, seja ela qualitativa ou quantitativa, exige a definição de referentes práticos, aceitos pela comunidade científica, a fim de que os resultados obtidos possam ostentar as qualidades necessárias para a sua aceitação. Este módulo traz essas definições em relação aos aspectos teóricos que guiaram o presente estudo.

O objetivo focal desta tese é analisar as convergências e divergências entre o que prevêem as legislações sobre a gestão democrática e sua implementação em escolas públicas do Estado do Ceará. Isso quer dizer que se tem uma idealidade e uma realidade que pretende idealizar as referidas legislações. O que são uma e outra? A princípio, em seus postulados e prescrições, vê-se que, na verdade, são os seus ângulos e horizontes constituintes que objetivam orientar as realidades escolares à sua conformação, que tem como essência a democratização da escola. Por ser de caráter universal, a legislação se apresenta, portanto, como um ser ideal. Com efeito, de acordo com Heidegger (1957:97),

(...) o ser não nos é de forma alguma tão imediatamente familiar e manifesto como o ente. Não como se o ser se conservasse totalmente oculto. Se isso acontecesse, então o ente não poderia estar à nossa frente e ser-nos familiar.

No caso deste estudo, o ser pertence a uma região, o mundo jurídico, que tem métodos e linguagem própria, o que colabora para dificultar a apreensão do que é esse ser. De qualquer forma, administradores escolares tentam implementar as prescrições da legislação, isto é, tentam criar um ente que se assemelhe ao ser-da-lei. Este capítulo fará a comparação entre o previsto na lei e o que está sendo efetivamente implementado, quando ficará claro que nem sempre esse objetivo foi atingido.

A questão recorrente é: o que é o ente? Ou mais precisamente, o “ser do ente”, de acordo com Heidegger (1957), são objetos do mundo circundante que está à volta das pessoas e o próprio mundo em si. Nesta perspectiva, o ente são as formas do ser se apresentar e se descobrir. Trata-se, portanto, de coisas do mundo real, como é o caso de uma escola na qual convivem muitos entes. No caso deste estudo, o ente se personifica na idéia abstrata e ideal de democratização da gestão escolar. A questão de fundo é: em que grau o “ser-do-ente” representa o ser-da-lei? Entra em cena aqui o sentido de utilidade que os instrumentos instâncias do mundo têm para as pessoas. Da mesma forma que só “[...] As vivências têm cognitivas – e isto pertence à essência – tem um intentio, visam (meinen) algo, referem-se, de um outro modo, a uma objectalidade [...]”, isto é, quando há um olhar intencional para essa coisa (HUSSERL, 1972:83), da mesma forma os instrumentos só se tornam úteis quando se percebe neles sua utilidade prática. Jolivet (1953:95) descreve muito bem essa faceta dos objetos, ao lecionar:

O ser cotidiano vive num mundo de utensílios, que tem caráter pragmático e se relacionam essencialmente com o Dasein (o ser – aí) que deles se serve [...]. Isto equivale a quer dizer que a nossa primeira impressão não é teórica, mas prática e utilitária.

A proposta intrínseca da legislação refere-se a algo desejado, mas abstrato, e não vivenciado pela comunidade que vai aplicá-la. É fácil se concluir a possível ausência desse sentimento de utilidade prática a que se reporta Jolivet. Perceber a importância de algo não vivenciado não é fácil de ocorrer. Daí as dificuldades que se põem no caminho de construir um ente que tenda para o ser que lhe serve de fundamento. As falas mostraram isso sob

formas variadas, que incluíram a falta de preparação para o exercício da democracia na escola, bem como o desconhecimento das funções dos agentes no cenário.

Vemos que as legislações em estudo é o fio condutor de todo este estudo. Elas estão no centro e no foco de interesse e dá andamento às discussões. Ao se tomar consciência desse fato, torna-se necessário refletir sobre ela própria. Essas leis não existem num vácuo jurídico. Pelo contrário. Por serem leis infraconstitucionais, elas pertencem a um ordenamento jurídico e seu embasamento é derivado de norma mais geral. Questiona-se, portanto, qual o fundamento dessas leis, visto que, de acordo com Heidegger (1975:11) “Nada é na verdade sem fundamento”. Por pretender implantar um padrão da gestão e comportamento de comunidades escolares, elas terão quer ter um fundamento.

Encontra-se insculpido nos Princípios Fundamentais da Constituição de 1988, o seguinte:

Art. 1 A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

... II- a cidadania;

III- a dignidade da pessoa humana;

E no capítulo III, Seção I, Da Educação, o Art. 206, reforça o princípio citado e impele que o ensino será ministrado nos seguintes princípios:

...

VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei; ...

Ora, a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988, pela primeira vez na história, inicia a explicitação dos fundamentos do Estado brasileiro, exprimindo que os três poderes constituídos, o Executivo, o Legislativo e Judiciário, são meios – e não fins que existem para garantir os direitos sociais e individuais. Os fundamentos do Estado Democrático de Direito são: a soberania, a cidadania, a dignidade

da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político (art. 1º da Constituição).

Assim, a cidadania deve ser compreendida como produto de histórias vividas pelos grupos sociais, sendo, nesse processo, constituída por diferentes tipos de direitos e instituições. O debate sobre a cidadania e dignidade da pessoa humana é hoje diretamente relacionado com a discussão sobre o significado e o conteúdo da democracia, sobre as perspectivas e possibilidades de construção de uma sociedade democrática.

A democracia pode ser entendida, em um sentido restrito, como um regime político. Nessa concepção restrita, a noção de cidadania tem um significado preciso: é entendida como abrangendo exclusivamente os direitos civis (liberdade de ir e vir, de pensamento e expressão, direito à integridade física, liberdade de associação) e os direitos políticos (eleger e ser leito), sendo que seu exercício se expressa no ato de votar.

Entendida em sentido mais amplo, a democracia é uma forma de sociabilidade que penetra todos os espaços sociais. Nessa concepção, a idéia de cidadania ganha novas dimensões.

A democratização dos sistemas de ensino e da escola implica o aprendizado e a vivência do exercício de participação e tomadas de decisões. Trata-se de processo a ser construído coletivamente, que considera a especificidade e a possibilidade histórica de cada sistema de ensino, de cada escola. O importante é compreender que isto não se efetiva por decreto, portarias ou resoluções, mas é resultante, sobretudo, da concepção da gestão e da participação que temos.

Complementando a ideação anterior, entendo a escola como espaço de contradições e diferenças. Nesse sentido, quando se procura estabelecer na escola uma participação baseado em relações de cooperação, no trabalho coletivo e no partilhamento do poder, impõem-se exercitar a pedagogia do diálogo, do respeito às diferenças, garantindo a liberdade de expressão, a vivência de processos de convivência democrática, a serem

efetivados no cotidiano, em busca da construção de projetos coletivos. Desta forma, exercitam-se a formação do cidadão e a dignidade da pessoa humana.

Fica claro, dessa forma, que a essência da lei em estudo está fundada na Constituição de 1988, que representa o topo da pirâmide do ordenamento jurídico pátrio.