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CAPÍTULO 1 A CONCEPÇÃO DE VOZ E DOS DISTÚRBIOS VOCAIS NO CAMPO

1.5 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Este capítulo objetivou tentar descrever a forma como a Fonoaudiologia pensa e vê a voz, notando que ela é situada sempre a partir da clínica dos distúrbios vocais. Assim, fez-se necessário apresentar uma revisão dos principais achados bibliográficos concernentes à voz e à clínica vocal nessa área.

Ao longo das páginas, percebe-se a tentativa de se considerar as condições do sujeito falante para além do anatômico e do fisiológico. Todavia, o que fica mais evidente é um efeito

de higienização da voz dos sujeitos falantes, tanto através das denominadas avaliações objetivas quanto da avaliação perceptiva-auditiva da voz, ou seja, da avaliação subjetiva que o clínico exerce acerca da voz de seu paciente.

Existe certo consenso cultural acerca de características e qualidades vocais de um indivíduo. Tal consenso é importante como ponto de partidas nas avaliações e terapias vocais, mas nunca deveria ser tomado como uma padronização.

No entanto, ao mesmo tempo, parece haver uma necessidade de classificação da voz. Há, sem dúvida, uma validade terapêutica nessas classificações: se a voz do paciente é rouca pela presença de nódulos, edemas ou pólipos, é possível indicar a técnica do bocejo-suspiro. Se for uma voz soprosa por paralisia de prega vocal, uma das técnicas indicadas é a deglutição incompleta sonorizada. Se há dificuldade no processo de muda vocal, usa-se a vocalização inspiratória. Ou seja, a literatura fonoaudiológica indica as técnicas adequadas a cada quadro, mas sempre também descreve a importância de considerar as condições psicológicas do paciente.

Percebe-se, portanto, que existe uma preocupação real com as características emocionais do paciente, pois os estudos dessa área na Fonoaudiologia quase sempre citam esse fator como algo decisivo para o sucesso da abordagem terapêutica. No entanto, ao descreverem – além do diagnóstico – as queixas, sinais e sintomas, os trabalhos se centram exclusivamente nas características da voz emitida, além das possíveis técnicas a serem utilizadas. Desse modo, há quase uma impressão de que voz e sujeito podem ser independentes um do outro no momento da execução de um planejamento terapêutico.

Se falo em uma separação entre voz e sujeito a partir do exposto até aqui, deve ficar claro que essa separação indica uma falta de articulação entre voz e linguagem. Se a voz é exclusiva do ser humano, como separá-la da linguagem, uma vez que o sujeito está na linguagem e se vale dela para viver?

Nesse sentido, encontro alento no trabalho de Leite et al. (2008) quando as autoras descrevem e analisam alguns estudos que defendem a lógica de não se considerar apenas o sintoma, mas também o sujeito, e afirmam que levar em conta aquele que está produzindo a voz não significa perder a objetividade da avaliação ou do tratamento fonoaudiológico. No entanto, é importante ressaltar que, entre as leituras realizadas para a escrita desta dissertação, apenas os trabalhos dessas autoras e de Steuer (2005) efetivamente se posicionam em defesa do sujeito falante na clínica fonoaudiológica da voz. Todos os outros trabalhos citados apenas caem no vazio do uso das expressões “características psicológicas”, “aspectos emocionais” e “personalidade”, entre outros.

No decorrer da revisão feita para a elaboração deste capítulo, outro ponto também merece destaque: a voz é, muitas vezes, confundida com a fala. Em uma passagem, por exemplo, há a explicitação de que“a voz faz parte de uma habilidade exclusivamente humana conhecida como fala” (COLTON; CASPER; LEONARD, 2010, p. 02). Há, também, menções ao fato que a função de fonação é inata, enquanto a voz seria adquirida (BEHLAU; AZEVEDO; MADAZIO, 2001) ou que o som passaria pelas cavidades de ressonância e assim formaria a voz (FRANCO, 2013). Ora, o que é adquirido é a habilidade de falar, de colocar o sistema da língua em movimento através da fala vocalizada. O que forma a voz, então, seria a fala? Antes de ser moldada em fala, a voz seria apenas som? Essas são pontuações que deixam claro, para mim, a pouca articulação existente entre voz e linguagem.

Nesta dissertação, a voz não é entendida como fala. A voz é situada como um fenômeno que marca a singularidade do sujeito falante na linguagem. Sem dúvida, a voz pode se fazer presente na fala oral, mas não exclusivamente. O choro, o grito e o gemido, por exemplo, também são atos reveladores da voz do sujeito falante e, em alguns casos, são as únicas possibilidades de expressão oral que são encontradas na clínica dos distúrbios de linguagem. Além disso, também é possível observar fala sem voz, como nas línguas visoespaciais e nos gestos sociais reconhecidos em cada cultura. Logo, colocar a voz como fala e a fala como voz não só é um engano tremendo como uma postura iatrogênica no que concerne à clínica dos distúrbios de linguagem. A voz só assume, de fato, o estatuto de voz quando alçada na linguagem pelo sujeito falante.

A voz tomada como fala também fica explícita quando autores se referem à voz de bebês como emissão sonora. Se o bebê ainda não fala, isso significa que ele não teria voz? Há, nessas afirmações, um reducionismo na capacidade e na vivacidade que existe na voz do bebê. Aos dois ou três meses de vida, um bebê pequeno já consegue estabelecer turnos dialógicos com sua mãe, produzindo, inclusive, entonações variadas na voz, mostrando as condições precoces de estar na linguagem. Portanto, descrever a voz de bebês como emissão sonora advém do fato das abordagens vocais não considerarem a linguagem.

Na clínica dos distúrbios vocais, não é incomum que pacientes que apresentem alguma alteração em sua voz afirmem, em relação à voz emitida, que ela “não é a minha voz”. Ora, se a voz é aquilo que o sujeito falante tem de marca maior da sua singularidade, qual é a sensação de não se reconhecer em sua voz? São pacientes aprisionados em uma voz que dá corpo à língua e a uma fala que não possibilita que eles se reconheçam em seu próprio ato enunciativo. Nesse momento, uma terapia vocal pode ter dois caminhos: escolher as técnicas adequadas para determinada lesão ou patologia e apagar o sujeito ou escolher as técnicas adequadas para

determinada lesão ou patologia considerando aquele que fala e que é dono de sua voz, considerando, portanto, a voz na linguagem.

Em resumo, este primeiro capítulo foi dedicado à descrição de como a fonoaudiologia, de maneira geral, estuda a voz. Foi uma revisão bibliográfica necessária para explicitar a exclusão da linguagem quando a Fonoaudiologia fala de suas abordagens relativas à voz. Pode- se perceber, nas perspectivas acima, que a voz, a linguagem e o sujeito falante não estão articulados; são, pelo contrário, tomados como instâncias desvinculadas. O próximo capítulo, por sua vez, trata das relações entre voz e linguagem na visão aqui desenvolvida. Tais relações devem permitir que o clínico reflita sobre a voz na clínica dos distúrbios de linguagem.